O Rei Tirano escrita por Ayla Pupo


Capítulo 2
Capítulo 2




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O trono à sua frente estava vazio. Sérgio observava-o por horas, entorpecido pelos pensamentos, que vagavam pela noite e atormentavam sua mente inquieta. Era madrugada quente no Reino; as pessoas, infelizes em suas camas, dormiam o sono dos bons e justos. E, talvez, fosse por isso que o Rei estivesse sendo assolado pela insônia, penetrante, sutil, que cansava seu corpo magro aos poucos, de forma quase imperceptível, porém acumulativa com o decorrer dos anos. Sim... há 10 anos que o Rei quase não dormia. Seu esqueleto estava abatido, sua mente não tinha paz. Sérgio já não sabia mais o que era cair em sono profundo. Demorava a dormir, ainda que estivesse sempre rodeado de almofadas macias e lençóis acolhedores. E, de fato, não queria fazê-lo. Ele temia as visões que o perseguiam durante a noite. Quando o Rei fechava os olhos, quieto em seu leito, tinha apenas pesadelos. Sonhos sombrios, onde olhos castanho-avermelhados encaravam-no de forma perfurante. Sempre acordava com o peito extremamente pálido brilhando com o suor, a testa ardendo, os ossos a tremer. Não compreendia o porquê de todo aquele tormento. Seu odioso irmão estava morto há tanto tempo... Sérgio não tinha o que temer. Porém, sem que pudesse impedir, o espírito de Vinícius sempre lhe assombrava, penetrando-o com os enormes olhos de tom avermelhado.

A cadeira belamente ornamentada ainda permanecia ali. Rígida, imperiosa, imponente. E Sérgio não conseguia desgrudar os olhos dela. Parecia que a peça de metal sempre relutava em servi-lo; era como se o objeto repelisse-o sempre que o Rei sentava-se sobre ele. Nunca fora, em todo aquele tempo como novo monarca, verdadeiramente sua. Sérgio caminhou vagarosamente ao redor do trono. A capa negra esvoaçava conforme o seu andar... as roupas escuras de combate faziam barulho com seus passos lentos, comedidos, calculados. Sérgio encarava a cadeira que rodeava como se ali pudesse visualizar o inimigo; o trono tinha o cheiro do irmão... carregava o odor fétido de Vinícius, que não saia jamais, por mais que o Rei tentasse. Ela não lhe entregava sua lealdade. Era como se Sérgio sentasse no trono de outro Rei...

Um estrondo, então, foi ouvido; repentino e forte, que ecoou por todo o castelo de paredes frias. O trono encontrava-se, em questão de um segundo, caído, tombado no meio do Salão Principal. Era pesado, muito grande, mas voara para longe sem resistência quando recebera o golpe furioso do Rei. Sérgio arfava. Sugara muita força do corpo cansado e insone para desferir aquele chute, que veio espontâneo, quase sem pensar. Um movimento efetuado através do pavor e do desespero. Ele vira... Conforme rodeava a cadeira de seu finado irmão, o Rei sentiu um vento gelado entrar pelas amplas janelas do aposento, e, trazido pela brisa noturna, pôde escutar a voz do inimigo a lhe sussurrar nos ouvidos. Os pêlos se arrepiaram, o olhar arregalou-se, a espinha se contorceu de dor, a cicatriz queimou no rosto, tirando-lhe a razão. Enquanto a voz do irmão entrava sorrateira em seus pensamentos, Sérgio pôde ver, nitidamente, Vinícius em pé ao lado do trono, encarando-o com os olhos em fogo. Possuía a fúria estampada no rosto forte de queixo largo. A cabeleira marrom e farta, que caia-lhe nos ombros eretos, esvoaçava com o vento noturno. E a única coisa que Sérgio pôde sentir foi o ódio pungente invadir-lhe as veias e o coração morto – só não sabia ao certo dizer se tal sentimento vinha de dentro de si mesmo ou da visão à sua frente, que queimava-o com o olhar. Uma única mísera fração de tempo se passou, até que o grito veio junto com o pontapé...  que acertou o antigo Rei em cheio, porém derrubou apenas o trono em que outrora ele se sentara.

Respirou com calma. Puxou o ar com força, ainda sentindo um pouco de dificuldade para respirar. O Rei ajeitou a postura e organizou a vestimenta de combate, que caia-lhe torta no corpo. Não desgrudou os olhos do trono vencido no meio do salão. Abriu um sorriso. Procurou ao redor. Nada de Vinícius. Nada de vento, nada de vozes do além vindo lhe assombrar. Sem que pudesse impedir, um riso começou a sair de sua garganta, que, no início baixo e discreto, logo atingiu todo o aposento, de forma agourenta e demente. Sérgio dobrou-se para conseguir agüentar a risada, que ecoava pelas paredes do castelo. Ninguém estava ali. Somente ele. O Rei. O Rei e seu trono maldito, que agora encontrava-se subjugado e derrotado pelo verdadeiro governante daquele lugar.

Súbito como veio, o riso se rompeu, e logo um silêncio sombrio reinou ao redor. Sérgio estava ficando louco... Chamavam-no de o Rei Tirano, mas sabia que, no fundo, seu título deveria ser o de Rei Insano... Estava cada vez mais perdendo o raciocínio. Como se já não bastassem as muitas noites em claro e os sonhos infernais que tinha sempre que caia no sono, agora Sérgio começara a ter visões acordado. Sentou-se pesadamente nas escadas que elevavam o trono no Salão Principal. Passou os dedos por entre os cabelos pretos, arranhando o couro, descendo com as unhas para o rosto e marcando sua pele como se nada sentisse. Não agüentava mais ser atormentado pela sombra de Vinícius... Era de seu direito ocupar o trono do Rei. Era o herdeiro direto depois de Vinícius e seu filho maldito. Há tanto tempo que ambos estavam mortos, mas Sérgio ainda sentia que nada daquele Reino deixara de pertencer a eles. Queria sentir todos os detalhes do lugar submetendo-se a sua ordem... Queria saber, ver, apalpar, todos os indícios de que governava imperioso e que sua palavra jamais era contestada. Precisava sentir que tinha domínio sobre o que quer que fosse, já que, ao que parecia, nem mesmo domínio sobre seus sonhos e sanidade ele tinha mais. Perdera-o com o passos dos anos, conforme a mente definhava.

