A Porta escrita por Aluada


Capítulo 1
O dia depois


Notas iniciais do capítulo

Texto revisado somente uma vez.
Baseado em circunstâncias próprias.



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Os primeiros raios de sol ainda não haviam nascido, mas seus olhos já estavam abertos – muito, por sinal. Olhava fixamente o teto acima de seu corpo, mas não enxergava. Por seus olhos, passava um filme que não correspondia ao momento presente.

            Piscou. Sentiu um gosto salgado na boca.

            Por um momento, acordou; parou de fixar-se num só ponto e olhou o cenário como um todo: o criado-mudo à direita, a janela à esquerda, a porta a sua frente, a lâmpada apagada na sua cabeça. Não era o mesmo das suas lembranças. Não via nada, porque o que queria não estava ali. Estava segura que um dia esteve – mas aquele não era o “um”, era o dia depois.

            O alívio repentino no coração tirou sua certeza. No instante seguinte, uma pontada retomou-lhe o passado.

            - Cadê..?

            Uma vozinha irritante surgiu na sua cabeça e a impulsionou a sentar na beirada da cama. Repetia, repetia, ah, sempre repetia: “Você não pode ficar assim! Continue vivendo! O mundo não parou de girar!”. É, não tinha parado mesmo (por mais que, às vezes, quisesse que sim). É, também não podia ficar parada ali eternamente; afinal, ela era forte, responsável, admirável, etc etc etc, e todos queriam vê-la sorrindo (ou será que, na verdade, todos precisavam do seu sorriso..?)

            Mas ninguém entendia como não era fácil. Não era realmente nada fácil olhar para as coisas com uma visão embaçada, uma mente confusa e uma voz irritante nos ouvidos.Já tinha tentado fazer de tudo para que parasse, mas cada vez girava mais e vinha-lhe uma imagem à cabeça e embaçava tudo e estava ali e girava de novo e não estava e doía e voltava e doía mais e girava e embaçava e girava e...

            A voz gritou-lhe um “Converse com ele!” bem alto e a fez voltar. Ela não sabia quem era ele – ou, reformulando, ela nunca o tinha visto. Ele era um homem que morava na cobertura do prédio, famoso por sua sabedoria e conselhos inigualáveis. Talvez fosse formado em psicologia, ou qualquer outro estudo da mente. Não sabiam ao certo sua idade, pois a barba escondia-lhe os traços; seu nome era sabido por poucos. Por isso, chamavam-lhe apenas de Senhor.

             Ela preferia chamá-lo de lenda. Nunca o vira no hall de entrada, ou no playground, ou no salão de festas, nem mesmo tivera uma conversa de elevador (“Dia frio hoje, né?” “É mesmo, está esfriando”, etc...). Será que estava na hora perguntar-lhe sobre o tempo em seu próprio apartamento?

            Talvez. Mas faria perguntas mais interessantes do que perguntas de elevador.

            Faria mesmo?! Pois é, decidiu-se. Pôs seu roupão violeta-formosura, calçou-lhes as pantufas de mesma cor e pôs-se a sair do quarto. Antes, meteu-lhe um bloco de anotações e um lápis bem apontado – não deixaria de anotar as respostas.

            Viu um porta-retrato. Pontada. Ah, que dor...

            E tudo voltou a girar e girar e girar e embaçar e girar e estava lá e brilho e risada e não estava e dor e dor e dor e estava e não estava e estava e embaçou e...

            O elevador estava demorando demais. Abriu a porta de emergência e começou a subir as escadas. Poucas eram suas esperanças de encontrar a lenda – ou o Senhor -, mas esse pouco não era nada, e o que restava enchia-lhe o coração. Queria saber, e queria as respostas certas.

            Sentou-se num degrau, tirou o bloco de bolso e escreveu: “Por que mereci isso?”.

            Olhou através da janela no corredor. Estava molhada pela água da chuva. Ah, antes ela gostava tanto de dias chuvosos – mas agora...

            Riscou a pergunta. Não era essa a certa. Subiu mais um degrau.

            As pantufas coloridas tornavam a caminhada silenciosa. Mesmo assim, seus ouvidos estavam cheios de gritos e murmúrios, respirações ofegantes e desesperadoras, medo, medo, um medo terrível... e a vozinha irritante ao fundo.

“Aaaaaahnnnn...”

Pontada. O mesmo gosto salgado.

Ouviu um som a mais na sua confusão mental – parou instantaneamente.  Virou seu pescoço para olhar acima do ombro – ninguém. Esticou-o para olhar além da escada – vazio absoluto. No teto, havia uma madeira deslocada. Devia ter estalado. É, só estalado. É, é, não havia ninguém. Estava só. Mas não era a mesma coisa. Antes ela só se sentia só. Passava noites chorando na sua solidão inventada. E como era bom...

Sim, era bom se sentir única no mundo, estar em seu centro, se sentir impossivelmente amável. O sofrimento que lhe apertava o coração estava sempre à espera de um carinho que com certeza viria, daquele abraço fofo que sempre estava ali, mas que não queria enxergar. O sofrimento tornava-os especiais. De certa forma.

Mas agora o que sentia não lhe apertava o coração. Esmagava-o, dilacerava-o, tirava-lhe a esperança. Não havia mais carinho nem o abraço fofo. Jamais.

Suas mãos trêmulas escreveram um “Cadê?”, e não tiveram coragem de retirá-lo.

Pela janela do corredor bateu em sua vista o primeiro raio de sol. Era fraco, quase gélido.A chuva tirava sua vida. Sua vida. Sua vida. Como daquela vez.

Pontada. Pontada. Pontada. Pontada. Pontada.

“Aaaaaaaaaaahnnnn...”

Lágrimas.

E girava e girava e girava e girava e girava e girava e girava e girava e não estava mais...

Correu pela escada, rastejou-se em algumas partes, tropeçou mas não desistiu. Perdeu uma pantufa no meio do caminho, mas quem se importa? Latejava, latejava muito, e ela precisava saber. Queria a resposta. Rápido, naquele momento, antes que –

Sua mão tocou no último degrau. A porta estava diante dos seus olhos. Enfim! Levantou-se pomposa (ainda que segurando na maçaneta), respirou fundo, tentou, por um momento, abaixar o volume das vozes e imaginar um pouquinho o que estaria além. E se a lenda estivesse lá? E se ele tivesse a resposta? E se ela visse a resposta..?

Incondicionalmente, pegou o bloco do bolso e saiu uma caligrafia riscada.

“Por que ela teve que morrer?”.

Girou a maçaneta. Clic. Destrancada. Abriu. Sentiu um vento gelado, algumas gotas também. Talvez tivesse esquecido a janela aberta...

  Não se atreveu a pedir licença. A boca entreaberta estava insensível, incapaz de executar quaisquer movimentos. As pernas arrastavam-se como as de um zumbi. Não se atentou à disposição das coisas, ao cenário, ao tempo, a nada. Sabia que estava escuro, uma escuridão que, aos poucos, clareava. E frio também. Mas isso sempre estivera, desde...

Pontada.

Embaçou.

E girou.

E girou.

E girou.

E girou.

E estava ali.

Estava.

Estava.
           Estava?
           Estava!

Ali estava a possibilidade da resposta. Não sabia se ela em si estava ali, nem nada sobre a lenda – mas procuraria o Senhor, era só passar o degrau, veria se ele de fato existia, se de fato havia a resposta, se de fato ela era a certa...

Subiu o degrau. Deu um passo adiante.

Foi encontrada estilhaçada na calçada daquele prédio de vinte andares.

Se o Senhor existe, impossível saber.


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