O Rei Tirano escrita por Ayla Pupo


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/155402/chapter/1

Sara observava seu reflexo no espelho. As molduras do grande objeto oval, outrora douradas, cheias de brilho e realeza, pareciam velhas, escuras e carcomidas pelo tempo. E quanto tempo levaram para apodrecer daquele jeito ? Sara não tirou os olhos de seu rosto gêmeo do outro lado do vidro sujo... Apenas 10 anos, que foram capazes de corroer, destruir e definhar aquela peça de móvel tão bela e resistente. Pareciam tão longos aqueles dias... Dez anos, que, na mente de Sara, equivaliam a 100 anos de pura e inconsolável tristeza. Tinha certeza de que o Sol lhe pregava uma peça... não poderia fazer apenas uma década desde que seu cavalheiro e seu herdeiro haviam se partido. O estado deplorável e abandonado da moldura à sua frente podiam comprovar isso, bastava apenas encará-lo para saber. Foi então que, mais atentamente que antes, Sara encarou seu rosto logo à frente. Não fora apenas o espelho que envelhecera dez vezes mais veloz... não foram apenas as molduras que perderam o brilho, o fulgor, a austeridade de antigamente. Seu físico continuava belo e encantador, capaz de parar um exército, que descansaria por alguns segundos apenas para vê-la passar, porém o corpo não conseguia esconder a feiúra que se encontrava em seu interior. A Rainha procurou no profundo de seus olhos castanhos e não pôde encontrar... aquilo que um dia chamara de alma.

Vagarosamente, desviou o olhar. Não tinha forças para continuar a encarar sua imagem morta no espelho. Sentia vergonha... Pudor de continuar a viver. Sentia agonia... Aversão ao próprio aspecto. Os cabelos castanhos, exageradamente compridos e elegantemente cacheados, caiam sobre as costas semi-nuas. O vestido, cuidadosamente costurado pelas damas de companhia, descia-lhe sobre o corpo maduro, porém cheio de graça e sensualidade discreta. Os ornamentos em seu pescoço, orelhas e mãos brilhavam fortemente, atingidos pela Lua sorridente do lado de fora. E a coroa... magnificamente alojada em sua cabeça, dava-lhe o toque final, deixando-a com a aparência digna de uma verdadeira Rainha. Porém, o que é uma verdadeira Rainha sem um verdadeiro Rei ao lado ? Apenas sombra e subjugação. Nada daquela aparência externa refletia o tormento e miséria que se escondiam no peito de Sara, e ela sabia bem como esconder tais sentimentos por trás de uma postura austera e um olhar frio. Eram sua única arma contra a humilhação completa e irreversível. Afinal de contas, ele poderia ter domínio sobre seu corpo, suas roupas, atividades e falas, porém jamais teria domínio sobre seu coração e sua indiferença.

Foi pensando nisso que Sara distraiu-se por alguns segundos... meros pedaços de minuto, que passavam pelo vento como horas a fio. Horas em que Sara aguardava fortemente os piores momentos ao qual se submetia de forma humilhante periodicamente. Momentos cheios da mais vergonhosa e ofensiva atividade que exercia como Rainha do Rei Tirano. O Rei que nunca fora verdadeiramente seu.

Assustou-se, de repente. Um susto leve, quase imperceptível, que abalou violentamente seu espírito, porém não atingiu seu semblante sério e cheio de frieza. Voltou a olhar para o espelho, porém, dessa vez, não encarou seu próprio reflexo, deixando o olhar correr pelo quarto às suas costas, reproduzido pelo espelho. Ao fundo, deitado sobre uma imensa cama, repleta de lençóis finos e vermelhos, encontrava-se a figura do demônio a lhe encarar, olhando profundamente em seus olhos. Um sorriso lhe estampava a face, e Sara pôde perceber que naquela feição não havia alegria alguma, apenas sadismo e obsessão. O susto que levara havia sido resultado de um leve pigarro expelido pelos lábios amaldiçoados do homem confortavelmente esticado sobre o mar de lençóis. Ele chamava pela Rainha... que devia cumprir com seu dever de mulher.