Pensou em tudo o que conseguira com a morte de Vinícius... Agora reinava absoluto, todas as terras em quilômetros de distância sujeitavam-se à sua vontade. Conquistara seguidores por todas as partes; alguns por fidelidade, a maioria através do medo, mas conquistara. Tinha conseguido tudo o que mais desejara como governante, mas não conseguira, ainda hoje, por mais que tentasse, aquilo que mais ansiara como homem...

Desviou o olhar do chão de pedra que encarava, direcionando-o às portas do lado direito do Salão Principal, que levavam a um comprido corredor. Ao final do mesmo, havia uma segunda porta de madeira maciça alojando o corpo quente de uma mulher. Sara... sussurraram os lábios do Rei, que encarava hipnotizado o caminho capaz de lhe levar à sua Rainha adormecida. Sua Rainha...

Levantou-se com agilidade, embora em ritmo lento, sem tirar os olhos negros das fortes madeiras que o separavam do objeto de seu desejo. Deu o primeiro passo decidido; o queixo erguido, a respiração profunda, o coração a bater. Caminhou até o enorme portal, abrindo-o com um forte empurrão, e fazendo com que o ranger ecoasse pelo corredor. Andou devagar, hipnotizado, vidrado no lugar para onde se destinava. A passagem era ornamentada por estátuas robustas que, no passado, brilhariam peroladas com o chegar da noite e o toque da Lua, mas que, agora, não passavam de sombras, cobertas pela poeira e pela miséria. Tal estado, entretanto, não mudava o fato de que ainda possuíam vida nos olhos carentes de íris, que encaravam-no conforme Sérgio avançava determinado pelo corredor. O Rei olhou ao redor, distraído pela sensação agourenta de estar sendo observado. As esculturas continuavam imóveis, frias em sua pedra escurecida, mas repreendiam-no a cada passo dado, a cada pensamento que incluía o corpo nu e quente da mulher no final do corredor. Agora, além de ter a certeza de estar sendo rejeitado por um trono, tinha a convicção de estar sendo vigiado por estátuas.

Balançou a cabeça com força, afastando aquelas idéias de perseguição e estacando no chão de pedra. Deveria urgentemente concentrar-se em algo que o fizesse sentir-se melhor. E, novamente, a imagem de sua Rainha veio-lhe à mente. O olhar fixou-se na porta distante... o cheiro inebriante de seus cabelos cacheados atingiu-lhe o olfato, trazidos pelo vento ou pela memória, ele não saberia dizer... Sérgio sentiu o aroma entrar no corpo, caminhar por todas as veias, arrepiar-lhe todos os pêlos. Estremeceu ao sentir o toque das mãos quentes de sua Rainha em sua pele fria e atormentada. Arfou ao perceber o desejo dominando-lhe os instintos e sugando-lhe o resto de sanidade que pairava em sua mente. Retomou a caminhada, necessitando de sua mulher. Sabia que nunca teria seu amor, mas contentava-se com seu medo. Tinha certeza que jamais conquistaria sua lealdade, mas satisfazia-se com seu corpo. Um Rei pode exigir o que quiser de sua Rainha. Até mesmo que ela grite em desespero...

Girou a maçaneta pesada, que abriu a porta sem resistência. Espreitou o rosto fino para dentro da fresta recém-criada e olhou ao redor do quarto. Sara encontrava-se em sono profundo. Tinha o rosto sereno, embora Sérgio soubesse que ela, assim como ele, não descansava durante o repouso, sempre atormentada por pesadelos. A única diferença entre ambos é que o demônio que o perseguia em seus sonhos era Vinícius, seu irmão, enquanto que o demônio que perseguia sua Rainha era, simplesmente, ele mesmo.

Fez menção de embrenhar-se no aposento escuro. Queria invadir os lençóis quentes da mulher no leito. Queria invadir mais do que isso... Ansiava por violar sua liberdade, sua vontade, seus desejos, seu íntimo... Precisava sentir os músculos tensos, contraindo-se com o medo de ser tocada. Já que Sara não aceitava ser possuída por bem, fazia-o por mal. Se o Rei queria, a Rainha haveria de ceder. Entretanto, conteve seus instintos. Sentia muito prazer no ato em si, isso era verdade, mas o que lhe dava maior satisfação ainda era o preparo da cerimônia. As horas de agonia que assombravam a mulher antes de se entregar a ele, sempre que ele lhe informava de que desejava sua visita naquela noite. O despir temeroso da Rainha, o olhar indiferente e cruel, que causava ódio e paixão no Rei. Sim... o desejo carnal haveria de esperar naquela noite, pois muito em breve seria saciado, juntamente com o desejo sádico de ver o sofrimento da mulher que se recusava a corresponder seu amor.

Afastou-se da porta, fechando-a às suas costas. Em passos rápidos e pesados, caminhou novamente pelo corredor, afastando-se desejoso, indo embora para seus próprios aposentos, onde tentaria em vão, ele sabia, descansar um pouco a mente. E conforme percorria o chão frio de pedra do castelo, sentiu, novamente, o olhar agourento das estátuas a lhe encarar.


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