A Deusa Perdida escrita por mari mara


Capítulo 37
MORREU (e se pá não passa tão bem assim) – I


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! VOCÊS ACHARAM QUE EU NUNCA MAIS IA VOLTAR, NÃO ACHARAM? Pois aqui estamos, firmes e fortes!

Antes de tudo dedico o cap ao iMatths, que é leitor assíduo há vários anos e deixou review no último s2 OBRIGADA TE ADORO

Esse cap é o mais comprido de todos (10k risos) então achei mais sábio partir em dois. Ou seja: amanhã tem mais! Já deixei programadíssimo pras 16h30, então pode preparar o despertador. Ah, e um spoiler: as duas partes são do ponto de vista da Hannah!

Espero que gostem!



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37. MORREU (e se pá não passa tão bem assim) – parte I:
Alguém liga pra Shirley pelo amor de deus

Parte única: Hannah Nebavskaya

Agora que eu lembro do que aconteceu antes do Rio Lete, posso falar com certeza: desde que nasci (a uns alguns bons séculos), eu já passei por um bocado de lugares. Mas se tem um lugar por eu onde nunca, nunca tinha passado, é o Palácio do meu titio Hades.

Eu imaginava que a casa do deus dos mortos ia ser mais deprê, com uns esqueletos dependurados na parede, rios de lava borbulhante dividindo os cômodos, criados tristes resmungando e arrastando os pés pelo corredor, mas assim que piso lá dentro dou de cara com algo... bonito? Artístico? Tipo a casa das Kardashians naqueles vídeos do Youtube que elas fazem uma tour pelos cômodos chiques que você pensa "meu deus, que casa de rico".

Pequeno parêntesis: Vou ser muito honesta con'cês pra dizer que minha meta de vida nunca foi seguir aquele mantra machista de "fique com um homem rico", mas considerando o que eu vejo na casa do meu talvez-mais-que-amigo Di Angelo, podemos dizer que se pá eu acertei sem querer. Fecha parêntesis.

Falando no Nicolau, eu deveria deixar o corpo dele assim que conseguisse entrar no palácio (queria saber se o fato de eu ser uma... deusa?, ia me impedir de entrar na casa de outro deus, mas olha só! Parece que não!), mas quando dou de cara com uma sala enorme de chão de pedra escura com tapetes combinando, quadros abstratos moderninhos e sofás que parecem mais confortáveis do que todas as camas em que já dormi na vida, eu simplesmente preciso fazer uma tour, e algo me diz que no momento em que eu deixar o corpo dele, me deixar ver a casa não vai ser uma das prioridades.

Resisto à vontade de deitar nos sofás que parecem muito confortáveis e sigo por um corredor ao lado do piano (piano. Eles têm um PIANO). Dá pra ver criados pelos cômodos, mas troco de direção sempre que percebo alguém aproximando com receio de perceberem que, bom, sou eu. Minha cabeça dói só de pensar em ter que explicar essa bagunça.

Ao contrário dos criados que eu imaginei (pobres almas tristes e torturadas arrastando correntes barulhentas pela mansão), eles todos parecem pessoas normais, e até... felizes? Meio sérios, mas felizes. Satisfeitos, ao menos. Eles parecem estar todos mortos, que nem eu, mas em vez de andarem por aí com roupinhas gregas e pele quase transparente, eles parecem humanos comuns com a pele meio acinzentada, como os soldados de Niké. Como...

Como Kutuzov, eu penso sem querer. O soldado russo que me salvou na luta contra a deusa da Vitória do Mal na minha antiga escola. Que se sacrificou para me dar mais alguns minutinhos de vida, que acabaram não durando muito porque um maldito soldado nazista me obrigou a bater as botas pouco depois. Minutos antes da tragédia acontecer, Mikhail Kutuzov me reconheceu como a deusa das nuvens que eu nem lembrava direito ter sido e disse que ele estava em dívida comigo de uma vez que lutamos juntos, duzentos anos atrás. Ele disse que estava pra ser morto por um soldado inimigo, e eu, como dizer de um jeito menos trágico, pifei o cara antes que ele pudesse terminar o serviço.

