Sobre Metal e Sangue escrita por JojoKaestle, LudMagroski


Capítulo 16
Sou apanhada e devo lidar com as consequências




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Ser eletrocutada foi uma das coisas mais dolorosas e desesperadoras que posso colocar em minha lista de planos que deram terrivelmente errado. Dolorosa porque ninguém se sente legal depois de ter cinquenta mil volts percorrendo o corpo. Ainda sentia um gosto metálico em minha boca enquanto tentava erguer a cabeça e ver o que estava acontecendo ao meu redor, os barulhos de gente gritando, estampidos e veículos sendo ligados se misturavam em minha cabeça. Mas aqui entrava a parte desesperadora: meus músculos não obedeciam. Tinha uma bela vista do chão, onde sangue que escorria do meu nariz formava uma pequena poça. Minha panturrilha doía e o pulso deveria estar torcido. Bom trabalho, Deidre. Pensei me sentindo um pouco mais do que uma lagarta dentro de um casulo. A diferença, claro, é que não poderia contar com asas para me tirar dali. Ouvi um grito e tive certeza de que era 74-S e quase agradeci quando fui violentamente erguida.

– Se acharam muito espertos, hein? - perguntou o homem que me derrubara, satisfeito consigo mesmo. Era mediano em todos os aspectos, apenas seu nariz parecia determinado a escapar do seu rosto de tão grande que era. Usava roupas puídas e seus dentes não haviam visto uma escova há muito tempo o que me fez pensar que era um dos empregados de quem quer que tenha reclamado as estufas para si.

Agora que as luzes estavam acesas era possível ver como aquele lugar era enorme. Caixas se amontoavam nas prateleiras, prontas para serem despachadas em um dos caminhões e as estantes quase alcançavam o teto alto. Era impossível que todas aquelas caixas estivessem cheias de comida. Talvez parte delas contivessem adubo e toda a espécie de produtos necessários para fazer crescer plantações em um solo tão pobre e manter a colheita fresca até atingir as grandes cidades. Ainda bem que checamos cada caixa. Terminar aquela empreitada perigosa com sacos e mais sacos de agrotóxicos seria um desastre. Tentei encontrar os robôs em meio à confusão e não foi muito difícil.

– O que são essas coisas? - gritou um dos homens quando passou por nós, era o décimo que eu podia enxergar da minha posição e quis poder falar que eram soldados altamente treinados. Mas de alguma forma sabia que se tentasse abrir a boca o máximo que conseguiria fazer é babar, o que tiraria totalmente o efeito das minhas palavras, por isso apenas observei a luta contente por não ter que enfrentá-los.

63-S erguia sem esforço uma das caixas e arremessava contra um grupo de robôs inimigos enquanto 74-S havia transformado as suas mãos em lâminas e mantinha qualquer homem que tivesse um pouco mais de coragem e tentava enfrentá-los afastado. Eram muito bons, mas a desvantagem aumentava a cada momento. Das portas laterais entravam mais homens e robôs de segurança que apesar de não se equipararem aos R.E.S. não tinham medo e rapidamente os cercaram. Os dois recuraram, protegendo os mantimentos que havíamos pegado. Com um ruidoso craque os robôs de segurança apontaram as armas para a dupla, esperando o sinal. Senti os olhos de 74-S em mim e afastei os olhos daquela cena. Não podia dar novas ordens, não podia me mexer, não podia salvá-los e a vergonha e impotência pareciam capazes de me imobilizar melhor do que qualquer voltagem.

Um estrondoso barulho me acordou do transe. Uma caminhonete havia sido jogada contra o buraco que havíamos tentado aumentar para o caminho de volta e arrasado metade dos robôs inimigos pelo caminho. 21-S saltou do veículo e abriu fogo enquanto os outros dois não perderam tempo e começavam a carregar a caminhonete com o máximo de caixas que conseguiam. O ataque surpresa funcionou por algum tempo, os homens tiveram que se esconder para ficar fora do alcance das armas e os robôs que eram lentos demais foram prontamente liquidados. Mas uma vez recuperados os homens começaram um fogo cruzado e 21-S teve a mão direita atingida, fazendo uma das armas cair e com apenas uma pistola já não parecia tão amedrontadora. A vi vacilar e 64-S ser atingido no ombro. Tentei me mexer com cuidado para não alarmar o meu oponente, mas este parecia tão entretido pela ação que seu aperto afrouxava a cada minuto que passava. Sim, a panturrilha ainda doía, mas nada que atrapalhasse o meu mais novo plano.

