Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 20
Vitória?




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Não havia tempo para lamber feridas. Não agora. Apertava o ombro de Aydee e lancei um olhar cansado ao redor. Vi minha própria confusão estampada nos rostos de Cecille e Damien. Olhei para a fumaça que se erguia do ponto onde a nave-tanque tinha explodido. Eram dedos negros tentando alcançar o céu e me deu uma vontade enorme de cair de joelhos e chorar. Finalmente havia encontrado alguém para pôr a culpa, mas não me fazia sentir melhor. Pelo contrário. Os soluços de Aydee não eram a trilha sonora que eu esperava ter em meu momento de gloria. O momento em que eu olharia o traidor nos olhos e o mandaria para o inferno por ter matado Rhes e tantas outras pessoas, por me ter posto nas garras do Chefe e sabotado cada passo que dávamos em direção a base segura.


Mas não havia sido assim. No lugar disso meu sorriso tranquilizador havia acompanhado Ernest enquanto tomava a decisão que salvaria nossas vidas. A pena foi maior que toda raiva que havia acumulado por todos esses meses. Com o ódio eu poderia lidar, ele iria embora uma vez que Ernest estivesse morto. Mas não era o que eu sentia. Nada tinha sido como havia imaginado.


– Dee – falei, me abaixando ao lado de Armand e pondo a mão no topo de sua cabeça. Estava tremendo tanto que tive medo que entrasse em choque - ele fez o que era certo.


Aydee levantou a cabeça e me encarou. Seu olhar fez minha mão se afastar, porque havia finalmente encontrado o ódio que esperava sentir.


– Como se isso melhorasse qualquer coisa. – ela falou, a voz fria como aço – As melhores intenções não inocentam um traidor. – fungou e reprimiu uma risada – Ao menos teve a decência de consertar a besteira que fez. Pena que não vai trazer ninguém de volta.


– Aydee – começou Armand, mas a garota não parou para ouvi-lo.


No lugar disso se desvencilhou de seu abraço e se levantou, afastando a poeira de suas roupas como se tivesse sido apenas mais uma sessão de treinamento.


– Aquele homem deixou de ser meu pai no momento em que começou a fofocar para o Novo Governo. – ela disse e seus olhos foram desafiadores de uma pessoa para a seguinte, como se esperasse alguém contradize-la – E teve o fim que merecia. Ponto final.


– Ninguém vai julgar as suas intenções Aydee – disse Damien, enfaixando a mão de Cecille que estava estranhamente quieta. Lembrei de como havia beijado seu filho antes de entrar para a luta. Talvez aquelas pessoas compreendiam a atitude de Ernest melhor que ninguém.


– Eu disse ponto final. – repetiu a garota e se afastou, checando suas pistolas enquanto nos virava as costas.


Troquei um olhar alarmante com Armand, mas não havia nada que pudéssemos fazer agora. Especialmente porque minha atenção foi de Aydee para a paisagem desértica que se mostrava através do buraco na lataria do transportador. Mas não eram apenas muralhas de arenito e poeira. Meu coração acompanhou o solavanco do transportador atingido e quando me pus de pé já tinha a pistola na mão novamente.


– Mais naves-tanque! – o grito deixou minha garganta como uma sentença de morte. E o era. Metade da cabine era metal retorcido, um monte fumegante que bloqueava a nossa vista. Mas antes disso as havia visto. Duas pelo menos, talvez três – Segurem-se!


– Você só pode estar brincando! – Aydee estava ao meu lado, cambaleando enquanto a lataria recebia uma nova rajada de tiros – Por que estão brotando da areia? – e então se lembrou e vi seus olhos flamejarem de determinação – Vou mandar todos para o inferno!


– Você não vai fazer nada! – Armand fechou sua mão na camisa da garota e me olhou – Deidre, o que fazemos?


