Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 18
Heróis e a noite antes do fim


Notas iniciais do capítulo

WE ARE BACKKKKKK. ENJOY!!



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Armand fechara o mini-transportador atrás de mim. O barulho da porta se fechando me deixou na mais completa escuridão. A minha cabeça rodava e o pulsar agressivo que vinha da minha coxa era a única sensação que me prendia ao meu corpo. Levantei, tateando o que devia ser o mecanismo que liberaria a saída em circunstâncias comuns. Em circunstâncias comuns, porque quando o esmurrei com os punhos melados de sangue nada aconteceu. Mudei de posição, o coração martelando em meus ouvidos. Não. Não, por favor.

– ABRAM! – gritei. Mas o que eu queria dizer era “venham para dentro”. Venham para a segurança. Não morram.

Armand deveria ter voltado para ajudar Aydee. Claro que ele voltaria. Armand, que não sabia nem como segurar uma arma, que levara um tiro, onde, no ombro? Que levara um tiro e mesmo assim não me soltara. E Aydee que tão prontamente ficou para trás para ganhar algum tempo, por menor que fosse. Escorreguei no que devia ser meu próprio sangue quando tentei ter uma posição melhor para chutar o metal. Coisa estúpida, estúpida de se fazer. Cai e me neguei a cair no choro. Fiquei em silêncio absoluto, tentando ouvir o que se passava ao redor. Gritos, tiros, mais gritos. A parede metálica era alvejada, mas resistiu. Eu esperei pelo que pareceu uma eternidade, mas que mais tarde devia ter sido menos que meio minuto. De repente os tiros contra o mini-transportador cessaram. Esperei pela abertura e por Armand e Aydee que entrariam num jorro de luz. No lugar disso ouvi duas batidas surdas contra o exterior da lataria. Duas batidas. Rhes me dissera uma vez que significavam algo como “vamos!”, um sinal para o motorista de que era hora de cair fora o mais rápido possível. Mas naquele momento era a confirmação de que Aydee e Armand não retornariam. Ouvi os motores do mini-transportador ressoarem abaixo dos meus pés e me arrastei para o lado oposto, o lado para o qual eu imaginava que só uma parede de aço me separava de quem deixaria meus amigos para trás. Havia bancos que cobriam ambas as laterais e guiando-me a partir deles consegui chegar onde queria. Fechei as mãos em punho e bati contra a parede metálica.

– ESPERE! – gritei a plenos pulmões – AINDA TEMOS PESSOAS LÁ, ESPERE!

Mas estávamos claramente nos movendo. Lembro-me de ter batido contra a parede até não sentir minhas mãos e a garganta falhar. E de ter gritado alguns insultos. Apenas eu estava naquele mini-transportador, quantas pessoas havíamos deixado para trás para me tirar de lá? Quantas mortes a mais para pesar sobre meus ombros, para encher meus pesadelos? Encolhi-me contra um banco, dando descanso aos meus ferimentos e tentando controlar minha respiração. Levei uma mão até o ferimento na coxa: sangue gorgolejava debaixo dela, tentando deixar meu corpo. Aquilo fora obra de uma arma convencional, como as pistolas de Aydee. O que significava que uma bala estava alojada em algum lugar na minha carne e que continuaria a sangrar até receber cuidados. Tirei o meu casaco e amarrei as mangas o mais apertado possível alguns dedos afastado do ferimento numa tentativa de diminuir a quantidade de sangue que estava perdendo. Encostei a cabeça contra a lataria. Cada centímetro do meu corpo doía e minha mente mergulhada num oceano de impotência, raiva e tristeza. Imaginei que talvez o motorista fosse um dos homens do chefe e que estava sendo na verdade levada para um lugar onde encontraria a morte mais dolorosa possível num último ato de vingança. Naqueles minutos dentro do mini-transportador eu já não me importava. Mas quando finalmente paramos não foi o que aconteceu. Passei o tempo num balançar entre a consciência e o desmaio e quando a luz avermelhada invadiu o espaço onde estava tentei me erguer, o canivete em punho. As figuras que abriram o compartimento estavam contra a luz, seus rostos sombras desconhecidas. Estava considerando se deveria arriscar uma aproximação ou não quando uma delas quebrou o silêncio.

– Olhe para ela, tão assustada quanto um coelho na toca. Venha garota, demos um jeito nas raposas.

– Aydee?

– Pelo menos até a última vez em que chequei.

Um misto de soluço e risada escapou da minha boca e me arrastei o mais rápido que pude em direção a eles. Armand também estava lá, com uma lente dos óculos quebrada e um sorriso exausto nos lábios. Quando a distância entre nós era pequena demais notei que estava indo muito rápido, mas estava tudo bem porque eles me seguraram em um abraço instável que nos levou de encontro ao chão.

– Eu pensei que... – comecei a dizer, o nó dissolvendo-se em minha garganta.

– Que bateríamos as botas? - completou Armand, batendo leve em minhas costas – Aydee é boa demais para isso.

– Não me dê todo o crédito, você até acertou um que eu vi.

– Sim e estava mirando no que estava a dois passos de você.

– Oh, imagino que o fim é o que importa. Agora vamos, Deidre, você está pálida demais para meu gosto.

