Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 31
A visita, o ensaio e Natalí


Notas iniciais do capítulo

=D



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           Era sábado, minha manhã de faxina. Porém essa minha obrigação se estendeu até de tarde, pois perdi um tempo revendo alguns trabalhinhos da infância que encontrei em uma estante. Eram provas e papéis do fundamental, só por aí já me dei conta de como o tempo voou. Eu ainda estudava em uma escola municipal, aqui em Paineiras mesmo, e era feliz. Não que agora eu não seja, mas naquela época era uma felicidade ingênua, sem medo de atos, ou melhor, das consequências. Perdi um bom tempo viajando ao redor desses pensamentos, o que me custou um pedaço da tarde limpando os quartos.

           Meu pai não conseguia mais parar quieto com aquela perna. Ninguém me entende quando falo que ele não pode sair de casa por causa de uma simples perna quebrada, então vou tentar explicar melhor a situação. A fratura que ele teve foi seriíssima e não afetou somente um ossinho. O gesso que ele está usando vai até a coxa e de lá, sai uma espécie de cinturão - não sei explicar muito bem - que impossibilita que ele mexa a perna de qualquer maneira. Agora imagine um homem hiperativo com uma perna só. No início ele até obedecia as instruções do médico e nem saia muito da cama, mas agora, vira e mexe ele desce as escadas sozinho! E foi exatamente isso que ele havia acabado de fazer. A essas alturas ele já estava na varanda, vendo o movimento da rua. E eu aqui, limpando os quarto aos farrapos.

         - Melinda! – gritou.

         Quando ouvi sua voz ecoando pela casa, quase não acreditei com a coincidência dos meus pensamentos.

         - O que é pai?

         - Desça aqui!

         Desci imaginando que ele queria um favor ou então um momento de descontração, enchendo o saco da única filhinha.

         - Sim pai... – já fui dizendo antes mesmo de abrir totalmente a porta de entrada.

         Cruzei a soleira sem olhar para frente, com a maior cara de acabada, cansada, exausta do mundo.

          - Ah... – engoli um suspiro e fiquei paralisada.

          - Mel?

          - Dan... Daniel? – gaguejei bruscamente.

          Meu pai só podia estar de brincadeira comigo. Não só ele, mas como Daniel também. Como pode? O que Floukin estava fazendo na minha casa? E pior ainda, como meu pai teve a coragem de deixar que eu viesse até aqui nesse estado e fosse pega de surpresa? Não sabia quem eu queria matar primeiro.

          - Oi Mel, desculpe vir assim, sem avisar... – murmurou um pouco vermelho olhando para meu pai.

          - Na... Não se preocupe com isso. – agora, além de gaguejar, eu também estava vermelha. – Vamos, entre!

          - Entrar? – perguntou meu pai um pouco indignado.

          Nessa hora tive a certeza que era meu pai quem eu queria matar primeiro. Não acreditei que ele estava desfazendo minha visita.

          - É pai, entrar. É isso que as visitas geralmente fazem, visitam a casa, e não a soleira da porta! – respondi brava, abrindo um pouco mais a fresta da porta e indicando para Deni entrar.

          - Com licença. – disse Daniel extremamente educado. Meu sorriso abriu de lado a lado da boca.

          Entramos e logo fechei a porta, deixando meu pai lá fora. Oras, se ele ficou lá até agora, que fique então mais um pouco!

          - Pode sentar Deni. – apontei para o sofá.

          - Mel, desculpa se eu incomodei...

          - O quê? Não! De forma alguma! – tentei retratar a situação de todas as formas. – Se você está falando isso por causa do meu pai, pode desconsiderar o que ele falou. Sabe como é... Única filha... Ele tem ciúmes de qualquer amigo meu!   

          - Até do Francisco e do Roberto? – indagou curioso.

          - Ele já está mais acostumado com eles, mas tem um pouco sim. – sorri. – Meu pai é da época em que amizade entre meninos e meninas só possuía dois significados!