O que fazemos? A pergunta ricocheteou por cima do barulho de metal cedendo. Nos morrermos. Quis dizer, mas estava determinada a não deixar Ernest morrer em vão. A cabine sofreu um solavanco menor e vi figuras surgirem contra o sol do outro lado dos escombros de metal. Mais L.O.P.S. Minhas pernas congelaram.


– De novo essas pestes? – Aydee tentava se livrar do aperto de Armand – Não temos uma lança misseis ou qualquer coisa do tipo?


– Um lança misseis nos mandaria pelos ares também. – Armand era uma mistura de nervosismo e raciocínio claro – Talvez teríamos mais sorte com manobras evasivas.
A ideia me devolveu o controle.


– Segurem-se! – rugi por cima do barulho dos L.O.P.S. tentando remover a lataria destruída que os separava de nós – O máximo que puderem!


Passei correndo por Damien e Cecille que prontamente se agarraram a objetos fixos da cabine e entrei na cabine de comando numa mistura de esperança tola e terror.


– Temos L.O.P.S. tentando entrar! – Anselme e Enzo me encararam sem dizer uma palavra – Faça o transportador chacoalhar o máximo que puder, temos que nos livrar deles!


O velho foi o primeiro a se mexer. Arregaçou as mangas dramaticamente e seus dedos começaram a voar sobre o teclado de comando.


– O que está fazendo ai parado como um fantasma? Vá checar se seus garotos estão bem, rápido! Em cinco segundos faço esses robôs de uma figa beijarem o chão do deserto! – quando Enzo saiu da cabine acrescentou para Fadwa – Querida, segure as crianças.


– Você fique aqui! – rugiu quando fiz menção de voltar – Recebemos alguns sinais estranhos. Fique e cheque o que está acontecendo.


Me deixei cair no assento de copiloto a tempo de não ser jogada contra a parede quando Anselme fez a primeira manobra. Não sei como conseguiu manter o controle do transportador, porque fechei os olhos quando chegamos perto demais de uma rocha de dezenas de metros. As crianças no colo de Fadwa choravam, mas ela estava sentada com um cinto de segurança envolvendo seu corpo e não as soltaria por nada. Tentei acessar o painel para checar os canais de comunicação, mas na terceira tentativa meu jantar da noite seguinte ameaçou dar o ar de sua graça. Anselme ria e eu a ideia de que tivesse enlouquecido se tornava cada vez mais clara até o grito de Aydee se sobrepor ao caos.


– VELHO DESGRACADO, PARE DE NOS TRITURAR OU VAMOS MORRER!


– NÃO FALE COMIGO ASSIM MOCINHA! – devolveu Anselme, mas quando abri os olhos o transportador já não parecia estar deslizando em uma pista cheia de manteiga. Respirei fundo, apenas para perceber o sinal de comunicação brilhando em tom alaranjado na minha frente.


– Parece que estamos sendo requisitados. – disse o velho e me olhou com uma expressão confusa – Achei que tínhamos fechado todos os canais.


– Pode ser o Novo Governo. – arrisquei.


– Para que? Nos desejar uma boa morte? – Anselme apertou o botão – Vamos ouvir.


No lugar de uma voz artificial nos sentenciando a morte veio uma humana.


– Estão entrando em território restrito sem autorização – poderia parecer uma gravação, se não soasse tão entediada – aconselhamos uma rota alternativa ou serão destruídos.


Olhei para Anselme.


– Isso é....? – comecei, sentindo pela primeira vez naquele dia que poderia viver o suficiente para jantar.


Anselme tirou os óculos, os dedos tremiam.


– Sim. – balbuciou encarando o painel de comunicação como se fosse a coisa mais bonita que já vira na vida – Estamos em contato direto com a base segura.


Um sorriso se estampou em meu rosto. Havíamos conseguido. Minha voz estava tão tremula quanto os dedos enrugados de Anselme quando me inclinei sobre o painel.


– Somos refugiados, buscamos abrigo.