Pisei em seus pés tomando o cuidado de atingi-los com a parte posterior das minhas botas. Mesmo não tendo salto foi o suficiente para fazê-lo me soltar e gritar de dor. Antes que conseguisse se recuperar enfiei a mão em seu coldre e o chutei atrás dos joelhos. Ele caiu para frente, respirei fundo e avancei. Quando tentou se levantar encostei a arma em sua cabeça.

– Parado. – falei, engatilhando a arma e decidindo que as longas aulas de Aydee sobre diferentes tipos de pistolas e seu manuseio haviam sido úteis afinal. Se não conseguisse usar aquela arma como se devia, ao menos conseguia fingir suficientemente bem – Parem de atirar! – gritei para os outros, mas em meio a confusão ninguém parecia ouvir – PAREM DE ATIRAR OU ELE MORRE! – repeti, pronunciando cada palavra como se estivesse seriamente decidida a fazê-lo. Na realidade estava me esforçando para não tremer.

Poderia ter dado errado. Poderiam simplesmente dar de ombros e não se importar. Mas a situação em que as pessoas daquela cidade viviam me deu a ideia de que apenas sobreviviam porque eram unidos. Todos aqueles homens eram subordinados à pessoa que tomara o controle para si e pelas suas aparências famintas e sujas não recebiam nem de longe o que seria justo pelos seus serviços. Mesmo acreditando nisso com todas as minhas forças foi um alívio quando um por um eles baixaram as armas e gritaram para que os colegas fizessem o mesmo.

– Irão deixá-los carregar a caminhonete, se houver a menor das interferências serei obrigada a apertar o gatilho. – falei para um armazém em silêncio, a minha voz ecoava pelas paredes de metal velho e ninguém parecia se opor, soando como se fossem de outra pessoa. Os robôs voltaram a trabalhar e assim se passaram alguns dos minutos mais tensos da minha vida. Senti o suor descer pelo rosto enquanto meus olhos varriam o imenso espaço, buscando qualquer sinal de perigo. Teria que arrastar aquele homem até a caminhonete para poder escapar, pensei, sentindo-me estranha por usar o corpo de alguém como escudo. E ainda assim a ideia viera como um raio. É pela sobrevivência. Podia quase ouvir Erwan sussurrar em meu ouvido. Encolhi-me quando uma lufada de vento nos atingiu e quase deixei cair a pistola quando percebi que vinha da direção errada. Em minha frente 21-S terminava de carregar a última caixa de mantimentos enquanto 74-S se aproximava em meio aos homens para me escoltar até a caminhonete. Mas a brisa não adentrara o armazém pelo buraco que a batida causara e sim por uma das portas laterais.

Tive tempo para me virar para a entrada antes do estampido. O corpo do homem ajoelhado em minha frente encostou-se em minhas pernas quando foi atingido pela primeira bala. Ergui os olhos para a figura que entrava no armazém e ela atirou mais duas vezes. O sangue espirrou em meu rosto e sujou o meu casaco. Mas não era meu.

– Mas que barulho! – falou o recém-chegado. Vestia um casaco pesado por cima do que pareciam ser pijamas. Eu tentei falar alguma coisa, mas não conseguia. Aos meus pés o homem estrebuchava – Vou para a cama esperando ter uma boa noite de sono e sou arrancado dela por toda essa algazarra.

– Você... Você o matou. – consegui falar, as mãos tremendo com tanta violência que parecia impossível segurar a arma – Você matou um de seus próprios homens!

– Eu matei seu refém. Não era isso que você faria se nós não os deixássemos fugir? Eu sinto muito criança, mas ninguém fugirá daqui esta noite. – voltou-se para os seus subordinados – Descarreguem as armas nos três robôs, na garota não. E usem um pouco as suas cabeças e se certifiquem de furar os pneus primeiro.

74-S olhava para mim em dúvida. Estava a meio caminho de me alcançar, mas caso se aproximasse demais sabia que as balas destinadas a ele terminariam me encontrando. 64-S dava partida na caminhonete enquanto 21-S se posicionava diante dos homens com uma tampa de caixa nas mãos. Mas até ela parecia saber que não ofereceria muita resistência aos projéteis. Pela primeira vez naquela noite em que tudo dera errado senti lágrimas em meus olhos.

– VÃO! – gritei.

E então o mundo parecia mergulhado em balas. Abaixei-me para checar o meu escudo humano, mas estava estilhaçado.

– Eu sinto muito. – tentei dizer por cima dos tiros – Não era a minha intenção, eu o soltaria assim que estivéssemos em segurança – o homem parecia estar beirando a morte. Mas eu precisava dizer, precisava dizer que não o mataria – Nós precisamos tanto, tanto dessa comida. Meus amigos precisam.