Depois de alguns arquejos de dor (terminou que ninguém saíra ileso da pequena aventura) conseguimos nos levantar, ou no meu caso, ser içada. Minha vista começara a ficar embaçada, consegui identificar apenas que estávamos cercados de rochas enormes que formavam uma espécie de muralha protetora antes das minhas pernas fraquejarem. Armand me apoiou e foi nesse momento que vi o ferimento em seu ombro.

– Como isso está indo? - quis saber, olhando firme em seus olhos verdes para detectar qualquer mentira.

Armand deu uma olhadela em Aydee, que desaparecia por trás de uma das pedras para achar o restante do grupo.

– Foi de raspão. – assegurou Armand numa voz calma – Você me preocupa mais.

Afastei as mechas sujas de suor e poeira do rosto e tentei soar firme como ele.

– Não foi uma estadia prazerosa, mas tenho certeza que você e Fadwa podem dar um jeito.

– Eu imagino quantas vezes teremos que remendar você – Armand disse e se arrependeu quase que imediatamente – Não quis ser rude.

– Está ok, Armand, você não conseguiria ser rude nem se quisesse – respondi e suspirei de alívio ao ver Damien e 74-S surgirem nos encalços de Aydee – Nada de remendos depois de hoje, agora estamos muito perto.

Para as circunstâncias, o ataque fora muito bem planejado. As crianças, Cecille, Fadwa, Anselme e Ernest haviam ficado para trás no transportador que fora deixado no labirinto de arenito, longe o suficiente para estarem seguros e perto o suficiente para monitorarem qualquer sinal emitido pelo grupo de ataque. 63-S também ficara no transportador suporte, caso algo saísse completamente errado e precisassem partir com urgência. O restante havia partido em dois grupos: Enzo e Damien fariam a simulação de um ataque com o transportador enquanto o resto dava a volta no complexo e libertava as mulheres e crianças. Quando os trabalhadores receberam armamentos era tarde demais para os guardas do chefe que tinham se concentrado em combater o transportador. Em algum ponto Aydee e Armand se separaram do grupo e conseguiram acesso ao sistema central, por onde o garoto descobrira a localização do aposento do chefe. Os trabalhadores estavam em número bem maior e com suas famílias em segurança se transformaram numa força ofensiva formidável, o que garantiu acesso a mais dois transportadores, um deles recheado de mantimentos que ainda não haviam sido descarregados. Ambas as coisas levaram 74-S a não me encher de acusações sobre como era uma líder terrível no pequeno percurso até o grande grupo e não sabia dizer se era por causa do meu estado lastimável ou pelo que conseguimos fazer, mas parecia até razoavelmente simpático.

– Foi estúpido ser pega, mas conseguimos nos aproveitar bem do resgate. – assumiu quando atingimos a pequena clareira na floresta de pedra.

– Está feliz por não ter nos dizimado ao prendê-los até que mudassem de opinião? - quis saber Aydee, que levou um olhar de censura de Armand e deu de ombros.

– Não estou inteiramente insatisfeito. – e isto teria que bastar.

Enzo estava insatisfeito. Na verdade, estava lívido. Separou-se do grupo de trabalhadores que havíamos resgatado assim que teve o primeiro vislumbre de Armand. Foi a primeira vez que vi o casal brigar e pela expressão de Armand aquilo também era uma situação nova para ele.

– Eu apoiei que ele ficasse como suporte de comunicação, Damien, nunca para isso! – ele disse, a voz carregada de raiva – FADWA! – gritou pelo ombro e arrancou Armand de perto de mim para examiná-lo melhor.

– Fadwa não é nossa empregada para que grite assim por ela. – devolveu Damien com calma, mas Enzo não parecia escutar – E há pessoas que precisam mais da atenção dela no momento.

– Como isso aconteceu? - Enzo olhou para o rosto de Armand e indicou o ferimento no ombro.

– Pai, foi de raspão. Aydee já cuidou, quase não está doendo.

Os olhos acusadores de Enzo voltaram-se para a garota que assumira o lugar de Armand no trabalho de impedir que eu caísse na frente de todos.

– Aposto que sim. – disse numa voz dura – Imagino que todos devemos estar felizes pela sua pequena aventura não virar um massacre.

Aydee estava prestes a dizer algo, mas Armand afastou as mãos do pai com delicadeza.

– Eu estou bem. Foi Deidre quem quase morreu, pai.

Apenas agora Enzo pareceu notar que eu estava ali e meu corpo devia estar realmente num aspecto terrível porque vi a vergonha tomar seu rosto. Damien segurou o seu ombro.

– Nosso filho está seguro, agora vamos fazer com que isso se aplique a todos os outros.

Enzo anuiu em silêncio e veio na minha direção, me erguendo no colo no exato momento em que minha vista começava a ficar com manchas escuras novamente.

– Fadwa está cuidando dos outros na enfermaria. – ouvi Damien dizer antes de cair na escuridão.

Acordei com as mãos leves de Fadwa sobre meu rosto. Estava limpando um corte que eu sequer lembrava que existia e seus pequenos olhos sorriram ao me ver piscando para me acostumar a luminosidade da enfermaria improvisada.