Eu lembro disso agora. É estranho, mas eu lembro de tudo. Só que em vez de lembranças reais, elas são como se as memórias de outra pessoa tivessem sido passadas pra minha cabeça: meio confusas, meio embaçadas, mas ainda tão aqui, entende? Quando penso em Kutuzov, consigo ver ele em meio a um campo de batalha, soldados ensanguentados estirados pelo chão, sons altos de artilharia, cavalos relinchando assustados, muitas coisas ruins rolando ao mesmo tempo numa barulheira insuportável. Kutuzov está pela linha de frente, e assim que enxergo o inimigo vindo em sua direção eu deixo soltar um berro enfurecido, o tipo de berro que um animal daria, e um raio desce no céu nublado e acerta o cara no mesmo segundo, a alguns metros de Kutuzov.

Sabe quando cê tá num quarto cheio de gente berrando, mas daí por algum motivo faz silêncio bem na hora que você tá falando, e todo mundo vira pra te escutar? Sabe? É como parece. Os dois lados da guerra param e seguem o som do raio que caiu. O que restou do soldado no chão. Silêncio.

Mas menos de meio segundo depois ela volta, afinal, estamos em guerra. Nada mais é suficiente para atrair a atenção de qualquer um ali, não depois de tudo que eles já passaram para chegar naquele lugar. A única pessoa que não volta ao presente é Kutuzov, que olha pra mim ainda abalado com o susto, mas aliviado. Eu não deixo ele agradecer, por medo de ele ficar parado tempo demais e se tornar um alvo fácil.

Ne bespokoysya, ya tebya prikryvayu — posso ouvir minha voz respondendo, e o jovem ruivo hesitando — Idti. Idti!

"Não se preocupe, eu te dou cobertura. Vai. Vai!". E daí ele... vai. Ele obedece. Em algum momento da vida as pessoas realmente paravam pra escutar o que eu tinha a dizer? No meio de uma GUERRA?

É estranho. Sou eu, mas não parece ser eu. Eu não consigo me ver, mas minha voz é mais madura, mais velha, mais sábia, e tenho a impressão de que eu tava mais alta, também. E as coisas que eu vejo... o campo de batalha... Não que minha vida pós-Lete tenha sido um mar de rosas incrível bonito lindo e cheiroso, mas ver a guerra na minha cabeça, sentir a guerra, conseguir sentir o fedor de sangue e pólvora e morte embolorando no meu nariz como se tudo estivesse acontecendo agora, é coisa demais pra acreditar que aquela era eu. Eu não devia ter visto isso um dia, devia? Ninguém devia.

Eu não devia perder tempo com minhas novas memórias bugadas, não agora, porque não vejo um dos criados se aproximando, um senhor elegante de terno e cabelos brancos que contrastam com a pele cinza. Quase pulo de susto quando ele me para no corredor, sem me dar brecha pra fugir pra outro lado.

— Di Angelo? — ele gruda os olhos escuros, meio amarelados, em mim — Stai bene? Sembra un po'... stanco.

Carai, o que diabo ele tá falando? Tenho que dar uma improvisada, porque fui burra e não parei pra pensar no que faria se isso acontecesse.

— Ah, oi, é você! — respondo em inglês, e o criado franze um pouco as sobrancelhas. É estranho falar e ouvir a voz do Nico, que soa mais grave pelos seus ouvidos do que eu escutava pelo meu próprio corpo. Será que minha voz também é diferente pras outras pessoas do que pra mim? — Desculpa, eu tava meio distraído, cê sabe, pela vida e tal. Os dias têm sido... difíceis. Minha cabeça anda ruim.

— Não só sua cabeça, parece — pra minha felicidade ele responde, com um sotaque forte, em uma língua que eu entendo, dando uma olhada desconfiada — Quer que eu chame um médico?

— Não! — percebo que falei rápido demais, e dou uma aliviada — Quer dizer, não precisa. Foi só mais uma viagem das sombras que deu errado, sabe. Fui cuspido no meio daquele lugar, qual o nome mesmo? Os Campos... das pessoas ruins. Onde elas são punidas por serem ruins.

Se existe algum deus do teatro, ele tem todo o direito de me dar um socão na próxima vez que eu pisar no Olimpo.