– Levante-se – ordenou o homem que parecia ser o chefe daquele lugar. Seus olhos não mostravam compaixão alguma pelo ferido. Era alto e tinha traços que em sua juventude deviam ter sido muito bonitos, mas agora as rugas cobriam sua testa e as bochechas secas emolduravam uma boca fina que parecia incapaz de sorrir – Eu disse para levantar!

– Este homem precisa de ajuda. – falei, ignorando-o – Vocês tem um-

O chute foi tão inesperado que me atingiu em cheio. Rolei para o lado com as mãos na barriga e o homem avançou, erguendo o pé para me acertar novamente.

– Senhor! – chamou um dos subordinados, atraindo a sua ação – Eles estão fugindo senhor!

Ele se recompôs e se afastou, me deixando para trás choramingando. Minha barriga ardia e doía de uma forma que parecia insuportável respirar, tentei controlar a respiração, mas era como tentar encher um balão furado. Agarrei-me a uma das caixas e ergui a cabeça na direção de onde deveria estar a caminhonete, mas só vi o buraco na parede e homens correndo através dela para a madrugada fria. Eles foram embora. A força parecia ter deixado o meu corpo. Os robôs haviam partido. Quando o chefe olhou embasbacado de mim para a parede arruinada tentei sorrir, mas não tenho certeza se foi suficiente para que notasse que estava feliz. Aydee, Armand, Anselme e todos os outros teriam o suficiente para comer até chegarem à base segura e o velho senhor arranjaria alguma forma de levá-los até lá. Os robôs os protegeriam e tudo acabaria bem. Sim, tudo acabaria bem. O chefe andava a passos largos até a saída esbravejando ordens, assim que me virou as costas desabei atrás das caixas. Se me encolhesse o suficiente talvez desaparecesse.

– Oh Rhes. – murmurei para o vazio – Eu fiz a coisa certa, eles vão conseguir fugir, eu sei que vão. – limpei uma lágrima insistente que escorria pela minha bochecha – Fiz certo, não fiz? A missão vai dar certo. Por que estou com tanto medo? Você nunca tinha.

Enquanto ouvia os homens passando ordens ao meu redor eu comecei a entender o motivo. Pela primeira vez na minha vida não eram robôs os inimigos, eram pessoas. E com os robôs eu me sentia segura, eu sabia que a única coisa que queriam fazer era nos aniquilar (e ainda que soe muito forte, essa certeza havia me fortalecido ao longo dos meses). Havia fraquejado ao me deparar com um inimigo humano, havia dado a chance para ser derrotada e tudo ir morro abaixo em primeiro lugar. E o que faria para escapar? Meu corpo estava quebrado e mal conseguia me levantar, quanto mais correr. Os robôs não voltariam e mesmo que Aydee e os outros quisessem me resgatar seriam proibidos por eles e pelo bom senso. “Havia sido apanhada e devia lidar com as consequências”, consegui imaginar 74-S dizendo para todos ao amanhecer. E enquanto eu observava aqueles homens armados desaparecer na escuridão eu não tinha muita certeza se queria ser resgatada. Porque acabaria na morte de mais alguém e seria minha culpa. Não. Eu havia sido apanhada e precisava lidar com as consequências.

Fiquei abaixada por trás de uma das caixas pelo que deviam ser horas porque quando os primeiros homens voltavam o céu lá fora começava a se tingir de rosa e amarelo. Tentei entreouvir qualquer coisa que me informasse de como havia sido a busca, mas a maioria não conversava e os que o faziam sussurravam. A única coisa que compartilhavam era uma expressão de insatisfação tremenda. Não podia culpá-los, a madrugada era gelada e se a busca fora malsucedida teriam que enfrentar a fúria do chefe. O próprio adentrou o armazém totalmente vestido logo depois, o longo casaco arrastando no chão enquanto se aproximava de mim, completamente calmo. Os lábios finos se curvavam em um pequeno sorriso e foi o sorriso que me fez despertar para o perigo. Tentei me afastar, mas havia me arrastado por menos de três metros quando me alcançou e afundou a mão em meus cabelos.

– Você parece ser uma garotinha esperta. –disse, puxando-me para cima – Então tenho certeza de que entende a minha pergunta: onde eles estão?

Mordi os lábios para não deixar escapar o grito de dor, meus pés balançavam no ar e quis pedir para que me colocasse no chão.

– Do que está falando? - perguntei no lugar, conseguindo uma sacudida como recompensa.

– Vai mesmo querer fazer esse jogo comigo? - não, quero que me liberte.

– Que jogo?

Ele me jogou no chão, tive tempo de erguer as mãos para proteger o rosto, mas o chute não veio. No lugar disso o chefe parecia perdido em pensamentos. Agarrou um dos seus homens que passavam e dirigiu-se a ele:

– Robert, refresque a minha memória. Não é a primeira vez que somos surpreendidos com ladrões em nossos armazéns, é?