– Olá, Deidre – disse descartando o algodão avermelhado, vi que havia um pequeno monte deles na cabeceira junto a um pote e um pano cheio de sangue que ela deveria ter usado para os ferimentos maiores – Estou feliz que esteja despertando.

Tentei sorrir e ergui a cabeça um pouco para dar uma olhada na minha coxa. Para meu alívio já estava enfaixada e devo ter deixado isso transparecer em minha expressão porque Fadwa riu baixinho. Seu cabelo castanho estava trançado para o lado e apesar de seu modo cuidadoso e paciente percebi que estava tendo um dia cheio.

– Quantos mais?

– Machucados? Ah, por volta de uma dúzia. E não se preocupe. Ninguém estava pior que você. Vou apenas terminar de limpar esta ferida aqui e então vou deixá-la descansar.

Observei enquanto molhava uma gaze limpa com um líquido que deveria arder, coisa que se confirmou assim que encostou-se a minha bochecha.

– Desculpe, querida. – ela disse com seu sotaque suave - Você teve um dia difícil, vou trazer algo para comer e beber. Amanhã se sentirá melhor. Eu prometo.

Agradeci e a observei deixando a cabine. Esforcei-me para lembrar, agora deveríamos ter quatro transportadores. Quatro transportadores e comida mais que suficiente para o último pedaço da viagem. Estar chegando perto do fim me deixava ansiosa e tensa. Ansiosa porque a simples idéia disso tudo finalmente terminar me dava uma sensação de liberdade com a qual não sabia o que fazer e tensa porque algo ainda poderia dar errado. Até estarmos dentro da base segura estávamos expostos a todo tipo de perigo. E havia ainda o traidor. Este último percurso era crucial também para ele ou ela, porque significava a última chance de nos entregar de alguma forma. Pediria para Anselme ficar de olho nos comunicadores, em busca de qualquer sinal fora do comum. O peso da responsabilidade me esmagava mais do que nunca, agora tínhamos não apenas o nosso grupo, mas cerca de doze famílias a mais. Havia dado uma olhada nelas enquanto Damien e Enzo brigavam. Eram pessoas que passaram meses sendo aterrorizadas, ameaçadas e postas sob todo tipo de violência e fome. As meninas me atingiram em cheio, principalmente as que passavam como eu pela fase de transformação em mulheres porque havia entendido muito bem as ameaças do chefe e os olhares de seus subordinados. Os olhos fundos daquelas garotas denunciavam sofrimento interminável e fiz uma promessa silenciosa que nunca mais passariam por algo parecido. Nunca mais.

Quando a comida veio era Bob quem a trazia. Seu rosto iluminou-se quando me viu e com alívio vi que passara quase ileso pelo caos do dia. Quando chegou ao lado da minha cama não soube onde colocar a bandeja improvisada e no fim decidiu-se por colocá-la sobre minha barriga.

– A comida é boa. – disse olhando para a sopa enlatada, a pêra e um pequeno pedaço de pão. Colocou a água na mesa de cabeceira e não soube direito o que fazer a seguir – Você está bem?

– Me dê dois dias e estarei saltitando por aí. – sorri – Como estão os outros?

– Felizes. – disse simplesmente – Os robôs disseram que vamos para um lugar seguro.

– Estão tratando vocês bem?

– O com o narigão nos proibiu de pegar comida à vontade.

– Ele normalmente corta o barato de todos. – concordei, molhando um pedaço de pão na sopa.

Bob me observou comer em silêncio e a cada mordida a sensação de querer me dizer algo aumentava. Quando engoli os comprimidos que Fadwa havia deixado para trás estava curiosa demais para fingir que não percebia.

– Qual o problema? - o incentivei.

O rapaz remexeu as mãos, o olhar perdido em algum ponto atrás de mim.

– A enfermeira disse que não deveria perturbá-la até amanhã. Os comprimidos deveriam ajudá-la a dormir.

– Robert, sei que não estaria assim por alguma besteira. Por favor.

Bob suspirou, sentando na cama ao meu lado. Tive medo de cair no sono antes de ter contado o que o estava incomodando, mas suas palavras fizeram qualquer resquício de cansaço evaporar do meu corpo.

– Ouvi algo no transportador que nos levou até aqui. – ele confessou, os dedos mais inquietos que nunca – Os robôs comentaram que deveriam tomar cuidado e nos monitorar, porque um traidor já era o bastante. Eu não quis escutar, apenas procurei por alguém para ajudar a velha Jenine. Ela estava tremendo.

– Não precisa se desculpar, Bob, ninguém fará acusações contra qualquer um de vocês. Eles estão apenas cautelosos depois do que aconteceu em Auch.

Felizmente não perguntou o que se passara na cidade bélica, no lugar disso balançou a cabeça.

– Não, não. Não é esse o problema. O problema é que eu acho que sei quem traiu vocês.

– Você o quê? – meu estômago se revirou e tive medo que vomitasse em cima do rapaz. Cerrei os punhos, me arrependendo assim que a dor aguda partiu deles e se espalhou pelo braço. Ignorei a dor e mudei a posição da almofada para que ficasse mais ereta. Mudei o tom, forçando minha voz a soar como a de uma líder e não uma criança receosa – O que você disse?

