O Homem é tão falho. Dentre todas as espécies que existem no universo, o Homem é, sem dúvidas, o que mais peca. O Homem odeia, inveja, oprime, subjulga os demais. O Homem mata sem motivos, ambiciona, esquece-se de Deus.

Mas este mesmo Homem também pode ser sublime. Quando arrisca a própria vida para salvar o filho, quando toca uma canção, quando ama verdadeiramente. Nós, Arcanjos, fomos criados com o objetivo de proteger e guiar o Homem. Sempre achamos, em nosso interior, que eles tinham muito a aprender e nos esquecemos de que nós, anjos, também somos falhos.

Eu falhei. Fui capaz de pecar gravemente e meus pecados tiveram consequências terríveis. Mas eu não me arrependo do que fiz, pois o motivo que me levou a fazê-lo foi meu amor por Melanie.

No momento crucial, ela estava lá. Forte, decidida, com sua fé inabalada. Ela me ensinou, ela me deu forças para continuar; foi por ela que superei a culpa, os pecados, e alcancei minha redenção.

O momento que sucedeu minha passagem de lembranças à Harper foi o mais incrível que já vivi. Assim que toquei sua pele soube que ela nos salvaria. No fim, o Homem salvou a si mesmo e salvou a todos nós.

A noite virou dia. O Livro da Vida brilhou após as linhas de Harper. O clarão atingiu o Céu e iluminou a Terra inteira, que vivia o caos. Então ele veio. Meu irmão, o quinto Arcanjo... ou a metade nobre dele: o Espírito Santo.

Ele desceu até nós com todo seu amor e luz dados pelo Criador e flutuou até a figura de Lúcifer, que apenas o encarava estarrecido. Com a voz límpida como água corrente, ele disse:

- Que se faça como está escrito. Agora, somos um só.

Esticando a mão, o quinto Arcanjo tocou a pele do demônio e tudo se fez luz.

Quando pudemos enxergar novamente, a noite havia voltado ao que era antes, calma, tranquila... e meu irmão também. Lúcifer estava ajoelhado e chorava avidamente.

- O que está acontecendo? – Lucius estava desesperado, não conseguia compreender.

Nesse momento, pedi ajuda a minha Gladius, que, mais uma vez, me atendeu. Senti o morno e familiar calor do metal em minha mão. No instante seguinte, estava cravando minha espada sagrada no peito do estarrecido Lucius, atravessando seu corpo por completo.

- Sem seu pai... você morre pra sempre. – falei enquanto observava o olhar atônito de Lucius.

Ele tentou balbuciar alguma coisa, mas o sangue escorria por entre os lábios. O corpo dele escorregou e caiu lentamente sobre o solo, virando pó em seguida.

Finalmente.

Como uma flecha, ajoelhei-me ao lado de Melanie, que estava quase desmaiada. Ela já não era celestial, era apenas mortal e tinha perdido muito sangue. O fino anel em seu anelar que simbolizava o pacto com Lucius, havia sumido.

Ela me encarou com o rosto pálido e os lábios rachados. Senti um nó na garganta.

- RAFAEL! – berrei desesperado... minha Melanie estava morrendo em meus braços.

Meus irmãos que estavam reunidos em volta de Lúcifer ainda tentando entender o que havia acontecido, nos olharam, e no mesmo instante, Rafael estava ao meu lado, examinando Melanie criteriosamente.

- Rafael, me diga que pode salva-la! – gritei nervoso pela tranquilidade dele – RAFAEL!

- Miguel, eu sinto muito... ela cumpriu seu destino.

Não... eu não podia entender. As palavras dele eram difíceis demais para que eu entendesse. Ele estava dizendo que ela iria me deixar?

- Miguel... – ela sussurrou fracamente.

- Xiii – eu disse embalando-a em meus braços, sentado no chão vermelho com seu sangue puro – Não fala, você está fraca, mas vai ficar bem, eu juro, que vai ficar bem...

A cada segundo o corpo dela perdia um pouco do calor, Melanie me deixaria a qualquer momento.

Senti a tristeza de todos. Uriel, Gabriel, Rafael e até mesmo Lilith, que segurava a mão do meu irmão dom delicadeza. A tristeza deles só servia para confirmar o meu terror.

Um vento morno soprou do leste. O tempo já não estava revolto, pelo contrário. O dia começava a raiar no horizonte que tinha um belo tom azul e preto.

Então eu senti uma tristeza maior que todos, quase tão grande quanto a minha. Desviei o olhar e vi a origem de tamanha dor. Era Lúcifer, que ainda deixava escorrer as lágrimas cristalinas pelo rosto. Ele se aproximou de Melanie e se ajoelhou.

- Me desculpe, criança, pelo mal que lhe causei.

Ela sorriu, apenas sorriu da forma mais pura e doce que existe. Estava feliz.

Eu não estava. Eu sabia que se ela me deixasse, eu jamais seria o mesmo.

Lúcifer se levantou e falou algo que eu não compreendi para Rafael.

- Tem certeza disso? Você sabe o que significa? – Rafael perguntou a Lúcifer que, sorrindo, acenou.

- É o mínimo que posso fazer depois de tanto mal que causei.