          - Dois significados? – fez uma cara de mias curioso ainda.

          - É. Ou era por segundas intenções ou porque o menino, digamos assim, tendia para o outro time.

          Caiamos na gargalhada da minha ótima definição de amizade mista.

          - Mas agora não é mais assim. – conclui ainda com voz risonha.

          - Pelo menos não na maior parte das vezes. – completou, trocando a voz risonha, por uma outra, um pouco mais cativante.

          Ficamos um segundo em silêncio nos encarando, até que me toquei que ainda estava parecendo um desastre de gente.

          - Ai meu Deus! – fiquei de pé em um pulo.

          - O que eu foi? – perguntou com uma voz assustada.

          - Olha meu estado, estou parecendo uma... Uma... – a palavra ideal me fugiu.

          - Uma garota normal, que ajuda nos serviços de casa e fica linda de qualquer jeito! – seus olhos brilharam com ternura e eu quase perdi meu chão.

          - Mas infelizmente eu não sou a Cinderela.

          - Por que não?

          - Pois não tenho uma madrasta e nem um príncipe encantado. – disse sentando novamente.

          Daniel abriu a boca para falar e eu ansiei como uma louca por suas palavras, mas elas não saíram. Dei um tempo, uma segunda chance para ver se ele falava algo, mas não foi desta vez. Então lá fui eu, começar a conversa novamente.

          - Mas enfim, qual a honra dessa visita. – brinquei.

          - Bem simples. Hoje vai ter ensaio da minha banda e eu e os garotos marcamos de ser lá em casa. E, como eles vão levar suas na... – engoliu rapidamente a palavra. – Suas amigas, resolvi vim aqui para te convidar também. 

          Meu sorriso abriu grande, mas logo se fechou.

          - Eu adoraria muito ir, mas ainda tenho que terminar de limpar a casa. – murmurei.

          - Não precisa mais! – soou uma voz bem familiar vinda da cozinha. – Como você mesma disse, não há nenhuma madrasta aqui! – disse minha mãe, agora aparecendo na sala e cumprimentando Daniel.

          Abri o maior sorriso novamente e disse para Deni esperar um minutinho para eu me trocar. Subi as escadas e tranquei-me no quarto. Só uns minutos depois minha ficha caiu. Será que minha mãe ouviu toda minha conversa com Daniel ou só um pouquinho?

Não fiquei muito presa a essa dúvida, a final ela é minha mãe, minha amiga, uma hora ela teria que ficar sabendo mesmo. Isto é, se ela chegou a perceber algo de mais comprometedor do que uma simples conversa.

         Corri para o banheiro e tomei uma breve ducha para tirar o suor do corpo. Coloquei um jeans e uma bata e fiz um rabo de cavalo. Lancei um olhar no espelho e achei que faltava um acessório, não sei dizer bem, mas faltava aquele toque final. Lancei rapidamente os olhos por todo o meu quarto e vi uma fitinha de cetim vermelho jogada no canto da minha cama. Como minha blusinha tinha um tom de terra, resolvi inovar, amarando a fitinha no meu pescoço. Passei o laço para trás da nuca e o detalhe até que ficou bem charmoso. Como meu tempo era curto, foi somente isso que consegui fazer. Desci as escadas, sem maquiagem ou até mesmo brincos. Foi a vez que me arrumei mais rapidamente para sair. Não que eu demore a me arrumar, pelo contrário, sou até bem ágil neste quesito, mas quando tenho algum interesse ou no lugar para onde vou ou com quem eu vou, não custa nada dar uma caprichada.

        Quando cheguei à sala, encontrei Daniel assistindo televisão e de costas para a escada. Com certeza minha mãe deu uma de anfitriã na minha ausência.

        - Estou pronta. – disse.

        Daniel olhou para trás e abriu um sorriso que me convidou a sorrir junto.

        - Você está... Muito bem.

        - Que nada... – devo ter ficado roxa.