A pergunta certa deveria ser quem, mas no fundo acho que não queria saber. Havia me apegado a todas aquelas pessoas, aprendido a amá-las e protegê-las não era apenas uma obrigação, mas uma necessidade que sentia debaixo da pele. Mas separar o traidor era para o seu bem e foi por isso que encarei Bob, preparando o terreno para a bomba.

O rapaz parou de torcer os dedos.

– Recebemos um aviso. – falou finalmente – O plano de vocês de buscar mantimentos não era segredo para nós.

– Como?

– Alguém contatou o Chefe. Mandou uma mensagem com a hora aproximada em que agiriam por um canal aberto. – olhou para mim como se pedisse desculpas – Foi uma armadilha. Uma armadilha para capturá-los.

Enzo, meus pensamentos sussurraram, acusadores. Proibira Armand de participar da empreitada de antemão, passou as nossas informações para o inimigo, perdera o controle ao ver o filho envolvido no meu resgate. Minhas unhas se cravaram no leito, a raiva ardendo em meu corpo e me cegando para qualquer outra hipótese.

– Chame Enzo aqui. – falei para o rapaz – E traga os robôs.

Bob hesitou, como se não entendesse o que eu tinha acabado de falar. Queria Enzo longe daqui, queria ver a sua expressão quando fosse acusado dos seus feitos. O queria longe de Armand e Damien.

– Vá!

– Enzo? – Bob repetiu – O homem que discutiu no acampamento quando vocês voltaram? – ao ver a conformação em meu rosto balançou a cabeça, frustrado – Eu acho que não seja ele, Deidre.

– Por quê?

– Porque se o que ele nos contou é verdade, ele trabalhou no governo. Ele sabe o que o Novo Governo faz com humanos que tentam escapar de sua destruição. E perguntou se tínhamos recebido ordens partidas de cima há pouco tempo. Acho que desconfiava que nossa preparação fosse causada por informação sobre as intenções de vocês desde o momento em que você foi capturada.

– Eu... Entendo. – disse e quase achei bom estar cobertas de hematomas e queimaduras no rosto, o que impossibilitava saber se estava corando ou não. Como tinha sido rápida em apontar o dedo para alguém sem considerar todos os pontos. Como tinha sido idiota. Devia a Bob por ter me poupado de passar vergonha diante de todo o acampamento porque Enzo provavelmente não tomaria a acusação de bom grado. Tampouco sua família.

– Quem você acha que pode ter sido?

– Bom. – Bob ficava realmente satisfeito consigo mesmo quando alguém perguntava a sua opinião, acho que isso havia acontecido muito pouco antes de se juntar ao nosso grupo – Alguém com acesso aos computadores de bordo. Você confia nos robôs?

– Confio que seriam incapazes de comprometer a própria missão.

– Se foi uma pessoa ela não deve ter sido movida pela vontade de destruir o grupo... Talvez o Novo Governo prometeu não machucar ninguém, apenas capturar.

– Ninguém que passou pelo que passamos acreditaria nisso. – o cansaço finalmente me alcançava, sentia os membros dormentes pelo efeito da medicação e tive que sacudir a cabeça para manter a mente clara.

Bob deu de ombros, sem novas idéias.

– Tempos assim geram todo tipo de esperança nas pessoas. E acho que talvez a mais desesperada e tola delas seja achar que o outro lado vai soltar as armas e nos dar a mão. – foi a vez dele de ficar vermelho ao notar minha expressão surpresa e se desculpou – Meu pai dizia isso quando eu tinha pena dos subordinados do chefe enquanto nos maltratavam. Mas até agora acho que continuo tendo, eram os mais desesperados de nós. Os mais fracos.

Não sabia como reagir a isso. Por fim Bob se levantou e pegou a bandeja.

– Queria poder ajudar mais. – disse em tom baixo – Você fez muito por nós hoje. – e quando estava a meio caminho de deixar a enfermaria voltou-se novamente – Você o matou, não foi?

Precisei de um momento para saber a quem se referia, depois anui.

– Eu precisei.

Os olhos de Robert encararam a parede lisa da cabine, quase conseguia ouvir seu cérebro tentando processar a nova realidade. Um mundo livre de seu chefe. Um mundo que apenas por isso já estava melhor.

– Obrigado. – ele disse por fim.

Assenti em resposta porque não havia espaço para um “de nada”.

Quando Bob deixou a enfermaria fiquei sozinha. Apenas eu e as luzes frias no teto, a segunda leva de comprimidos e um copo com um pouco de água. Queria chamar Anselme, para que pudesse me explicar como alguém poderia ter acesso aos computadores principais ou se suspeitava de quem poderia ter emitido dados através dos nossos canais. Pensei que provavelmente tinha sido uma linha que levava diretamente ao Novo Governo que por sua vez tratou de avisar ao chefe e seus homens. Esforcei-me para lembrar algum detalhe antes de chegarmos a Auch que ajudasse a jogar luz sobre a verdade, mas qualquer coisa antes de Auch parecia me arrancar um novo pedaço do peito por se tratar de uma época em que Rhes ainda estava ao meu lado. Deixei os pensamentos que sugavam toda minha determinação e força e me arrependi por não ter dado o recado a Bob, mas simplesmente achei que não saberia quem Anselme fosse e quando meus olhos começaram a ficar pesados demais percebi que não fora por isso. Meu corpo estava exausto e machucado, os remédios faziam efeito. Permanecer acordada era impossível.