Dizendo isso, Lúcifer segurou uma das mãos de Melanie e, a outra, estendeu à Lilith.

Relutante, a bela mulher aceitou a oferta, embora não soubesse o que viria.

- Eu, Lúcifer, o Quinto Arcanjo, abdico de minhas asas e de minha imortalidade de bom grado. Que minha energia possa reparar os danos que causei. Peço que aceite minha oferta, Pai, para que meu próprio espírito possa sentir o mínimo de redenção.

Fechando os olhos, Lúcifer estendeu plenamente as asas brancas e lindas que agora lhe pertenciam e uma luz quente saiu de seu corpo, fluindo em duas direções. Depois disso, seu corpo mortal desmaiou.

...

Era a melhor sensação do mundo, poder voar novamente, com minhas próprias asas. Lúcifer, o Quinto Arcanjo, não havia apenas salvado minha vida, mas havia me devolvido a essência angelical, assim como havia devolvido a humanidade de Lilith.

Seu sacrifício foi apenas o primeiro passo para a redenção de sua alma.

Ele não era mais o Demônio, Senhor do Submundo, ele era apenas mais um mortal entre os homens, assim como Lilith e Uriel, que abdicou de sua essência para viver uma vida mortal ao lado de sua amada. A decisão de Uriel, aliás, não foi apenas por Lilith, mas sim por seu próprio espírito. Ser mortal sempre foi o desejo mais oculto de sua alma. Ele amava tanto aos homens que desejava ser um deles.

O ritual de Uriel para se tornar humano foi semelhante ao meu, quando, uma vez, arranquei minhas asas para me tornar mortal, mas foi muito mais alegre. Ele realizava um sonho, de coração aberto.

O mesmo aconteceu com Jules. Ele decidiu ficar ao lado de Harper, jurando-lhe amor eterno. No início ela não quis, mas a decisão foi dele. Ela chorou ao ver as asas de seu guerreiro serem arrancadas, mas ele estava feliz porque teria algo muito mais importante ou sublime que um par de asas, ele teria seu amor e isso lhe bastava.

Foi com o coração pulsando forte que retornei a Abyssi, onde tudo havia começado. Senti o ar leve e agradável de casa, ao lado de Miguel, Rafael e Gabriel.

Os dedos entrelaçados do meu Arcanjo carinhavam a palma da minha mão. Somente aquele pequeno gesto já me fazia sorrir.

- Melanie – Rafael falou, fazendo-nos interromper a caminhada – A partir desse momento, você terá outra missão aqui. Já não é mais uma das minhas pupilas. Você está muito além disso.

- Como assim, Rafael? Eu não entendo... não pertenço mais a sua casta?

- Não Melanie, você não pertence mais a casta alguma. – Miguel foi quem respondeu, soltando minha mão e sorrindo – Agora você tem sua própria casta para comandar.

- O-o quê? – gaguejei.

- Você mostrou ter um amor puro pelos homens, a ponto de sacrificar sua própria essência por eles; você se sacrificou como nunca nenhum anjo antes o tinha feito. Sem Uriel aqui, você é a que melhor representa sua essência. Você é pura, íntegra, e forte o bastante para continuar esse legado, o do amor à criatura que Deus mais ama. Agora é seu dever cuidar deles.

Eu não sabia o que dizer, não podia acreditar... não podia tomar o lugar de Uriel, isso era impossível.

- Eu não sei se posso fazer isso, não sei se estou pronta pra essa responsabilidade. – falei encarando a grama verde sob meus pés.

- Você é. – Rafael falou sorrindo, enquanto tocava meu ombro – Além disso, nós três decidimos e nossa decisão é incontestável. – ele acrescentou com tom humorado.

Olhei para Miguel e em seguida para Gabriel, onde realmente fiquei surpresa. Eu pensei que ele fosse dizer que foi contra ou algo assim, mas ele se limitou a sorrir de forma irônica, como sempre, antes de dizer:

- Não me encara desse jeito. Nós somos três, eles foram a maioria.

Eu continuei o encarando e suas palavras pareceram sérias. Senti uma pontada no estômago. Então ele acrescentou:

- E Rafael está certo... você merece.

A pontada virou um pontapé dentro de mim. Ele estava mesmo me elogiando? Mas antes que alguém pudesse dizer algo, Gabriel falou, abrindo as asas brancas impecáveis:

- Você não vai me ouvir repetir isso... nem em um milhão de anos.

E voou para longe, me deixando sem palavras.

Miguel sorria ao meu lado.

- Não se preocupe, cada um de nós terá o prazer de informar sobre a mudança para os anjos... e em breve nos encontraremos no refúgio das pedras para comunicar aos anjos da guarda. Você vai ser uma guia sábia, tenho certeza.

Depois disso, Rafael voou na direção contrária a de Gabriel. As palavras ainda me faltavam.

Então senti os braços fortes e quentes de Miguel me envolverem. Uma de suas mãos passeou pelas minhas asas até a base do pescoço, onde segurou com carinho e vontade.

- Isso é um sonho? – perguntei a ele pouco antes de tocar seus lábios.

- Isso, é só o começo da nossa eternidade. – ele respondeu antes de me beijar.

FIM