– Negativo. – veio a resposta no mesmo segundo – Abortem a rota agora ou serão destruídos.


– O que? – comecei, mas a voz de Enzo me interrompeu.


– Conseguimos nos livrar dos L.O.P.S. – anunciou encostado na porta ligeiramente pálido – Mas ainda temos três naves-tanque na nossa cauda. – seus olhos se voltaram para o painel – O que está acontecendo?


– Eles querem nos matar. – consegui dizer, sentindo uma onda de náusea tomar meu corpo. Afundei no assento porque já não aguentava ficar de pé. Enzo avançou e apoiou as mãos sobre o teclado.


– Transportador 86-ZN, pedindo auxilio para eliminar inimigos em perseguição. – sua voz era autoritária e a resposta demorou um pouco mais dessa vez.


– Negativo 86-ZN. Sua chegada não está agendada. Identificamos três naves-tanque em seu encalce, elas também não são bem vindas. Há uma barreira a dois quilômetros a sua frente. Abortem sua rota ou serão esmagados.


– Você só pode estar brincando.


A cabeça de Anselme começava a ficar vermelha e comecei a falar antes que xingasse o comunicador.


– Não vamos abortar a rota. – falei decisiva – Se dermos meia-volta seremos destruídos por robôs do Novo Governo. Por favor, remova a barreira.


– Negativo. – a voz foi taxativa - Fim de transmissão.


Encarei o painel luminoso a minha frente e quis chorar de desespero. Então meus olhos se voltaram para as crianças aninhadas no colo de Fadwa. A jovem beijava a cabeça de sua filha e vi lagrimas descerem pelo seu rosto. E senti raiva.


– Anselme, abra o canal de transmissão.


– Eu não posso –


– Apenas rastreie de onde veio e a restaure! – ordenei – Você faz isso dormindo!
Meus olhos encaravam o caminho a frente. Não havia sinal de base segura, nem muros ou qualquer coisa que indicasse que estávamos perigosamente perto de um santuário de refugiados. Tampouco havia sinal de uma barreira, mas havia visto aquelas coisas em ação. Eram completamente transparentes e poderiam ser ativadas e desativadas com um simples comando. E eram resistentes o suficiente para aguentarem o impacto de um transportador a nossa velocidade. Em poucos segundos nos transformaríamos em um monte de carne e metal retorcidos.


– Consegui. – anunciou Anselme e me olhou em dúvida. Enzo cruzava os braços, impotente.


Limpei a garganta e me certifiquei de que estava falando exatamente sobre o microfone.


– Meu nome é Deidre. Eu tenho 14 anos. – será que isso estava certo? – Comigo estão Anselme, Enzo, Fadwa, Armand, Aydee, Damien e Cecille. E Salimah e Rachid. – olhei para os bebes e minha voz se estabilizou – Os dois últimos têm menos de um ano. Somos fugitivos do Novo Governo e cruzamos esse deserto há meses, com a promessa de abrigo. Se estão dispostos a nos verem esmagados contra sua barreira, que seja. Mas não se esqueçam dos nossos nomes.


Tive medo que estivesse falando sozinha.


– Sua chegada não é autorizada. – a voz já não parecia apática – Por favor, deem meia volta.


– EU NÃO VOU MANDAR ESSAS PESSOAS PARA A MORTE! – gritei – EU FUI ORDENADA A TRAZE-LOS A BASE SEGURA POR RHES E É ISSO QUE EU VOU FAZER. EU VOU CUMPRIR MINHA PALAVRA!


Meu coração pulsava em minha cabeça e meus músculos relaxaram, aceitando.


– Eu vou cumprir a minha palavra. - repeti, enfiando a mão em um dos meus bolsos surrados. O simples toque me acalmou. Mãe, pai, estou chegando.


– Rhes? – veio a pergunta do outro lado e a voz se foi.