— ...os Campos de Punição?

— Isso! Isso, isso mesmo — faço uma cara de como quem diz "puts, como eu fui esquecer?" — Eu queria vir pra casa mas as sombras, você sabe como elas são, né, ha ha! Uma barbeiragem, elas me cuspiram no meio daquela bagunça. Tinha uma galera sendo, cê sabe, punida na hora, e se você cai ali sem querer, é complicado. Até perceberem que era eu, né. Complicado — percebo que falei complicado duas vezes, então dou uma tossida pra disfarçar — Mas nada que a gente não esteja acostumado.

Deixo sair uma risada sem graça que eu tenho certeza que o Nico de verdade nunca daria, e imagino que o home vai me arrastar daqui direto pra um exorcismo. Mas ele só faz um sim com a cabeça.

— Tudo bem, senhor. Diga se precisar de alguma coisa.

Mas gente.

Ele faz uma reverência e começa a ir embora, mas alguma coisa me faz impedir que ele se vá ainda.

— Espera! — seguro ele pelo braço, mas lembro que Nico não é muito de contato físico, então solto antes que ele estranhe — Eu só queria saber se você pode me mostrar onde fica meu quarto, mesmo? Acho que minha cabeça tá pior do que eu imaginava. Demorei horas pra conseguir só pra achar o caminho de volta pra casa.

— Tem certeza que não quer que eu chame um médico?

— Sim, sim, tá tranquilo! — tento deixar a voz o mais despojada o possível — Filhos de Hades, cê sabe. A gente é difícil de matar.

Essa provavelmente era a pior coisa pra eu dizer, primeiro porque eu tô morta, segundo porque o cara tá morto, e o fato de a gente tá no Mundo Inferior deixa as coisas ainda piores.

Mas acho que quando você trabalha pra um deus e os filhos doidos dele, são tantas coisas fora do comum rolando contigo que em determinado momento cê só para de fazer perguntas. Esse criado por exemplo. Ele tem uma cara de quem parou de fazer perguntas a muito tempo. Se ele percebeu alguma coisa errada, acho que não se importa mais. Ele só faz outro sim com a cabeça e volta a andar, dando a entender que espera que eu o siga pela casa.

São muitos corredores. Muitos quartos. Por que tem tantos quartos? Eles tem... visitas? E quadros. Abstratos, clássicos, modernistas. Eu não esperava que Hades gostasse de arte. Eu já estava surpresa com o que vi até aqui, mas então o criado me leva até um salão amplo, de pé direito alto, com as paredes escuras e chão de mármore negro (na verdade eu não faço ideia se é mármore, mas o das Kardashians era, então dou o palpite). No meio do salão um tapete também negro, que vai de uma porta alta de madeira até dois tronos vazios, quase iguais, a não ser pela cor: um escuro feito o piso, outro tão branco que chega a arder meus olhos numa casa onde os tons escuros aparecem em todos os cômodos. Hades e Perséfone, claro. Me pergunto em silêncio se, como filho, Nico não deveria ter o dele, mas percebo de cara que é uma pergunta idiota. Apesar de semideus, ele continua mortal: nem o primeiro, nem o último herdeiro que o deus dos mortos vai ter por aí. Se Hades fosse dar tronos para cada um de seus filhos bastardos, a sala já teria ficado pequena demais pra todos eles a muito tempo.

Ainda estou pensando nisso (sobre como as vidas mortais são curtas e insignificantes para os deuses, e como minhas lembranças antigas são uma prova disso) quando o criado para em frente a uma das portas negras de uma das salas depois do salão dos tronos. Ele não diz nada, mas acho que chegamos.

— Obrigado — fico incomodada de não chamar ele pelo nome (conhecendo Nico, tenho certeza de que faz questão de cumprimentar todos), mas vai ser ainda pior se eu perguntar.

O homem faz outra reverência educada e me deixa sozinha em frente à porta. Estico o pescoço pra confirmar que ele virou o corredor, daí estico mais uma vez pra conferir que não tem mais ninguém por perto, e quando tenho certeza que estou segura, entro no quarto e fecho a porta atrás de mim.

Respiro fundo.

Eu sou muito burra.