        Uma buzina tocou do lado de fora da casa e meu pai chamou meu nome novamente. Estranhei por um segundo, mas logo Deni esclareceu minhas ideias.

         - Deve ser meu pai...

         - Seu pai? – espantei-me.

         - É, ele me deixou aqui e foi até a padaria comprar umas besteiras para comermos depois do ensaio. Ele falou que passava aqui na volta para nos buscar.

          - Sua casa nem é tão longe, não é?

          - Não muito... Por quê? Está querendo recusar uma carona?

          - Não! Claro que eu aceito... Só perguntei por perguntar. – sorri.

          Corri na cozinha e dei um beijo de tchau e de agradecimento na minha mãe. Voltei para a sala e Daniel e eu saímos.

           - Aonde você vai Melinda? – indagou a voz séria do meu pai que ainda estava sentado na varanda.

           - Bem, Deni me convidou para assistir ao ensaio da banda dele... – murmurei rezando para ele não dar uma de pai repressor.

           - Unn... Você toca em uma banda rapaz? – perguntou seu Afonso insistente, só que desta vez para Daniel.

           - Sim... Toco guitarra. – respondeu com uma voz meio travada.

           - Sei. É seu pai ali? – insistiu nas perguntas. Eu estava ao ponto de não conseguir mais me controla se ele continuasse com isso.

           Deni voltou a cabeça e deu de cara com o Civic encostado um pouco a frente da nossa garagem.

           - Bem, é meu pai sim... Ele vai nos levar até minha casa, se o senhor permitir que a Mel vá, é claro.

         - Você já falou com sua mãe? – perguntou, agora para mim.

         Eu quase explodi depois desta. “Não pai, não pedi... Você não percebeu que eu estou fugindo de casa?” Estava mordendo a língua para não dar esta resposta malcriada, mas contive-me ao extremo. Não iria me rebaixar à infantilidade do meu pai.

         - Claro pai, até mesmo porque ela quem me incentivou a ir. Mas agora, podemos, por favor, entrar no carro? O pai de Daniel está esperando. – pedi com cara de anjo.

         - Está bem... – cedeu derrotado.

         Dei meu sorriso de vencedora e fui andando até o portão, onde Daniel me esperava encostado no muro. Meio segundo a voz do meu pai cortou novamente a varanda.

         - Espere Melinda!

         - O que foi agora? – disse, me voltando a ele e rangendo os dentes.

         - Eu não posso te buscar, como vai voltar? – ele insistia em encontrar um motivo para me barrar.

         Abri um sorriso, pois sabia que essa batalha já estava ganha.

         - Não vai ser necessário, não é longe, volto de a pé. E, além disso, antes que você me faça mais perguntas, não vou voltar muito tarde, estou com o celular e não precisa se preocupar. – dei uma piscadela e sai pelo portão. – Te amo pai. – disse sorrindo pela minha vitória.

          No carro, pedi desculpas pela demora, mas parecia que o pai de Daniel nem havia percebido que perdemos alguns minutos na frente do portão. Fiquei quieta por todo o caminho que durou cinco minutos. Estacionamos a frente de uma casa muito bonita, de um verde erva-doce com pedras no muro. O portão branco era o detalhe final da fachada da casa dos Floukins.

          - Bem Mel, chegamos. – disse Deni.

          Morávamos tão perto, mas era como se morássemos em cidades diferentes. Nunca havia ido até a casa dele. Descemos do carro e entramos. Passamos primeiro pela sala, que era muito mais ajeitada do que a da minha casa. As cores combinavam e se contrastava ao mesmo tempo. A mãe dele deveria gostar muito de flores, já que a cada canto havia um vaso muito colorido com um cheiro doce e suave, que perfumava toda a casa. Da sala passamos pela cozinha, linda e extremamente planejada. Com certeza uma cozinha desta deveria ser o sonho de consumo de dona Lorena. Seguimos para a garagem. Eu literalmente só fui seguindo Daniel, sem proferir nenhuma palavra.