– O que em nome de deus você está fazendo aqui? - a voz indignada de Anselme me causou uma careta. De alguma forma minha cabeça ainda estava muito sensível a barulhos em geral – Fadwa me disse que ficaria em repouso por pelo menos cinco dias!

Mudei o peso do meu corpo para a outra perna porque minha coxa ainda pulsava de forma irritante. Depois de passado o pior, a única coisa que sentia pelos meus machucados era raiva por me incapacitarem daquela forma. E a generosa estadia do chefe havia me proporcionado toda uma nova leva de ferimentos incapacitantes. Fora da pequena cabine que Anselme conquistara para seus aparelhos as pessoas já tomavam seus lugares nos transportadores. Dormi apenas quatro horas, talvez menos. Acordei com fisgadas na perna e não havia posição que a fizesse passar. Resolvi então que levantar não deveria ser assim tão difícil. De certa forma tivera sorte de apenas ter encontrado o robô elefante pelo caminho, que para variar me lançara um olhar de desprezo. Mas fora um olhar de desprezo mais simpático que o normal. Me arrastara até o lugar sagrado de Anselme e quase caíra para dentro quando a porta deslizara para o lado, por isso a irritação e surpresa.

– Bom, eu queria saber como estão indo as coordenadas. – tentei com um sorriso torto.

– Você sabe muito bem que tenho todas que preciso pelos próximos dois dias, mocinha. – Anselme se aproximou, pousando sua mão coberta de pele fina e calos sobre meu braço – Tive muito medo que a perdêssemos, criança. Eu confiava nos nossos comunicadores, nas pessoas. Mas apenas um tiro certeiro – não terminou a frase, como se temesse apenas imaginá-la.

– Deram um tiro certeiro. – respondi segurando sua mão – E deve me fazer mancar por um bom tempo.

Anselme se afastou, exasperado.

– Vocês jovens e sua leviandade. – voltou-se para suas bugigangas eletrônicas. Uma delas soltava fiapos de fumaça de forma alarmante – Mas sempre posso confiar nessas belezinhas. Sempre se mantém funcionando com o cuidado devido.

– Sim... – o sorriso morreu em meus lábios e senti o nervosismo vir à tona novamente – Anselme... Agora que estamos perto do fim-

– Não fale isso! – ele me interrompeu e arregalou os olhos – Não é o fim, Deidre! É o começo!

Parei um momento para refletir. Anselme estava certo.

– Sim, como estamos perto de alcançar nosso objetivo – reformulei, vendo a aprovação em seu rosto – Precisamos nos certificar que estejamos prontos para qualquer coisa.

– Está falando do traidor?

Olhei ao longo do corredor deserto, ouvindo apenas o leve zumbido dos motores do transportador abaixo de nós. Entrei na cabine e apenas falei quando a porta se fechara às minhas costas.

– Iria realmente preferir que não falasse desse assunto em qualquer lugar.

Anselme soltou um pequeno muxoxo.

– Esse é o lugar mais seguro desse transportador, criança. – me censurou amigavelmente – Tenho minhas máquinas funcionando, você sabe. As que tornam impossível rastrear a nossa conversa de qualquer lugar.

Olhei para aqueles pedaços metálicos que nem ao menos pareciam conseguir se manter inteiros, quanto mais realizar qualquer tarefa.

– Estou apenas falando porque Bob me contou que o chefe daquela estufa havia recebido um aviso do Novo Governo sobre a nossa chegada.

Anselme resolveu ignorar toda a parte sobre o governo tirano que tentava nos matar há meses.

– Bob? Aquele rapaz corpulento e bobão?

– Ele não é bobão, Anselme.

– Ah, mas isso ele é! – seus olhos brilhavam de determinação – O peguei cutucando um dos meus bloqueadores de sinais externos como um buldogue desengonçado. Imagine a confusão que causaria se de repente fôssemos rastreados!

– Você não o bateu com seu rádio, bateu?

Anselme me encarou como se tivesse sugerido que jogasse seu primogênito contra uma ameaça.

– O quê? Claro que não.

– Bom. Agora me explique como alguém pode estar emitindo o nosso sinal sem que você ou 63-S percebessem. – procurei um lugar para sentar porque minha perna machucada estava tornando impossível permanecer de pé, mas era mais difícil que imaginava. Por todo lugar haviam parafusos, fios e parafernálias emitindo bipes diversos. Por fim me sentei sobre um pequeno monte de mapas que mostravam o alicerce eletrônico de um videocassete. Anselme tentara me explicar para o que haviam servido tantas décadas atrás, mas me parecera completamente alienígena.

– Então o sinal não veio da cabine de comando. – respondeu Anselme depois de pensar por um curto momento – Qualquer coisa que passa por aquele computador é reconhecido por aquele robô fominha e eu.

Levei as mãos até a cabeça, massageando as minhas têmporas. De todas as coisas que precisava ouvir, as picuinhas internas entre Anselme e 63-S era o que eu menos precisava agora.