O homem parecia desconfiado.

– Não, senhor.

– Ora vamos, Robert. Sei que é capaz de formular frases maiores.

– O que quis dizer é que apenas nos últimos três meses fomos roubados quatro vezes, contando a desta noite, senhor.

– Sim, um número que não toleramos. – respondeu o chefe, coçando o queixo e me observando como se fosse uma pequena presa e julgava se seria proveitoso ou não me abater – Vou ser sincero com você criança, um dos roubos foi realizado por pessoas da nossa pequena cidade. Por mais que seja vergonhoso admitir tal comportamento, acho que resolvemos a questão de forma muito eficiente, não é, Robert?

Robert mudou seu peso para a outra perna, não encarava o chefe enquanto conversavam e vez ou outra erguia o olhar para mim. Mas agora encarou o homem mais velho e por um momento vi o ódio em seus olhos.

– Se é o que diz, senhor. – os olhos verdes faiscavam. Deveria ter por volta dos vinte e cinco anos, era corpulento e parecia forte o suficiente para dar uma surra no chefe quando quisesse, mas bastava começar a falar que Robert se encolhia como se cada palavra fosse uma chicotada.

– Sim, estamos certos de que jamais teremos problemas internos novamente. – concluiu o chefe sorrindo – Mas com forasteiros... Não. Com forasteiros sempre precisamos ser bastante claros. O último grupo que passou por aqui foi a quanto tempo mesmo?

– Três semanas, senhor.

– E pode dizer à pequena como os punimos?

Robert olhou para mim. Entrelaçou as mãos inquietas e ficou em silêncio.

– Eu pedi – disse o chefe com a mesma voz calma – Que explicasse a garotinha o que fizemos com o último grupo que tentou roubar de nós.

– Os amarramos e colocamos lá fora. – falou de modo ausente.

– Gosto de você Robert, sempre faz tudo soar tão agradável. – andou em minha direção e abaixou-se, forçando o meu queixo para cima – O que meu empregado quis dizer é que os colocamos debaixo do sol por duas semanas. No começo reclamaram muito, era realmente uma chateação. Mas depois eles ficaram quietos e o último que sobreviveu teve a oportunidade de tentar a sorte no deserto. Foi engraçado vê-lo cambaleando para longe, não foi, Robert?

Robert não respondeu.

– Pode ir. – ordenou o chefe e o rapaz ficou por um momento a mais do que parecia permitido. Mas finalmente anuiu e se afastou a passos largos. Queria que permanecesse por perto. Não queria ficar sozinha com o chefe.

– Agora – disse – Você já deve saber que não brinco. Então vou perguntar mais uma vez, onde está o resto do grupo?

– Não faço ideia.

– Mesmo depois de saber o que acontece com pessoas que me desagradam.

Especialmente depois disso. – vi suas sobrancelhas se juntarem, mas logo vestiu seu manto de calmaria de novo.

– Muito bem – falou, tomando sua decisão – O problema é que estou muito curioso para saber mais sobre os seus companheiros, três robôs, não eram? Pela aparência e habilidades suponho que unidades R.E.S.? - sorriu ao ver em meu rosto a confirmação – Isso é mesmo muito interessante. Com as ordens da capital...

– Que ordens?

– Cheia de perguntas, então vai me entender. Eu gosto de respostas e gosto muito de recebê-las quando as exijo.

– Nem sempre conseguimos o que queremos. – retruquei, encarando-o. Mas a conversa sobre ordens da capital realmente me interessara, talvez conseguisse informações sobre o que o novo governo estava tramando. Mas o chefe simplesmente se afastou e chamou dois novos homens, cada um me ergueu por um braço e me segurou diante dele.

– A mocinha não quer cooperar, acho que algumas horas ao ar livre podem fazer maravilhas a sua memória. Podem levá-la, estou cheio de aborrecimentos por hoje. E não preciso lembrá-los de que ela deve ser mantida longe de qualquer água ou comida.

– É apenas uma criança – começou um deles, mas a intensidade do olhar de seu superior fez as palavras morrerem em sua garganta.

Fui meio arrastada, meio carregada para fora do imenso galpão. Nenhum dos meus captores parecia excepcionalmente animado com a tarefa. Tentei conversar com eles, perguntar o nome do chefe, como eles aceitavam viver em uma condição assim. Disse que ele era apenas um e eles muitos, mas era como falar com paredes. Arrastavam-me para um lugar que não parecia receber sombra alguma durante todo o dia, tocos de madeira estavam enfiados na terra árida, cada um tinha cordas ao seu redor. Como cobras esperando para dar o bote. Quando estava sendo amarrada ouvi a voz pela primeira vez.