           A garagem era o estúdio improvisado da MD Play. Em um canto, estava colocada sobre um apoio, a guitarra de Daniel. Do outro lado uma caixa de som com diversos fiozinhos coloridos pendurados, inclusive um que se ligava ao microfone que estava jogado em cima de um sofá marrom bem desgastado. Colocado em um outro canto, havia um suporte metálico para teclado. Teclado? Recorri a minha memória infalível e me dei conta de que não havia tecladista na banda.

           - Daniel, aquilo é um suporte para teclado mesmo? – perguntei curiosa.

           - Bem, é sim. – respondeu sem animo.

           Não entendi o motivo dessa reação e insisti.

           - Mas, pelo o que me lembro, a banda não tinha um tecladista!

           - Disse bem, não tinha. Mas agora temos... – bufou se lançando no sofá surrado.

           - Legal. – demorei um segundo raciocinando. - Ué... Mas um baterista vocês tinham, não é? – voei de novo para minha mente e vi nitidamente o rosto do rapaz loiro retirando as baquetas do bolso.

           - Não mais... O Cadú está entrando em pânico por causa dos vestibulares semestre que vem. Se ele não passar o pai dele mata ele. – Daniel deu um sorriso bobo para si mesmo. – Em fim, ele resolveu deixar a banda por um período para se focar melhor.

            - Mas ele vai voltar a tocar?

            - Se não for para uma faculdade muito longe, espero que sim.

            Fiquei raciocinando por um segundo novamente. Eu tinha quase certeza que Daniel havia me falado que os integrantes da banda eram amigos de classe dele na outra escola.

            - Esse Cadú, era da sua sala na outra escola?

            - Era sim, ele, seu irmão gêmeo e o Hugo. Todos da banda. – sorriu.

            - Mas, então porque ele está neste “regime militar” se ainda é treineiro? – perguntei curiosa.

            - Treineiro? Não ele já é vestibulando!

            Fiz uma cara gozada.

            - Como, se ele ainda está no segundo colegial?

            - Mel, ele está no terceiro.

            Parei por um segundo, muito interrogativa.

            - Mas como, se você ainda está no segundo colegial?

            Daniel parou e olhou para o ar, pasmo e branco. Sua boca se abriu por um segundo, mas nada saiu dela.

            - Estranho, não sabia que dava para pular de série. Como ele fez isso? – perguntei idiotamente.

            Daniel ainda estava paralisado e eu não estava entendendo coisa alguma.

            - Terra para Floukin. – disse estalando os dedos diante dos seus olhos.

            - Ah, Bem... Ai... – ele mais gemia do que juntava letras. – Na verdade, ele não avançou um ano. – suspirou.

            - Não? Como não? – estava confusa. – Mas se ele não pulou um ano... – franzi a testa – alguém voltou um... Daniel! VOCÊ REPETIU DE ANO? – gritei sem piedade e me arrependi profundamente, pois neste exato momento a mãe de Daniel entrou na garagem acompanhada de um rapaz ruivo com sardinhas. Era o baixista.

            Daniel nem olhou para porta quando ouviu o barulho, só ficou me encarando com seus olhos azuis e fuziladores. Eu, sem opção e morrendo de vergonha, baixei os meus e fiquei quieta sem falar mais nada, apenas esperando a primeira reação que se dirigisse a mim. Se o caso fosse mesmo que Daniel havia repetido, não era o fim do mundo e com certeza ele iria me explicar melhor depois, “na hora certa”, como sempre dizia. 

           - Está tudo bem aqui? – perguntou a Srª Floukin para nós.

           Estava rezando para ela não fazer essa pergunta. Na verdade estava rezando para ela nem ter ouvido minha explosão, mas com certeza isso teria sido impossível. Mais do que roxa tentei imaginar no que ela estava pensando e senti-me a perfeita palhaça inconveniente ali, sentada naquele sofá, julgando o filho dela, na casa dela.