– Certo. – concordei, riscando aquela alternativa – Então deve ser feito por algum outro ponto. Como isso é possível? Achei que o raio de emissão de qualquer outro sinal seria restrito?

– Na verdade seria. Meus bloqueadores funcionam para qualquer coisa que está vindo de fora para dentro. Você vê, se o Novo Governo tentasse acessar a localização dos nosso transportadores pelo número de identificação deles por exemplo. – Anselme parecia muito animado sobre esse assunto, por isso o cortei o mais rápido possível.

– Eles bloqueiam tudo que vem de fora para dentro? - quis saber.

– Sim.

– Mas não o que está sendo emitido de dentro para fora?

– E por que bloquearia? Deixamos de emitir qualquer coisa que fosse há semanas.

– Anselme... – fechei os olhos, sentindo a pressão dos meus dedos sobre as têmporas. Se massageasse o suficiente talvez a dor de cabeça sumisse.

– O quê?

– Não é bem um sistema de bloqueio eficiente quando bloqueia apenas um dos lados, é?

Senti que tocara em um assunto delicado.

– Ora. – ele bufou, levando as mãos à cintura – Nos serviu muito bem até agora, não serviu? E aqueles robôs sabe-tudo também não tinham nada para tornar mais eficiente. Se tivéssemos acesso a metais mais nobres, um pouco de tecnologia beta e talvez um emissor de alta potência...

– Nós não temos nada disso. – o interrompi – Precisamos trabalhar com o que temos em mãos. Então, qualquer pessoa poderia estar transmitindo a nossa posição?

– Não. Nem ao menos acredito que está transmitindo a nossa posição o tempo inteiro. – ele disse, acionando um botão para tornar uma pequena fração da parede metálica transparente. Não fazia ideia de que aquele mecanismo de janelas instantâneas funcionasse em todo o transportador – Acompanhe meu raciocínio, pequena Deidre, ou tente o seu melhor. Se estivesse transmitindo todo o momento teríamos uma pequena horda nos seguindo 24 horas por dia. Esse, apesar dos problemas em que nos metemos diariamente, não parece ser o caso. O Novo Governo não perderia uma oportunidade de nos aniquilar de uma vez por todas. – ele me deu um sorriso orgulhoso – Claro que sua atitude de tornar tudo manual também têm sido uma mão na roda.

– Então você está achando que quando o sinal está sendo emitido, as coisas não ficam muito discretas?

Anselme me encarou, arqueando uma sobrancelha grossa.

– Sim, algo assim. Quem quer que esteja fazendo isso estaria agindo na surdina completa, em horários em que ninguém está por perto para ouvir ou ver alguma coisa.

– Mas como teria acesso a algo assim? Se fosse um dos nossos transmissores de emergência o teríamos notado, não é?

Anselme anuiu.

– Definitivamente. Chequei todo o estoque assim que Rhes deu os primeiros sinais de estresse.

– Você viu quando ele começou a desconfiar de algo? - uma sensação fria se apossou da minha barriga. Achara que Rhes apenas soubera do traidor em Auch.

– Sim. Ele na verdade me procurou algumas noites antes daquele dia – procurou uma palavra mais suave, depois a descartou – terrível. Pediu que checasse todas as nossas comunicações, alegando que talvez eles, os robôs, estavam deixando algo passar. Nunca imaginei ver um robô admitindo imperfeição. Fiz mais do que isso, claro, e lhe dei todo um levantamento sobre os nossos números de transmissores de emergência que poderiam estar emitindo qualquer coisa anormal. O fiz novamente depois do que aconteceu nas estufas e Enzo me dizer que deveria ter algo errado, mas nossos números continuam batendo.

– Então é algo de fora. –minha cabeça estava à beira de estourar, precisava procurar por Fadwa, mas ainda havia uma dúvida que precisava ser esclarecida – Poderia ser algo que foi retirado dos próprios robôs do Novo Governo? Andei pensando... Todos eles tem transmissores que os ligam direto às centrais, não é? Através deles qualquer pessoa que tivera acesso poderia ser contatada, receber alguma oferta mentirosa e estar desde então ativando o sinal de localização de emergência.

O cenho de Anselme estava franzido cada vez mais.

– Sim, sim! – ele irrompeu de repente, me segurando pelos ombros e chacoalhando – Essa pode ter sido a maneira encontrada para passar pelos nossos bloqueios sem ser percebido! E o sinal de emergência normalmente não é muito sutil de qualquer maneira, restringindo dessa forma os horários de emissão! Sou um gênio!

– Sim, Anselme. – sorri, me soltado de seu aperto e derrapando até a porta – Sim, você é. Se prepare, mais tarde temos uma reunião com os robôs. Só você e eu.

O velho sorriu tão abertamente que parecia que o tinha convidado para fazer parte de algum clube de elite e não de uma reunião de emergência.

Porque tínhamos um traidor para descobrir.

–x-x-x

– Então seu plano consiste expressamente em não fazer nada? – 73-S quis saber e se não fosse desprovido de qualquer humor diria que havia uma nota de divertimento em sua voz – Isso é irresponsável.