– Deve ser a qualquer momento agora. – avisou Enzo e colocou as mãos sobre meus ombros. Poderia tentar alcançar Damien e Armand, mas escolheu ficar ali. E eu lhe deveria para sempre por isso. Envolvi a foto dos meus pais com dedos escorregadios e imaginei como seria morrer. Se iria doer muito ou se minha cabeça simplesmente se quebraria com o impacto da alta velocidade. Os bebes haviam parado de chorar e me peguei pensando se haviam entendido a conversa. A cabine foi mergulhada no completo silencio e mordi os lábios, começando a contar.


Quando estava em trinta e seis a porta da cabine deslizou para o lado e Aydee entrou como um furacão.


– Ahm, não é o melhor momento para meditação coletiva, gente. Acho que tem algo grande acontecendo lá fora.


E quando me levantei em direção a uma das janelas pude ver do que ela estava falando.


–x-x-x-


As paredes de arenito vermelho nos rodeavam, altas, robustas. O sol me cegava quando tentei encontrar algo que indicaria que estávamos a salvo e foi então que os vi. Pequenos pontos que refletiam os raios solares sobre as pedras, dezenas delas, como se alguém tivesse despejado diamantes sobre a rocha quente.


– Atiradores. – avisou Enzo em voz agourenta. Mas não haviam começado a atirar ainda e para mim aquilo pareceu um bom sinal.


– Anselme, e a barreira? – perguntei com cuidado, ignorando o barulho dos nossos escudos sendo mandados para o espaço pelo transportador carregado de L.O.P.s. O painel de alerta soltava todo tipo de bipe e mergulhara a cabine em luzes avermelhas. Se a barreira não nos matasse, nossos perseguidores o fariam. E logo.


– Deveríamos ter passado por ela há alguns segundos. – Anselme estreitou os olhos sobre o arenito que nos cercava – O que estão esperando? – quis saber, ciente de que ninguém sabia a resposta.


O labirinto de pedras nos forçou a fazer uma última guinada para a direita e meu coração pulou uma batida.


– Merda. – disse Aydee por todos nós, os olhos castanhos encarando o fim da linha.
O paredão rochoso encontrava seu fim talvez um quilometro adiante. Fadwa soltou um pequeno lamento, trazendo as crianças para mais perto de si. O transportador deu um solavanco e escapamos de raspar no arenito por uma questão de palmos. Não poderíamos continuar.


– Deidre, o que fazemos?! – o robô perguntou para mim e quase comecei a rir.
Não tinha ideia.


– Mantenha a velocidade. – disse Anselme sobre a confusão de vozes e eu o ouvi.
Aydee também.


– Nem morta! Tá vendo aquela muralha de pedras? Vamos virar patê!


– Espere. – falei, seguindo o olhar de Anselme pelo paredão. Não havia nada no aspecto das rochas que me faria seguir adiante, mas quando estava prestes a falar isso para o velho o comunicador a nossa frente estalou.


– Vocês têm permissão para seguir em frente. – a voz desconhecida sugeria que nos deixássemos colidir com toneladas de arenito no mesmo tom que se usaria para falar sobre o tempo.


A curta frase fez com que a cabine virasse uma confusão de vozes e gritos. Aydee defendia com unhas e dentes a ideia de dar meia-volta porque tínhamos mais chance com um punhado de L.O.P.S. Anselme era seu maior oponente, Enzo apenas permanecia calado com os olhos nos atiradores. Mas se a presença deles tinha algum proposito, não pareciam apressados em mostrar. Quando um dos robôs simplesmente avançou sobre o painel de controle Anselme foi mais rápido.


– É provável que seja uma armadilha. – anunciou fechando a mão sobre o braço de Anselme, pronto para remove-lo de lá.


Captei o olhar do velho e a sombra do paredão caiu sobre nós.


– Mantemos nossa trajetória. – decidi. Mesmo se tentássemos parar agora não tínhamos distancia suficiente.