           - Está sim mãe, eu e a Mel só estávamos brincando, não é? – a cabeça de Daniel voltou para mim tão rápido que nem tive tempo de pensar duas vezes, apenas levantei meus dois polegares confirmando e parecendo uma idiota que não sabe falar.

           - Sem problemas. – sorriu a Srª Floukin. – Divirtam-se meninos. – disse empurrando o ruivinho para dentro e fechando a porta.

           - Hugo! – exclamou Daniel levantando-se e indo abraçar o amigo.

           - Tudo bem cara? – respondeu com uma voz rouca.

           - Vem, coloca o baixo ali. – apontou para um canto perto de um amontoado de fios vermelhos. – Bem, vou fazer as apresentações: Hugo, esta é a Mel. – disse apontando para mim.

           Fiquei de pé em um pulo e cumprimentei o rapaz.

           - Então essa é a Melinda? – indagou enquanto eu tentava contar suas sardas.

           Estranhei o fato de ele dizer meu nome e não meu apelido, assim como Deni nos apresentara, mas logo me toquei de uma comunicação que eu não estava a par, assim que Daniel deu uma cotovelada de leve no amigo. Eu ri baixo.

           - Bem, agora é só esperar o Diego chegar com o tecladista e começamos. – disse Deni a Hugo.

           Foi ai que eu lembrei do assunto que havia ficado esquecido.

           - Falando nisso... – comecei sem jeito – O que vocês vão fazer sem baterista?

           Os dois rapazes se olharam um segundo.

           - Já contou para ela? – perguntou o ruivo.

           - Mais ou menos... – disse Flokin.

           Eu fique novamente boiando e me sentindo a excluída da conversa, mas logo fui interagida.

           - Então Mel, já que nosso baterista tirou “férias”, tivemos que encontrar outro... – começou Daniel.

           -... Mas não encontramos nenhum! – continuou Hugo.

           - Então o Diego, o gêmeo menos neurótico que não desistiu da banda, falou que iria tentar encontrar um tecladista para tampar o buraco da bateria, podemos dizer assim.

           - E ele ficou de trazer o cara novo hoje. – concluiu o ruivinho.

          Minhas ideias se clarearam por um segundo, mas logo tudo se ofuscou novamente. O que tinha a ver um tecladista para substituir um baterista. Minha consciência leiga para música implorou para eu não fazer essa pergunta e parecer boba. Então não a fiz, achei melhor esperar para entender quando eles tivessem tocando.

           Fiquei observando os rapazes arrumarem os últimos detalhes em silêncio, encostada em uma estante, já que o sofá estava um pouco ocupado de mais com umas tralhas que o ruivinho havia jogado em cima dele.

           Não demorou muito para esse momento de ficar isolada em um canto acabar. A mãe de Deni logo entrou de novo na garagem acompanhando o rapaz loiro e bronzeado que lembrei de cara ser o vocalista. Logo atrás dele entraram duas garotas bem afeiçoadas. Uma delas, que estava de mãos dadas com o vocalista, era de uma beleza mais natural, sem muita artificialidade. Era mais modesta, com um corpo sem muitas surpresas, mas com um rosto muito bem desenhado. Tinha cabelos castanhos e repicados, que pareciam fiapos de um tecido leve sobre seu pescoço esguio. No entanto, a outra garota chamava muito mais a atenção. Tudo começava pelas suas roupas, bem mais justas e decotadas. Não chegava a ser vulgar, mas em mim nunca combinaria. Seu cabelo era ruivo, tingido na certa, mas que descia sobre seus ombros como um manto acetinado. Um óculos de Sol os prendiam para não cair sobre a testa, embora o dia estivesse nublado. Seu rosto deveria ser bonito, mas a maquiagem era tanta, que dava-lhe um brilho além do normal. Poderia até ser excessiva para mim, uma garota comum, não habituada a esses incrementos, embora para ela, caísse muito bem. Toda essa produção colocou minha fitinha de cetim, no chinelo.