“Deidre?” Levantei a cabeça com tanta violência que quase acertei o homem que tentava me amarrar. Ele me encarou por uns instantes, mas parecia decidir que a completa confusão em meu rosto era resultado de como vinha sendo tratada há horas. Na verdade não era o único a pensar isso. Que estivesse delirando já agora não era um bom sinal. Os dois se afastaram com uma última olhadela. O sol começava a se erguer no céu e a ideia de passar um dia inteiro sem qualquer proteção diminuía a coragem que tinha decidido sentir. Minhas mãos estavam firmemente atadas às costas, uma posição que iria fazer meus braços arderem em poucos minutos, mas ao menos podia me virar e sentar como desejasse. À medida que os minutos passavam tentei escutar a voz novamente, sem sucesso. Ora, ainda está muito cedo para delírios. Respirei fundo e abaixei a cabeça. Enquanto sentia o sol aquecer a minha nuca resolvi que o primeiro passo era não entrar em pânico.

As primeiras horas da manhã não foram tão ruins. Sentei-me cruzando as pernas e observei as atividades dos homens, não via nenhuma mulher desde que entramos na cidade na noite anterior. Ou crianças. De onde estava sentada podia ver os esqueletos enferrujados das estufas inutilizadas, o vidro faltava aqui e ali e em alguns lugares manchas negras sujavam os resquícios das paredes. Talvez um grande incêndio tivesse destruído parte das plantações, mas com o passar do tempo, observando as estufas intactas de onde saíam e entravam pessoas carregando caixas e mais caixas, o pensamento de que um acidente destruíra parte das imensas estruturas parecia ridícula. Nenhum proprietário correria o risco de ter seus investimentos transformados em carvão e fuligem. Aquelas estufas recebiam suporte de tecnologia de uma maneira que muitas cidades pequenas não tinham. Vi homens mexendo em caixas acopladas nas paredes, cheias de botões e interruptores. Sabia que monitoravam coisas como temperatura, incidência solar e umidade. Não, um incêndio de proporções tão grandes com certeza acionaria um alarme e o procedimento para controlá-lo. Suor começava a se formar em minha testa e descia pelo meu corpo, desejei usar roupas mais leves. Vestimentas para a madrugada em desertos não eram muito agradáveis uma vez que o sol raiava e o chefe deveria saber disso tanto quanto eu. Às vezes sua figura longa surgia na entrada de uma das estufas, parava por alguns momentos e me observava. Sempre que isso acontecia eu me recompunha da melhor forma que podia, mas a verdade era que começava a sentir sede. Muita, muita sede. Procurei me distrair, voltando o olhar para as estufas destruídas. Desta vez algo me chamou a atenção no padrão de como as janelas estavam quebradas. No começo da manhã tinha visto apenas aquelas que tinham sido totalmente destruídas, mas com o sol do meio dia refletindo em sua superfície pude ver que algumas estavam parcialmente intactas. Parcialmente porque buracos de diversos tamanhos perfuravam o vidro de forma aleatória. Baixei a cabeça por algum momento, respirando fundo e imaginando que o ar esfriava à medida que entrava em meus pulmões, mas era muito difícil fingir quando o horizonte ondulava com o calor exalado do chão batido. Quando abri os olhos uma pequena pedra chamou a minha atenção. Não tinha nada de especial, mas ao olhar dela para o telhado de vidro das estufas uma ideia me ocorreu. E se o incêndio fora criminoso? E se os inúmeros buracos no vidro das estufas foram simplesmente causados por pessoas revoltosas que apedrejaram as construções?

Um homem parou a poucos metros e soltou a sua caixa. Massageou as costas, com uma careta no rosto e não demorou muito para chamar a atenção de um dos supervisores armados. O outro se aproximou, gritando ordens, e o homem voltou ao trabalho. Assim que o supervisor lhe virou as costas o observou caminhar até o seu posto. Depois seus olhos encontraram os meus. Então vocês tem poder de reação afinal. Pensei, abaixando a cabeça novamente.

Passei a tarde suando, pensando como fazer aquelas pessoas se libertarem das garras do chefe e sentindo mais sede e dor a cada minuto que passava. Meus braços, que tinham passado boa parte do dia dormentes, agora doíam como se faltasse pouco para quebrá-los. A pressão da corda começava a rasgar a minha pele, mesmo tendo desistido de arrebentá-la horas atrás. Meu pulso machucado parara de latejar por volta de meio dia, o que me alertara sobre a possibilidade de não estar recebendo sangue suficiente. Comecei a pedir a todos que passavam pelo grande pátio um pouco de água, mas se ouviam os meus gritos os ignoravam. Alguns paravam de andar por poucos segundos e me encaravam, como se fosse uma hóspede especialmente mal criada e barulhenta. Meus ouvidos zuniam e por mais que balançasse a cabeça, não conseguia afastar o ruído. Quando o céu começava a se tingir de vermelho o chefe veio me visitar. Ao reconhecê-lo fiquei em silêncio, em parte porque não queria que visse meu desespero, em parte porque minha garganta já não suportava o esforço.