A ordem vazia fez um sorriso se abrir no rosto de Anselme. Olhou vitoriosamente para o robô, que se afastou sem falar mais nada.


Aydee se aproximou dos painéis de controle. Não parecia ouvir os alertas de colisão iminente que haviam se juntado ao dos escudos se deteriorando. Um corte tinha se aberto no supercílio esquerdo e ainda havia rastros de lagrimas em seu rosto poeirento. Pousou uma mão na cadeira de Anselme e se inclinou em sua direção.


– Posso saber por que ri na cara do perigo, seu velho lunático? – quis saber entre os dentes. Poderia não parecer, mas estava apavorada.


Anselme simplesmente cruzou os braços, como se estivesse prestes a assistir seu filme favorito.


– Não há perigo adiante. – falou decidido, olhando para o rochedo quase em reverencia – Vocês vão ver.


O vi rindo e quase acreditei que o estresse o havia vencido. Enterrei as unhas nos braços da cadeira e esperei, rezando para que nosso transportador permanecesse inteiro.


Foi como cortar o vento. Em um momento o paredão de arenito estava lá, no seguinte um vale pedregoso se abria a nossa frente. Não havíamos nos recuperado do choque, quando um estrondo atrás de nos fez o transportador saltar para frente.


– Parece que os L.O.P.s são história. – Aydee riu quando conseguiu se levantar e plantou um beijo na cabeça calva de Anselme – Essa foi boa, velho.


O vale tinha de centenas de metros e era rodeado pelos paredões de arenito, completamente isolado pela muralha natural. Eu não tinha tanta certeza sobre o que era obra da natureza e o que os humanos haviam mudado. A base segura era uma ilha em meio a um labirinto estritamente vigiado.


– Temos companhia. – e Enzo estava certo.


Enquanto todos se espremiam nas janelas para ver melhor, arrastei Anselme de lado. Seus olhos ainda brilhavam de excitação quando perguntei como sabia que se tratava de uma ilusão.


– Minha irmã, Delphine. – disse com orgulho – Reconheceria seu trabalho em qualquer lugar.


– Você disse que ela trabalhava principalmente com robôs. – lembrei da conversa que parecia vir de outra vida.


– Receio que Delphine seja revolucionária em qualquer campo de tecnologia que lhe chame a atenção. – Anselme me lembrava uma criança na manhã de seu aniversário – Mal posso esperar para vê-la!


Lhe dei um sorriso e cumprimentei Armand que passava pela porta da cabine.


– Então finalmente chegamos. – ele disse, ajeitando os óculos trincados – Vamos ver se a base segura vale todo o alarde.


Apoiava Anselme quando as portas do transportador deslizaram para o lado. Podia senti-lo tremer e quando olhei para o céu pude ver o que havia denunciado que o rochedo de arenito não era de verdade. Pequenos pontos contrastavam no céu e o tom de azul era ligeiramente estranho. Que deixasse passar luz do sol era impressionante.


– Visto de cima, continuamos em um labirinto de arenito que não merece a atenção do Novo Governo. – Anselme explicou deliciado – Depois te explico.


Anui, contente por vê-lo animado com algo diferente da nossa sobrevivência.
Por todo lado, habitantes da base segura levantavam as cabeças para nos estudar de cima a baixo. Pareciam pessoas completamente comuns, ainda que tinham a aparência saudável de quem recebia as refeições diárias necessárias e não se preocupava com bombardeios antes de dormir. Vi Enzo cumprimentar um senhor que tinha o ar pomposo de quem mandava no lugar e meus olhos passaram ligeiramente por um jovem que o acompanhava.
Me aproximei.


– Tínhamos dois transportadores. – falei sem rodeios depois de não ver sinal de Bob e os outros – Não receberam notícias?


O rapaz me observou com interesse.