E doida.

Um pouco dos dois.

Muito dos dois.

Deixo minha incompetência fantasmagórica de lado por um segundo pra reparar onde estou. O quarto dele é bonito, mas simples. Algumas fotos da irmã enquanto viva, do Acampamento, alguns livros empilhados na escrivaninha vazia, mas fora isso, a impressão que tenho é de estar num quarto de hotel. Quantos filhos de Hades será que já foram donos desse quarto? Há quantos anos? Será que eu ao menos tenho o direito de tá aqui?

— Tá legal — falo em voz alta — Agora já chega. Hora de deixar o Nicolau em paz, mulher.

Fecho os olhos e respiro fundo, porque é o que eu acho que as almas penadas fazem quando querem sair do corpo das outras pessoas. Espero. Espero...

— Droga — mas a voz que sai não é a minha, fina e irritante, e sim a voz mais-grave-do-que-eu-pensava de Nicolau.

Tudo bem. Tudo bem. Sem pânico! Tá tudo bem. Não pode ser tão difícil. As pessoas fazem isso o tempo todo! Nos filmes, mas fazem. Respiro fundo outra vez e imagino meu espírito azulado e sem graça dando um passo pra frente.

Nada.

— Ai meu deus.

Ok. Ok, talvez eu esteja um pouco desesperada agora. Sinto o coração batendo com força no peito, e não sei se é a minha alma entrando em parafuso ou o próprio corpo de Nico pressentindo que há algo errado acontecendo dentro dele.

Tem que ter um jeito. Eu não posso ficar aqui pra sempre, é insano. É loucura. É... burrice.

Será que eu preciso me auto-exorcizar? Usar os poderes de filho de Hades dele pra me tirar daqui? Expulsar minha alma daqui de dentro? Ou eu preciso falar alguma coisa específica pra ser chutada pra fora de volta?

Paro de andar em círculos pelo quarto e estico os braços pra frente com os olho fechados, concentrada. Tento lembrar as palavras estranhas que escutei ele dizendo na noite que fomos no cemitério, quando ele invocou a irmã no dia de seu aniversário, mas não sei que língua era aquela. E mesmo se soubesse, minha cabeça está agitada demais pra dar um jeito de lembrar. De qualquer forma, decido ir no improviso.

— Meu nome é Hannah — murmuro as palavras com o máximo de seriedade que consigo — Hannah Nebavskaya. Filha de Zeus, deusa das nuvens e da música. Mas como vocês podem ver, eu não pertenço a esse corpo. Ele pertence a Nico di Angelo, filho de Hades, meu... amigo. Talvez mais que amigo, mas isso não importa. Foi mal — dou uma tossida, esperando que os Seres Mágicos que Regem os Espíritos Malcriados perdoem meu deslize — Eu quero devolver esse corpo pra ele. Agora.

Ainda de olhos fechados, faço o sinal de reza com as mãos e murmuro uns "hmmmmm" como se estivesse meditando, tentando falar com as Divindades, sei lá. Continuo nessa posição por alguns muitos minutos... e absolutamente nada acontece.

— Bosta! — deixo sair um xingamento — Cês tão zoando com a minha cara? Essa desgraça não devia ser tão difícil!

— O que não devia ser tão dificil?

Dou um pulo pra trás, ao maior estilo pega com a boca na botija. Eu não tinha trancado a porta?

— Pai.

Droga, quanto será que ele ouviu?

Eu já vi Hades antes (cê sabe, antes), mas nunca tão de perto. Como uma deusa menor, eu não tinha tanto contato com os outros Olimpianos, ainda mais Grandes — quero dizer, tirando meu pai. Apesar de ter algumas lembranças embaçadas do deus dos mortos, é um choque ver ele tão... normal, parado em frente à porta do quarto, o cabelo escuro penteado para trás e um terno de risca preto. Parece um empresário.

Tento agir naturalmente, mas não sei o que seria natural de fazer numa hora dessas, então acabo ficando parada no meio do quarto com cara de paisagem enquanto dou meu jeito de bolar algum plano infalível que seja mais esperto do que ser descoberta e incitar a raiva deste homem.