Suspirei, tentando encontrar algum sinal de apoio na mesa da cabine de comando. Anselme estivera tentando acompanhar o meu raciocínio, mas sua testa se franzia com cada palavra que saia da minha boca. Talvez estivesse na hora de deixar os adultos resolverem a questão.

– As coordenadas indicam que chegaremos a base secreta em duas semanas. – repeti, vendo 63-S analisar os nossos monitores mergulhado em seu universo particular. Mas eu sabia que estava prestando atenção. Assim como 21-S, cujos olhos cinzentos se pareciam tanto com os de Rhes que não conseguia encará-la enquanto balbuciava o que devia ser o pior plano que já ouvira – Esses 14 dias são a última chance para quem quer que esteja passando a nossa transmissão. Isso significa que precisamos tomar cuidado dobrado.

– Vigilância não nos salvará do Novo Governo. – disse 21-S com voz dura – Sugiro revistarmos todos em busca de um transmissor de emergência. E lidarmos com a ameaça de imediato.

Balancei a cabeça em negação.

– Quem estamos procurando está conosco desde antes de Auch. Os trabalhadores e suas famílias não serão perturbados – ignorei as reações que isso trouxe e mantive minha voz firme. – Acreditamos que a transmissão esteja sendo feita por um sinal de emergência retirado dos destroços de algum robô do Novo Governo. Bob e os outros nunca sequer viram um LOP. Anselme, qual o tamanho de um transmissor deste tipo?

O velho se endireitou na cadeira e limpou a garganta.

– Provavelmente não passa de dois centímetros. – respondeu – Não deve passar de um quadradinho que pode ser escondido em qualquer lugar. Quando usado, emite um bipe lento e gradual junto com uma luz discreta enquanto passa a localização do emissor para um canal direto com os centros de informações do governo.

– Seu conhecimento sobre o assunto é interessante. Talvez até grande demais? – insinuou 63-S da cadeira de piloto.

– Ora, seu pedaço de lata presunçoso! Eu estudava comunicadores avançados enquanto você ainda era projetado em algum laboratório. Não pense por um segundo que não desconfio da maneira como não deixa ninguém chegar perto dos controles.

– É o meu trabalho. – retrucou o robô pouco impressionado – Com o traidor ou traidora esperando alguma recompensa por sabotar a missão, acho que está muito claro que não se trata de nenhum de nós. Somos incorruptíveis.

– Sim – resmungou Anselme – Conte isso para seus primos sentados no parlamento.

– Nós não temos parentesco com quem quer que seja. Em primatas isso já é mais perceptível, como deveria perceber.

– Sem aulas de biologia agora, 63-S. – intervim antes de Anselme jogar sua caneca contra o robô – Então nenhuma objeção a separar os grupos?

– Essa parte do plano parece razoável.

Meu corpo relaxou o suficiente para que sentisse as dores dos ferimentos que lentamente cicatrizavam.

Eu precisava separar o joio do trigo. As famílias dos trabalhadores eram o trigo, grande parte da nossa caravana inicial e os que se juntaram depois do encontro com Berthe também. Mas nesse último grupo estava quem quer que nos tentava entregar esse tempo todo e eu precisava ter certeza que a maioria alcançasse a base segura de alguma maneira. As famílias e os trabalhadores, assim como todas as crianças do nosso grupo original iriam em dois transportadores separados. Junto com eles o transportador de mantimentos e dois robôs encarregados de sua segurança. Eles receberiam as coordenadas finais na última parte da viagem e seguiriam em caminho reto enquanto nos faríamos um pequeno contorno despistando quem quer que estivesse em nosso encalço.

– Nossos radares foram atualizados depois do ataque em Auch. – assegurara 63-S – Não seremos pegos de surpresa novamente.

– A não ser que mudem seus protocolos de ataque. – lembrara Anselme, mergulhando todos em um oceano pessimista.

É a melhor chance que temos. Me forcei a acreditar. Deixar que os robôs revistassem quem eles imaginavam ser suspeitos, ao mesmo tempo que alertaria o traidor para o perigo, também poderia resultar em um sucesso inesperado. E então não teríamos que nos preocupar com mais nada. Apenas com não sermos alvejados por aqueles que já habitavam a base segura. Essa parte do plano poderia ser facilmente resolvida, por isso a discutíamos com mais esperança.

– As informações que temos sobre nosso destino final indicam que se trata de um refúgio localizado nas paredes rochosas no limite entre Rouen e Grenoble. Eles contam com estufas subterrâneas e mantimentos que manterão centenas de pessoas alimentadas por anos. Com sua própria fonte de água corrente e energia sustentável podemos dizer que se mantém próximo aos parâmetros ideais para sobrevivência humana. O Novo Governo não a ataca diretamente porque sua localização exata não lhe é conhecida, então vem tentando agir mais em impedir as pessoas de a alcançarem do que trabalhando em uma ofensiva direta.

– Não se trata de uma base bélica. – comentei, lembrando da base rebelde que meus amigos já deveriam ter alcançado agora – Por que gastam tantos recursos em tentar neutralizá-la?