– Ah, a garotinha. – disse como se estivesse admirando uma nova peça de decoração – O dia foi agradável?

– Muito. – respondi, ignorando os lábios rachados que ameaçavam abrir e a vontade de perguntar sobre as estufas apedrejadas. Não agora.

– Vejo que se acomodou bem. – tirou um pequeno frasco do casaco e o levou aos lábios. Duvidava que se tratava de água, mas o movimento de seu pomo de adão enquanto o líquido escorregava pela sua garganta parecia hipnotizante. Ele percebeu, porque quando fechou o frasco e limpou os lábios com as costas da mão um pequeno sorriso se instalara em sua face magra – Me dê o que preciso e poderá ter quantas quiser garotinha.

– E de que adiantaria? Jamais os alcançaria de qualquer forma. Não tem veículos ou os equipamentos necessários. – falei as palavras esperando uma confirmação, porque sabia muito bem que ele tinha condições de alcançar o transportador.

O chefe mirou o horizonte, como se esperava avistar os foragidos caso se esforçasse o suficiente.

– Não podemos tolerar roubo por aqui.

– Por que lembraria aos seus subordinados de que há como se safar de seu domínio?

Seus olhos me perfuraram e por um momento achei que me daria uma surra, no lugar disso agachou-se e fechou os dedos ao redor do meu rosto.

– Você me lembra alguém. – disse pensativo – Qual a sua idade?

– Tenho doze.

Isto pareceu diverti-lo.

– Doze? Não. Você poderia ter doze quando começou a viajar com esses delinquentes, mas você e eu sabemos que não é mais uma criança, não é?

Sua respiração era quente e cheirava a álcool. Tentei soltar o rosto de seu aperto, mas isso apenas o tornou mais forte. Talvez estivesse certo, talvez um ano se passara desde que Rhes me resgatara. E definitivamente não era mais uma criança. Deixara de ser no dia em que Rhes morrera e me passara a responsabilidade da missão. Era provável que já não o fosse antes, tudo que acontecera na minha vida era tão distante da ideia de infância que às vezes me fazia pensar que a criança morrera junto com os meus pais.

– Basta ser uma boa menina e me dar o que preciso.

– Não precisa repetir, eu decidi não responder. – falei, imaginando se conseguisse fazê-lo sentir raiva não me olharia daquele jeito. No lugar disso acariciou a minha bochecha.

– Vamos nos divertir muito, disso já sei. – disse se levantando – Venho te dar bom dia, espero que passe a noite bem. Caso se sinta tagarela não hesite em chamar um dos meus homens.

O observei se afastar, percebendo o quanto meu coração estava descontrolado. E se resolvesse que não precisava da minha ajuda afinal, que a minha informação era descartável? Deidre, se acalme. Repeti, focando as minhas energias para tentar descobrir alguém que se mostrasse aberto para conversar. Tinha certeza de que se conseguisse conversar com um daqueles subordinados conseguiria convencê-lo a espalhar a ideia de revolta. Era uma certeza desesperada, mas era a única coisa que eu tinha. Os homens carregavam as últimas caixas para o armazém e nenhum deles respondeu aos meus chamados, depois de horas a lua cheia se erguia alta no céu. Senti que estava à beira de um desmaio, a sensação de perder o controle sobre meu corpo me acompanhara durante o dia inteiro, mas sempre me esforçava para permanecer acordada. Agora a resistência já não fazia sentido e vi as luzes que escapavam das estufas e do armazém ficarem cada vez mais borradas, até se apagarem completamente.

Acordei com alguém apoiando o meu pescoço. Pressionava uma garrafa contra os meus lábios, me afogando. Tossi, cuspindo água diretamente sobre a figura que se ajoelhava ao meu lado.

– Desculpe. – disse, limpando a água do rosto. Pela voz reconheci Robert, o ajudante de mais cedo. Agora que havia acordado ele não parecia saber bem o que fazer. Olhei ao redor, o pátio estava completamente vazio.

– Obrigada pela água – agradeci baixinho – Se puder cortar as cordas para que possa me esticar...

– Não posso fazer isso. Mas não se preocupe, apenas dói. Você não terá sequelas.

– E vocês são especialistas nesse assunto? - perguntei, mais ofensiva do que queria.