— E aí? — pergunto, e percebo meio segundo depois que foi a coisa mais idiota que eu poderia ter feito. É despojado demais, o suficiente pra ser suspeito. Pra minha felicidade, Hades parece desinteressado demais pra notar. Acho que não ouviu nada muito comprometedor.

— Filippo me disse que você estava em casa.

— Ahãn — fico esperando ele ir embora, mas como não vai, decido continuar falando pra não deixar meu nervosismo transparecer, apesar de que não calar a boca é uma das formas mais óbvias de deixar claro que cê tá nervoso — Decidi dar uma parada. Ver como andavam as coisas... Por aí.

— Hum — Hades diz, o que não é bem uma palavra — Certo. Eu tenho alguns afazeres a cumprir, então seria ótimo se houvesse um pouco de calma na casa agora. Não quero ser perturbado. Entende?

Olha. Eu sei que preciso manter meu disfarce, mas a forma como ele fala — como se o Nico fosse um grande estorvo na sua vida, atrapalhando seus afazeres —, faz minha impulsividade palpitar antes que eu possa morder a língua.

— Não — respondo sem pensar nas consequências — Não, eu não entendo.

A expressão de Hades não muda, mas dá pra perceber pelo silêncio que se segue que ele não está acostumado a ouvir esse tipo de resposta das pessoas. Ele repete:

— Eu disse que tenho afazeres...

Pode ser hipocrisia (ou consciência de classe?), mas eu acho os deuses um saco. "Eu tenho afazeres". Problema seu! Precisa ser grosso, porra?

Minha terapeuta escolar dos tempos de Los Angeles, Shirley, estaria bem decepcionada comigo agora, porque em vez de seguir os conselhos incríveis dela ("antes de tomar uma decisão impulsiva, respire fundo até três: um, dos, três... e pense se realmente vale a pena. Se precisar, repita o processo") e deixar de tomar decisões lixo das quais eu me arrependo dez minutos depois, eu tomei o que deve ter sido a decisão mais lixo da minha vida, o que é um grande feito se a gente considerar que a meia horinha atrás eu achei que seria uma boa ideia esse rolê da possessão.

— Eu sei. Eu escutei. Não sou surdo! O que eu não entendo é, como é que seu filho chega em casa depois de não sei quanto tempo e a primeira coisa que você me diz é "não quero ser perturbado". Você não quer ser perturbado? Bom saber — dou uma risada irônica — Porque você não aproveita pra me trancar nesse quarto pro resto da minha vida, já que a minha presença é tão perturbadora.

Agora eu entendo porque o Nicolau é como é. Meio caladão e tal. Estilo sad vibes que não demonstra sentimentos. Com um pai simpático desses, quem que precisa de inimigos? Cê precisa é de terapia. A primeira coisa que eu fazer quando sair daqui é indicar pra ele o número da Shirley.

— O que aconteceu com você? — Hades pergunta, meio irritado. Não posso julgar — Eu não tenho tempo pra dramas mortais. Eu sou um deus–

— O quão burro cê acha que eu sou? Claro que você é um deus com um bando de almas malditas pra punir, pra salvar, ou sei lá o que diabo mais a gente faz por aqui. Mas sabe de uma coisa? Você também é meu pai.

Consigo me ouvir falando, e sei que deveria calar a boca, mas não consigo. É mais forte que eu, e faz as palavras saírem pela voz dele como uma boa porrada.

O que o senhor precisa entender, pai — continuo, apesar de tudo — é que eu nunca pedi pra tá aqui. Eu não pedi pra tá aqui! Pra nascer nessa loucura de mundo idiota em que os deuses saem fazendo um bando de filhos bastardos e depois não se importam com eles porque não querem ser incomodados. Mas já que estou, já que você acabou me jogando de pára-quedas nessa porcaria, o mínimo que você deveria fazer é agir feito esse pai que, você querendo ou não, você é. Meus pêsames.

Eu não sei mais se sou eu fingindo ser o Nicolau, ou se sou eu descontando minhas mágoas num bode expiatório.

Hades me encara, os olhos escuros fincados em mim por tempo demais pra me deixar desconfortável. Será que ele... sabe? Que sou eu? Ou ele realmente acha que Nico está gritando tudo isso na sua cara? Não sei o que seria pior.