– Você tem razão, se trata mais de um campo de refugiados extremamente organizado que de uma assembléia de opositores do novo regime. – concordou 21-S - Agora. O que será dessa base no futuro não podemos dizer e o Novo Governo não correrá o risco de esperar para ver o resultado. E como resposta, podemos imaginar que a base conta com linhas de defesa muito eficientes.

– Eficientes como? – eu imaginava que deveriam ter algumas armas para defesa, mas que sua maior força estivesse nos rastreadores que estudariam cada passo dado em um raio de distância considerável.

73-S não foi gentil ao jogar o balde de água fria.

– Eficientes no sentido de eliminar qualquer potencial ameaça. Relatórios mostram que dois comboios foram abatidos desde a sua instalação por conterem cargas não identificadas.

– Cargas?! – um frio se alastrou em minha barriga e olhei ao redor procurando qualquer indício de que aquela informação era uma novidade para todos. Não parecia ser. Anselme apenas desviou desconfortavelmente o olhar – Está me dizendo que pessoas foram aniquiladas a poucos momentos de –

– Não sabemos se eram pessoas, Deidre. – Anselme envolveu as minhas mãos nas suas. Estavam frias – Pode muito bem ter se tratado de um ataque interceptado. O protocolo de segurança rígido é tudo que tem mantido aquelas pessoas a salvo. A única coisa que nos manterá a salvo também.

– Se não nos mandarem pelos ares antes disso. – me lembrei do bebê de Fadwa e talvez foi isso que fez meus olhos marejarem – Eu precisava ter certeza de que estaríamos seguros.

– Nós vamos estar.

– Então conte isso a todas as famílias que conseguem dormir apenas porque sabem que vamos estar seguros uma vez que alcançarmos nosso destino. Ou ao menos é o que esperam. – minha voz tremia de raiva, de quem eu não tinha tanta certeza. A única coisa que sabia era que estava me mantendo firme, porque sentia como se tivessem puxado o tapete debaixo dos meus pés. E de repente percebi que ocultaram isso o máximo que podiam porque não queriam me ver comprometida, porque eu não podia fraquejar. Agora minha determinação tremulava sobre as vidas que estaria colocando em risco. De novo.

73-S virou o rosto em minha direção.

– Não pode falar para eles. – disse em sua voz apática - A dúvida causara caos. Temos coisas mais importantes para nos preocupar agora.

– Seria a última coisa que eu faria. – o assegurei, me erguendo – Façam o revistamento das cabines e pessoas, fiquem longe das famílias dos trabalhadores. Precisamos da confiança falsa de todos. 63-S monitore as linhas de comunicação e se certifique de que seremos ao menos avisados antes do alvejamento. Caso o revistamento não dê certo, separamos os grupos logo e seguimos juntos durante alguns dias para não causar alerta.

As ordens saíram fluentes como uma engrenagem bem lubrificada e vi que uma outra reação fora esperada. O fato de prová-los errados quase fez com que me sentisse como uma líder deveria se sentir. No lugar disso não esperei qualquer comentário e manquei para fora da cabine de comando para que não vissem meu disfarce se desfazendo a cada passada que dava.

Todo rosto que encarei ao longo daquele dia pareceu silenciosamente me acusar de causar a sua morte. As chances de sobrevivência haviam sido muito menores que eu imaginara desde o início. Quando deixei meu corpo machucado cair na cama já não tinha certeza se elas sequer existiam.

Rhes também sabia. Uma parte de mim insistia enquanto enfiava o rosto no travesseiro duro demais. Ele sabia e não te disse nada. Mas havia muitas coisas que Rhes não havia me dito. Tentei lembrar do tom exato de sua voz e de como seus olhos colocavam o caos de lado para me encontrar. E percebi que já não tinha certeza, que as lembranças começavam a ficar borradas até se esvaírem numa mistura da voz monótona do robô elefante e dos olhos de 21-S.

“É fácil porque você está aqui, no final. No meu final.”

Me encolhi trazendo as pernas para perto da minha barriga vazia. Não chore alto. Me forcei a lembrar enquanto envolvia o chip com meus dedos. Isso é o começo, não o fim. Mas eu tinha certeza de que seria o meu fim. E não me importava, contanto que conseguisse salvar todos. Havia apenas uma coisa que me impedia de estar inteiramente satisfeita com minha morte.

No silêncio escuro da enfermaria as palavras vieram antes que pudesse contê-las.

– Eu queria que você estivesse no meu final também. – e percebi que aquilo nem de longe representava o que eu sentia – Muito. Muito mesmo.


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Notas finais do capítulo

HELLOES FRIENDS. DID U MISS ME? *vaias*
Primeiro, a culpa da demora eh toda minha. I'm sorry (kinda). Foi uma mistura de preguica, nao querer chegar perto do fim (e aqui ele esta! nos espreitando com lencos e agua com acucar)e recalque pela historia ser realmente boa e nao ter esse alarde todo ao redor. Paciencia. Melhor uma mao de leitores engajados e que curtem de verdade que dezenas de "posta mais". Sorry, isso nao deveria ser um rant. De qualquer forma, apertem os cintos. Estamos mergulhando de cabeca no final.

Beijos beijos! Comentem para evitar futuros hiatus porque eu sou o lado chato da historia e I got the power (ou pelo menos 50% dele). *volta pro memorial de Rhes*

Joana.



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