Robert se afastou um pouco, como se tivesse ameaçado batê-lo. Da primeira vez que o vira não parecia ser uma pessoa brilhante, mas a atitude de se arriscar para me trazer água dizia muito sobre a sua coragem. Ainda que parecesse um buldogue traumatizado. Gostei dele quase de imediato.

– Não somos nós, o chefe nos força. Prende as nossas famílias, se fizermos algo que não lhe agrada as maltrata. Matou uma vez. – a raiva voltou e fechou os pulsos sobre a areia – É perigoso, assassino.

– Quem ele matou, Robert? - quis saber, sussurrando para não ser ouvida. Ainda que não importasse muito, se os supervisores nos vissem chamariam o chefe de imediato, talvez atirassem primeiro.

– Catharina. Minha irmã, nascemos juntos. Sempre juntos. Vi como respondeu ao chefe, Cath era parecida, jamais dobrava a língua. Articulou uma tentativa de fuga, por isso roubamos a comida. Mas os supervisores nos pegaram... Fizeram coisas terríveis com ela, todos eles. O chefe foi o pior. E depois a matou. Vai fazer a mesma coisa com você, ouvi dos supervisores. Por isso vim.

– Sinto muito pela sua irmã. Mas Catharina não morreu em vão, não é? Foi depois da sua morte que vocês se revoltaram?

– Cath era boa, tão amada. Quando morreu abriu os nossos olhos e quase conseguimos, mas eram supervisores demais, não tínhamos armas. O chefe trancou as nossas famílias em um dos porões de estocagem depois disso. Controla o alimento e a água que recebem. Nunca tentamos nada. Era perigoso demais.

– E aqueles que aceitaram os seus termos viraram supervisores. – conclui, sentindo o ânimo baixar. Os trabalhadores não ajudariam caso as famílias estivessem sob o poder do chefe e seus capangas. Claro que não.

Robert anuiu.

– E se eu pensasse em uma maneira de libertar as suas famílias, vocês lutariam pela liberdade?

– Não tenho família. – disse, fazendo espirais na areia com o dedo – Cath foi a primeira, meu pai e irmão mais velho tentaram acertar o chefe durante a revolta e foram mortos. Minha mãe morreu porque o chefe diminuiu a quantidade de comida por um mês, sempre foi fraquinha, ninguém mais morreu. Não tenho nada a perder, mas não me revoltaria de novo, existem amigos que podem perder tudo. Dói demais.

Fiquei em silêncio. Por um momento me dei conta de como estava sendo egoísta, esperando convencer aqueles homens a pôr os seus filhos e mulheres em perigo, apenas para ter uma chance de escapar. Não é apenas por mim, não é uma vida, é uma imensa gaiola, nada mais. Sim, e o que faria com um novo grupo de refugiados? O primeiro terminou muito bem, como pode ver. Ou não. Respirei fundo, tentando articular os pensamentos. Para mim o principal combustível era a sobrevivência, mas não podia esperar que todos compartilhassem dessa ideia.

– E se alguém matasse o chefe, o que você acha que os supervisores fariam?

Robert parecia perdido diante da pergunta, como se aquela situação jamais passara pela sua cabeça.

– Ficariam com raiva. Matariam o assassino – ficou em silêncio por um momento – Depois brigariam entre si para ficar no comando.

– Enfraqueceriam nas brigas internas, dariam uma chance para vocês se organizarem e fugir.

O rapaz se remexeu, desconfortável. Ergueu a cabeça em direção às estufas. Escutando.

– Acho que seria a melhor chance que já tivemos, mas ninguém correria o risco de tentar matá-lo. – falou desapontado.

– Eu posso matá-lo. – falei, gostando cada vez mais da ideia – Quando ele vier me dar a recompensa pela minha colaboração, eu posso matá-lo Robert. Preciso apenas que me dê uma arma quando me chamar ao seu encontro amanhã, dar um jeito de ser um dos que me levam até ele.

– É perigoso. Vim apenas para diminuir o seu sofrimento, vim porque se parece com a minha irmã.

– E o que temos a perder, Robert, você e eu? Se me pegarem jamais falarei quem me deu a arma, eles podem quebrar o meu corpo inteiro, mas não falarei. E se descobrirem que foi você...

– Poderei ver a minha família de novo. – completou, pela primeira vez animado naquela noite – A culpa será sua e minha, de ninguém mais.