Depois do que parecem anos, Hades quebra o silêncio do quarto.

— É isso que você acha? — ele diz com a voz grave — Que eu não me importo?

Eu conseguiria lidar com um escurraço. Mal, mas saberia lidar. Um acesso de fúria paternal. Mas isso? A pergunta é tão simples que quebra meu raciocínio.

— Bom... eu não sei — porque eu, Hannah, realmente não sei — Às vezes?

Ele faz que sim com a cabeça devagar, pensativo.

— Certo. Certo — ele cruza os braços sobre o peito — Mas eu não tenho tempo pra isso agora. Preciso dar uma olhada nas minhas obrigações. Você sabe onde me achar.

Sério? Meu deus.

Hades começa a se desmaterelizar, o que por um lado é bom, porque me dá privacidade pra tentar voltar pro meu espírito sem corpo, mas me lembro de outra coisa importante.

— Pai!

Ele já estava quase sumindo do quarto, mas volta a ficar opaco.

— Sim?

Cacete. Eu falo? Ou não falo? O que Nico faria?

— Eu preciso que você convoque uma assembleia no Olimpo. Agora.

Eu não sei o que Hades esperava que eu diria, mas com certeza não era isso. Ele entorta a cabeça e franze as sobrancelhas, um gesto que já vi Nico fazer várias vezes quando estava confuso.

— Uma... assembleia?

— Sim. No Olimpo. Com os deuses — dou uma hesitada na voz — Todos eles.

— Por que você me pediria isso? — ele não parece bravo, só confuso. E meio chocado, também — Você sabe que eu não sou exatamente... bem vindo lá em cima.

— Cê tem que confiar em mim.

O deus dos mortos dá uma risada meio irônica, o que me parece um mau lugar pra se ir.

— Eu não posso fazer uma coisa dessas tendo como base nada além de confiança.

— Por favor!

— Não.

— É uma emergência!

Eu não sei o que tô fazendo. Não sei que consequências (consequências ruins) minha malcriação pode trazer pro Nico mais tarde. É um risco que tô tomando, mas o problema é que na verdade, quem toma o risco não sou eu. Quem vai sofrer as consequências não sou eu.

E isso é bastante filho da puta da minha parte.

O problema é que mais uma vez, como a Shirley dizia, a ficha das minhas escolhas inconsequentes só vem a cair tarde demais.

De novo, Hades me encara tão fixamente que me deixa desconfortável. Eu não sei o que ele vai fazer. Pode não ser nada. Pode ser muitas coisas. Nico saberia, e é por isso que ele me mandou não vir aqui. Mas eu vim, e quem vai sofrer com isso mais tarde não sou eu.

O pai dele anda até mim e para na minha frente sem dizer nada. Preciso resistir ao impulso de dar alguns passos pra trás.

— Por quê?

Enquanto isso, fico com medo de que quanto mais tempo eu ficar aqui, mais difícil vai ser pra eu sair. Eu preciso ser rápida.

— É uma longa história. Não dá pra eu explicar agora, mas juro pelo Estige que é verdade. Você consegue fazer isso por mim?

Ele não diz que sim nem que não, mas percebo que o silêncio é uma brecha pra eu continuar a falar.

— Eu sei que parece loucura, mas é importante — faço a voz mais honesta e pidona que consigo — E eu preciso de todos eles lá. Todos vocês. Por favor.

Hades passa os nós dos dedos pela barba por fazer. Deuses fazem a barba? Ou ela se faz sozinha? Enfim isso NÃO É IMPORTANTE AGORA.

— Imagino que você vá dizer para eu confiar em você.

— É isso aí.

Ele respira fundo.

— Bom, não é exatamente o que eu tinha pra hoje... mas espero que você saiba o que está fazendo.

— Eu sei.

— Veremos.

Tenho uma vontade desgraçada de abraçar meu tio nesse momento, mas não acho que seja o tipo de coisa que o Nico faria, e eu dei muita má nota por ele hoje. Em vez disso, eu dou um meio sorriso distante, mas educado.

— Obrigado, pai. De verdade.