           Porém o que mais me chamou a atenção por de trás daquela produção toda, foi que ela trazia no ombro uma bolsa retangular que quase era da sua altura. Estranhei.

           - Diego, você chegou. – exclamou Deni indo cumprimentar o amigo. – Hei Maria, tudo bem? – perguntou a garota que estava de mãos dadas ao amigo.

           De cara imaginei que Diego e Maria fossem namorados, o que era verdade.

           - Oi Deni, Hugo, como vão? – disse Diego aos dois que se desenrolavam de um bolo de fios.

           Depois de uma cena quase desastrosa onde Hugo por muito pouco não caiu sentado em cima do próprio baixo, estávamos todos reunidos no centro da garagem.

           - Diego essa é a Mel. – disse Deni puxando minha mão e me conduzindo até a frente do amigo. – Mel, esse é o Diego e sua namorada Maria. – sorri e cumprimentei os dois, exceto a bonitona, já que ninguém havia nos apresentado.

           - Caras, essa é a Natalí. Fiquei de arrumar um tecladista, mas acabei encontrando uma tecladista. – disse Diego após um segundo.

           Só então me toquei. Aquela bolsa em suas costa era um teclado! Uma garota linda daquelas seria a nova tecladista da banda.

           - Uou – disse Hugo. – Acho que o público masculino da nossa banda vai aumentar.

           Todos riram um riso saudável, menos eu que parecia uma frenética rindo. Estava nervosa.

           - Hugo, Hugo... Se sua namorada te ouve... – disse Deni depois de pararmos de rir. – A propósito, cadê ela?

           - Foi para Minas, sabe como é, reunião de família. – Hugo balançou a cabeça, um pouco desanimado. – Ah, está bem... Mas não seja por isso, eu tenho namorada, ou melhor, nós temos. – indicou com o polegar o amigo Diego. – Agora quem este livre... Acho que não deveria perder as oportunidades. – riu olhando para Deni

           Deni olhou para Hugo fazendo pouco caso de suas palavras, embora eu quisesse pegar os cabelinhos ruivos e torcer. Com certeza todos entenderam a mensagem subliminar de Hugo para Daniel.

           Fiquei esperando alguma resposta em contra partida, na verdade todos estavam. Deni parecia o centro de todos os olhares, que se decepcionaram profundamente quando ele apenas se virou e pegou sua guitarra.  

           - Viemos aqui para ensaiar, não é? Então vamos! – disse com um tom inalterado.

          Meu sorriso se fechou.

          Fiquei um segundo refletindo enquanto a banda se arrumava em suas posições. A indiferença de Deni com a pergunta de Hugo me deixou um pouco aborrecida. Será que ele não me via como uma “oportunidade”? Mas ele já tentou me beijar uma vez. Bem, pelo menos acho que era isso que aconteceria se a bendita voz não tivesse atrapalhado. Não creio que ele estava se aproximando daquele jeito por outro motivo. Sim, claro, não posso desconsiderar a hipótese que ele só estava tentando tirar um cisco do meu olho, esta com certeza tem peso alto. Ele deve ter aproveitado todo aquele clima romântico para fazer essa boa ação.

          - Não. – murmurei para mim mesma. - De fato, ele tentou me beijar.

          Olhei rapidamente para Deni, que conectava alguns fios na sua guitarra. Seus olhos rapidamente correram pela garagem e encontraram os meus. Dei um sorrisinho e ele retribuiu, como sempre.

          Não era possível que nada estivesse acontecendo. Sei que já havia passado muito tempo desde nosso quase beijo e sei também que depois daquilo ele nunca mais tentou de novo. Mesmo eu querendo muito. Às vezes fico imaginando o motivo dele nunca mais se arriscar, não consigo entender o porquê. Peço sempre, com todas as minhas forças, que não seja por arrependimento, ou então por nossas discussões. Pior ainda, e se ele observou melhor a situação e nos viu mais como amigos do que outra coisa?