Anui tentando sorrir. Não havia outra alternativa, não poderia colocar as pessoas em perigo e meu futuro naquela fazenda parecia ter uma minúscula expectativa de vida de qualquer forma. Se morresse, seria por uma causa maior. Se morresse, seria para o meu próprio bem. Era isso que tentava cravar em minha mente vendo Robert desparecendo dentro do armazém. Para o rapaz também era a melhor alternativa, tinha ainda menos a perder do que eu. Olhei para o firmamento pontilhado de estrelas, o vento me fazia tremer e podia ver a minha respiração hesitante diante de mim. Apenas na noite anterior estava entre amigos. Era uma sensação estranha. Como se tivessem cortado todos os meus planos, amassado os pedaçinhos e jogado no lixo. Tinha sido assim com Rhes também, sentia o chip, um peso leve sobre o meu colo, e pensava nele. Em Erwan, Danton, Zahra e Edda também. Mas principalmente em Erwan. Esperava que a missão deles estivesse indo melhor do que a minha, mas algo me dizia que Berthe os manteria em segurança. Naquela noite gostei de imaginá-los bem, comendo besteiras enquanto se aproximavam cada vez mais da base rebelde. Os pensamentos sobre o meu transportador já não eram tão animadores. 74-S certamente tomara as rédeas da situação e depois de alguns protestos liderados por Aydee e Armand até eles aceitariam que seria suicídio voltar. Tinha perdido a sensação nos braços antes de desmaiar e estava tão cansada que parecia capaz de dormir a qualquer momento. Fui arrancada do cochilo por um intenso zumbido. Sacudi a cabeça.

– Estou enlouquecendo. – murmurei para o vazio.

– Aposto que está, mas garota nós vamos te tirar daí. – falou Aydee.

Os comunicadores! Senti um buraco negro abrindo-se em minha barriga.

– Como vocês –

– Shhh, Armand, cheque se alguém está por perto.

– Você está bem, Deidre? - veio a voz urgente de Armand pelo pequeno ponto em meu ouvido – Estávamos tão preocupados.

– Se você ficar gastando o nosso tempo com perguntas superficiais ela não estará!

– O bem estar dela não é algo superficial, Aydee – falou o garoto indignado – De qualquer forma levaremos medicamentos de emergência.

– Vocês estão aqui? - perguntei, tentando controlar a minha voz – Não vejo nada.

– Devemos chegar pela manhã, levou algum tempo para convencermos os robôs a cooperarem. Anselme só encontrou a frequência certa agora, acha que há algum tipo de interferência na área.

– Os robôs estão trancados junto com os equipamentos – interveio Armand - pelo que sei cooperação não seria a melhor palavra para descrever a situação.

– Vocês lutaram contra os robôs?!

– Nah – veio a resposta despreocupada de Aydee – Apenas deixamos muito claro que queríamos salvá-la, todos nós. Então está bem Deidre? Não devemos permanecer muito tempo conversando, Anselme não para de palestrar sobre como poderíamos estar sendo rastreados. – a voz se tornou mais afastada - Você viu a situação daquela cidade? Não devem nem ao menos ter um banheiro razoável, pare com a paranoia.

– Sobre isso... Acho que podemos ter algum problema. Temos que resgatar os trabalhadores daqui. E as suas famílias.

– O QUÊ?

– São só algumas pessoas, no máximo trinta. Eles tem veículos e se conseguirmos derrotar o chefe e os supervisores que se oporem teremos recursos quase que ilimitados.

Aydee não parecia ouvir.

– Era uma missão de resgate discreta, Deidre, iríamos entrar sorrateiramente e te tirar daí, sem problemas. Sem barulho. Sem uma multidão adicionada ao grupo. Silêncio vocês todos, estou explicando para ela!

– Não há outro jeito, Aydee. – falei decidida – Ou salvamos todos, ou não precisam vir. Eu tenho um plano para resolver a questão de qualquer forma.

– É, eu ouvi. –desdenhou - Muito eficaz esse seu plano, Armand encontrou apenas quinze maneiras de dar errado. Bom, como disse, não há outro jeito. Não vamos te deixar para trás, aguardaremos o seu sinal. Espero que saiba o que está fazendo.

– Vamos precisar dos robôs, digam a eles que a sobrevivência do grupo depende da cooperação deles.

– Cooperação, minha nova palavra favorita. Vejo você amanhã e tente não ficar confortável demais, é a sua última noite nesse poço.

E com isso a comunicação cessou. Um pequeno sorriso tocou os meus lábios maltratados. Tentei encontrar a melhor posição que a minha pouca mobilidade oferecia e consegui dormir, apesar da ansiedade que tomava o meu corpo. Minha última noite naquele poço, minha e de todas as famílias dos trabalhadores. Era também a última noite do chefe. Esperava que estivesse aproveitando.

Amanhã faríamos uma rebelião explodir sobre sua cabeça.


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Notas finais do capítulo

Quase deixo passar de novo, mais aí está!

— Lud



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