— Não me agradeça. Não sei como eles vão reagir, mas... — ele dá outro suspiro cansado — Eu realmente, realmente espero que você saiba o que está fazendo.

 Meu tio não termina a frase com um "ou...", mas tá bem implícito. Se existe algum deus das almas estúpidas e desesperadas, eu rezo pra ele ter piedade de mim e fazer com que isso tudo dê certo.

 Faço que sim com a cabeça, e a pele pálida de Hades começa a brilhar. Desvio o olhar enquanto ele aparece na forma divina, e quando olho de volta, ele se foi.

 Caralho.

 Que LOUCURA.

 Arrasto o corpo cansado de Nico (e minha alma ainda mais cansada) até sua cama, sentando na beirada com um suspiro. Ele tinha razão. Essa porcaria não é tão divertida quanto Hollywood me fez parecer em todos esses anos. É cansativo pra cacete.

 Preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa, mas ainda consigo sentir o cansaço dele cutucando minha alma. Apesar de saber que nenhum de nós dois têm tempo pra isso, continuo parada. Eu não consigo ir pra mais lugar nenhum, mesmo. Estou olhando pro mesmo ponto da parede a não sei quantos minutos, vasculhando minhas memórias antigas a procura de alguma dica do que fazer (apesar de não encontrar nada útil), quando algo me vêm à cabeça.

 Eu preciso estar calma.

 Calma!

Corpos são tipo o meio de transporte da sua alma durante a vida terrena. Tipo um trem que cê usa pra chegar de um lugar (o nascimento) pra outro (a morte). E sabe o que rola com gente doida que pula de trens em movimento? Pois é. Eu entrei no trem errado, e não tem jeito de eu sair dele enquanto estiver a duzentos quilômetros por hora.

Deixo o meu / seu corpo cair deitado na cama. Tento não pensar em tudo o que está rolando: capangas do mau, nazistas, morrer, meu pedido pra Hades, todo o meu destino no simples fato de eu não conseguir sair daqui. Não. Não! Penso em coisas boas: em ganhar aquele concurso de música na época da escola, na primeira vez que vi o Acampamento, no verdade ou consequência infernal que Rachel fez a gente jogar no Trailer da Alegria, crises de riso deitada na grama do cemitério com Nicolau, e bom, em beijar ele, também. Foi top. Foi bem top.

Fecho os olhos por um segundo, imersa na minha vibe positiva de não há absolutamente nada de errado acontecendo agora neste momento! a não ser tudo!!, e acontece.

Eu saio.

Na verdade, se a gente for pensar na teoria, quem sai é ele. Eu continuo deitadinha no mesmo lugar, então escuto um grunhido familiar e quando abro os olhos vejo ele se levantando a tropeços, num contorcionismo digno de Soleil que acaba jogando ele no chão.

— Espera, o quê? — falo em voz alta, confusa, e é a minha voz que sai. Minha voz! Aguda e irritante! Levo as mãos na frente do corpo, e elas tão semi transparentes de novo —  Meu deus! Deu certo! Deu–

Paro de falar quando vejo ele sentado no chão, desnorteado, olhando em volta como se não soubesse como veio parar aqui — o que é verdade.

— Que desgraça? Como eu... — ele levanta o olhar perdido pra mim, sentada em sua cama — Hannah?

Ops.

— Hum, é. Sou eu! Foi mal.

Nico continua com a expressão perdida por alguns segundos, até que começa a ligar os fatos. Ele se levanta meio desengonçado, como se ainda estivesse se acostumando a estar de volta no controle dos próprios movimentos.

— Espera. Você... você me possuiu?

Dou uma tossida sem graça.

— Se quer saber, agora que eu tô pensando a palavra possuir me parece meio forte...

— Você me possuiu?

A ênfase que ele dá não é nada boa, e eu engulo a saliva que minha alma morta não tem mais. Faço que sim com a cabeça.

— Qual o seu problema?

Lendo assim parece que foi uma pergunta tranquila, tipo o médico te perguntando no consultório "qual o seu problema?", mas foi uma espécie de berro puto que me faz afundar dentro de mim, se é que isso faz sentido.

— Desculpa.

É uma desculpa sincera, mas ele não tá muito a fim de perdoar. Não que esteja errado.