– É menor que eu esperava. – cumprimentou e reconheci a voz que nos havia guiado até a base segura – Seus amigos estão seguros. – garantiu. Era moreno e tinha um rosto bonito, de sorriso rápido coroado com covinhas - Nos alcançaram uma hora antes e tiveram uma chegada bem mais tranquila que vocês.


As palavras fizeram o ultimo peso ser retirado das minhas costas. Me senti tão leve que poderia flutuar se me concentrasse o bastante. O senhor pomposo se virou para mim e me cumprimentou, o sorriso agradável me revelando que ele e o rapaz deveriam ser parentes. Disse um punhado de coisas, mas me desculpei, a ideia de que havíamos alcançado nosso destino se assentando lentamente.


Senti o olhar do trio sobre mim quando me afastei sem mais uma palavra. Vi Anselme conversando com uma das pessoas e sua expressão lentamente desmoronar. Também vi Aydee e Anselme se abraçando sem trocar palavra alguma. Em algum lugar atrás de mim, Salimah dava seus primeiros passos encorajada por Fadwa. Alguns haviam visto a esperança se tornar real diante de seus olhos, outros foram lembrados que o mundo nunca dava algo sem tirar outra coisa em troca. Anui em direção aos robôs que ainda se aglomeravam diante do nosso transportador, incertos sobre o que fazer a seguir. De qual seria sua função agora.
Eu também não tinha ideia. Olhei para o grande vão escuro que se abria no arenito na extremidade do vale. Era um imenso portão que escondia a verdadeira base segura, protegida tanto por tecnologia quanto pelo empenho e trabalho duro de todos seus habitantes. Ver todos que haviam sobrevivido a viagem fez a falta dos que não estavam mais ali morder mais forte que nunca.


Quando alcancei a entrada, foi como se meus pés finalmente se recusassem a dar mais um passo. Me encostei no arenito bruto, ciente que nossa jornada havia terminado. Em uma mão, meus dedos suados se agarravam a foto dos meus pais, na outra, o chip de Rhes se aninhava contra minha pele, agora inútil. Pensei na senhora Adele e a ideia de não ter nada dela para me lembrar me fez perder forças para ficar de pé. Desejei que Edda estivesse ali. E Zahra e Danton. Erwan. Mordi os lábios, esperando que estivessem vivos. Poderiam estar mortos, mas eu precisava deles vivos. Sangue fazia o seu caminho pelo meu rosto, o corpo doendo em tantos lugares diferentes que parecia impossível continuar.


Eu poderia ter morrido. Ganhar segurança me lembrou de tudo que havia perdido. O que faria agora? Não havia parado para pensar sobre o futuro porque era doloroso demais e porque no fundo, no fundo, achava que não sobreviveríamos. Mas sobrevivemos. Achei que seria deixada para trás, desejei ser deixada para trás, mas estava ali. Havia feito planos sobre o que faria assim que pisasse na base segura, mas sozinha eles pareciam rascunhos feitos por uma mão jovem e esperançosa demais. Havia me treinado para deixar tudo o mais claro possível para todos ao meu redor, no caso daquele ter sido o último dia que passávamos juntos. Passei tempo demais pensando sobre quais seriam minhas últimas palavras. Pensando de verdade porque cada amanhecer havia se mostrado uma surpresa quase agradável.
Poderia ter morrido, mas estava viva.


E no fim foi isso que me derrubou. Cai de joelhos, dando um exemplo patético de líder triunfante quando os soluços se libertaram do meu peito pesado.


Porque havíamos vencido, mas não me sentia vitoriosa.


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Notas finais do capítulo

Então é isso, finalmente chegamos ao fim desse ato. Parece que faz séculos que começamos essa historinha e dá uma sensação estranha ver a pequena Deidre agora já não tão pequena alcançar seu objetivo. Espero que tenham gostado e por favor comentem o que acharam, desse capítulo, de tudo, do que quiserem! Um beijo no kokoro de quem teve paciência pra nós acompanhar esse tempo todo e se preparem que um segundo ato está por vir!

— Lud



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