Sara virou-se, por fim, e encarou de frente a figura que mais lhe dava asco em todo o Reino. O Rei Tirano. Sérgio era um homem bonito, ela poderia ter admitido, porém a maldade que se estampava em suas feições de homem desfigurava a real noção de beleza que a Rainha poderia ter por ele. Era alto, magro, porém com corpo definido e rígido. Os cabelos muito pretos eram compridos, jogados para trás e lisos como seda. Os olhos, igualmente escuros, possuíam um ar sereno, levemente caídos, porém transmitiam, ao mesmo tempo, uma enorme sensação de tempestade. Os gestos, exageradamente delicados e medidos, davam-lhe uma aparência suavemente andrógina e afeminada. E nada de toda aquela beleza e graça refletia a verdadeira fera que existia por trás de seus pensamentos doentios e imersos em crueldade. O único detalhe de sua aparência que combinava com a natureza medonha do Rei Tirano era uma cicatriz, profunda e fina, que lhe cortava o olho direito e terminava na maça de seu rosto ossudo. Uma marca antiga, que cicatrizara na pele, mas nunca em seu ego e sua memória...

Foi com um movimento de mão que Sérgio proferiu, então, a sentença de Sara naquela noite. O Rei ergueu o braço direito e chamou sua Rainha com um aceno breve e autoritário. Sara não ousou em desobedecer, porém seguiu a ordem em ritmo lento e receoso. Já passara por aquilo diversas vezes... há 10 anos submetia-se àquela imundície e ofensa, mas ainda agora, depois de tanto tempo, sentia a vergonha pesar dolorosamente sobre o coração despedaçado. Levou uma das mãos ao ombro direito, descendo com delicadeza o vestido, que escorregou leve para baixo. O mesmo movimento foi feito no outro ombro, e em um segundo todo o seu belo traje foi abaixo, repousando no chão de pedra fria. Sara permaneceu ali, imutável, rígida e fria, morta como os móveis do quarto em que se encontrava. E sentiu os olhos do demônio pousarem detidamente sobre seu corpo, saboreando cada detalhe, observando cada marca de violência que ele lhe deixara. A pele branca brilhava com a Lua, que iluminava as curvas da mulher. E, apesar da noite quente de verão, Sara sentiu um frio agourento bater em seu corpo nu e tenso. Suspirou ao estremecer, e tirou a coroa pesada de sua cabeça, que, agora vazia, deixava-a livre de qualquer posto importante e digno, tornava-a menos que uma simples mulher, fazia dela um objeto comum.

A Rainha deu seu primeiro passo, colocando um dos joelhos na cama e subindo nos lençóis com calma. Engatinhou até perto do corpo do homem a quem deveria chamar de Rei, que encostou uma mão gelada em sua face branca e sem expressão. Sérgio ajeitou-se no leito, puxando Sara para perto e colocando o rosto dela bem próximo ao seu. Como um animal, aproximou o nariz dos lindos cachos castanhos da mulher que tinha em mãos, fungando, puxando o ar com violência; desceu com o rosto até o pescoço dela, sentindo o calor daquela pele macia se fundir com a frieza de seu corpo magro. Mordeu-lhe a carne. Sentiu o corpo de Sara se retesar. E puxou-a para trás, agarrando-lhe os cabelos com a mão forte. Ficaram face-a-face, porém sua Rainha não queria lhe encarar nos olhos. Levou a mão livre ao rosto da mulher, apertando-lhe sem cuidado as bochechas, que se machucaram com as unhas compridas do homem, e levantou-o até ficar da altura do seu.

_ Olhe para mim.

Sua voz soara como um sussurro, porém forte como um trovão e imperiosa como a de um Rei, embora sem possuir a verdadeira essência de um monarca. Fora uma ordem única, prontamente obedecida pela mulher subjugada, que levantou o olhar e encarou a íris negra e cheia de demônios de Sérgio. O Rei Tirano sorriu-lhe mais uma vez com sadismo e satisfação e, antes de encostar violentamente seus lábios aos lábios sensíveis de Sara, disse:

_ Eu quero que você grite para mim...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!