— Eu te pedi duas coisas. A primeira, que você não fizesse isso. Eu falei com todas as palavras: eu te proíbo de fazer uma coisa dessas. E daí eu falei que você não podia entrar no Palácio. E você fez o quê?

Acho que é uma pergunta retórica, mas ele me encara com raiva, esperando uma resposta.

— Eu fiz as duas coisas?

— Você fez as duas coisas! Porra, você fez as duas coisas! As únicas duas coisas que eu falei exatamente pra você não fazer!

Faço shhh com a boca, com medo de algum dos criados da casa dar uma de Hades e entrar sem ser chamado, ao ouvir a gritaria.

— Tá bom, tá bom, eu caguei na retranca, desculpa, mas acho que cê devia falar um pouco mais baixo–

— Não me manda falar baixo! — mas acaba que tenho razão, porque ele diminui a voz. Um pouco — Não depois de fazer uma coisa dessas. Por que diabos você fez isso?

— Eu não sei!

— Ah, que ótimo, você não sabe — Nico dá uma risada irônica — Porra, Han, eu tô tentando de ajudar!

— Eu sei–

— Pois não parece que sabe! Você morreu, Hannah. Não sei se já reparou mas você morreu, e se a gente não agir logo é assim que cê vai ficar. A única pessoa que pode te ajudar com isso agora sou eu, e você conseguiu me deixar puto pra cacete contigo! — ele gesticula um mucado enquanto fala, gestos bastante raivosos — Cê ao menos pensou no que poderia acontecer? Se você encontrasse meu pai?

Ops.

— Taí um negócio interessante pra gente comentar......

Nico para de gesticular, parando o olhar em mim.

— O quê? Você viu ele?

Eu queria poder mentir, mas acho que já fizemos muito isso por hoje, apesar dos esporros que a verdade há de me trazer.

— Sim — faço uma pausa comprida — Posso ter falado com ele–

A voz dele é afiada e corta a minha pela metade.

— O que você falou?

— Ah, nada demais, só oi e aí tudo bom, afazeres... reais... — não consigo mentir olhando pra ele, então acabo falando a verdade — E eu também meio que, hum. Eu meio que perguntei se ele podia reunir uma, como que fala, uma assembleia. No Olimpo e tal.

No momento que falo, percebo como foi uma decisão estúpida.

Fico esperando Nico voltar a gritar comigo, mas a reação dele é assustadoramente calma. Ele continua com os olhos pregados em mim, até que diz, simplesmente:

— Sai do meu quarto.

— Me desculpa–

— Eu não consigo falar com você agora — ele balança a cabeça — Vai pro Elíseo. Encontre os outros. Eu ainda tenho que pegar as chaves, e ainda tenho que dar um jeito nessa bagunça que você fez com meu pai. Ele não deve estar... feliz.

Ele caminha em direção à porta. Tento segurar seu braço, mas acabo atravessando-o, o que deixa ele ainda mais puto.

— Não faz isso! Eu ainda consigo sentir você aqui dentro. É horrível — ele estremece — Vai pro Elíseo e me deixa pensar por um segundo.

Começo a dizer pra ele me deixar ajudá-lo, mas ele me interrompe.

— Por favor, Hannah. Só... por favor. Vai.

Ele fecha a porta sem olhar na minha cara. 

Solto um suspiro.   

Tudo bem, tudo bem. Eu mereci.

Se pá seria uma boa ideia dar uma ligada pra Shirley da próxima vez que eu passasse pelo Mundo Superior.


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Notas finais do capítulo

Galera, preciso comentar que fiquei surpresa com a quantidade de gente que ainda tá aí e apareceu pra dar uma lida no último cap. Foi muita gente! Fico muito feliz, aaa

E lembrando que comentar não é obrigatório (nessa altura do campeonato, eu já fico tão emocionada de saber que ocês vão saber o final dessa vez), PORÉM, é bem top e me deixa mais motivada a ir postando pra saber o feedback! Porque vai que eu finalmente termino e todo mundo acha uma bosta o final kkkkkkkkkkkkkkkkkk rindo porém preocupada

Enfim PENSE NISSO

E até amanhã!



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