           Meus olhos gelaram e se estatelaram em um ponto fixo. Não. Minha mente girou e só encontrou esta palavra.

          - Mel, Mel... – ouvi uma voz me chamando e senti meu braço ser puxado. – Está dormindo de pé? – era a voz de Daniel.

        Olhei para ele por um segundo pensando naquele assunto ainda.

        - Não... – murmurei.

        - Então volte para a terra, vamos começar a tocar. – sorriu e soltou meu braço, voltando para sua guitarra.

        Eu me afastei e sentei ao lado da outra moça, a namorada de Diego, Maria.

        - É a primeira vez que você vem ao ensaio, não é?

        Olhei para o lado e vi Maria gesticulando animada para mim, enquanto um som agudo de guitarra era rapidamente afinado por Daniel.

        - Bem, é sim... – falei. – Você vem sempre?

        - Sempre que posso. Adoro ver os garotos tocarem! – riu mais animada ainda.

        Achei engraçado como ela era tão animada, só naquele momento havia reparado que a todo o momento ela estava sorrindo. Era peculiar.

        Os instrumentos agora já estavam bem afinados. Eles apenas falaram o nome da música que iriam treinar primeiro para a ruiva, que assentiu com a cabeça e levou os dedos com as unhas vermelhas sobre as teclas. Não conseguia parar de reparar nela.

        Uma música muito gostosa cortou toda a garagem. Depois dela várias outras se seguiram e ia curtindo uma a uma. A falta de uma bateria nem era percebida no meio de tantos sons diferentes que aquele teclado fazia.

         Depois de umas seis músicas, eles resolveram dar uma pausa. Enquanto entraram para beber água, Maria puxou meu braço e ainda extremamente animada começou a tagarelar.

         - Nossa, adoro música! É tão empolgante ter um namorado músico, não é?

          “Não é?” ela estava esperando uma confirmação minha?

         - Bem – murmurei. – Para você, deve ser...

         - Você não acha? – retrucou com uma cara inconformada.

         - Não, falei que deve ser, porém eu não posso te dar essa confirmação.

         - Por que não?

         Não entendi o que ela queria dizer com essa pergunta. Estava parecendo uma conversa de doidos!

         - Oras, porque não! Como vou saber? – dei os ombros. Aquilo estava estranho.

         - Sabendo, por experiência, assim como eu! – ela retrucava confiante.

         Sinceramente eu estava perdida. Ela não parava de insistir nas perguntas e eu nas respostas. Estava tão complicado assim entender o simples fato de que eu não sabia? A final, não há como eu saber.

        - Mas eu não tenho experiência... – respondi sem ao menos saber do que se tratava a palavra “experiência”.

        - Por que, é recente?

        - Recente? – eu estava confusamente confusa.

        - É, o namoro!

        - Namoro?

        Ela ficou um segundo em silêncio enquanto eu a fitava com a cara mais cômica do mundo. Demorou um pouco para minha fixar cair, mas quando caiu, eu não sabia se ria ou chorava.

        - Ah... – exclamei. – Você achou que eu e Deni...

        - Desculpe... mas é que todas as meninas que já assistiram aos ensaios eram as namoradas dos garotos. – disse ponderando seu tom tagarela.

        - Imagina... Não precisa se desculpar. Mas eu e Daniel somos apenas amigos... – não gostei muito de dizer isto, mas disse imaginando onde estava a cabeça de Maria na hora em que o Hugo disse claramente que o Daniel era o único solteiro da banda.

        Neste exato momento os garotos voltaram para a garagem. Diego correu para dar um beijo na namorada e Daniel veio conversar comigo.

         - E aí Dona Melinda, estamos aprovados?

          - Vocês estão muito bem aprovados desde a primeira vez que os vi no Open . – sorri.

          - Que bom então... – ele sentou ao meu lado, no espaço vago que estava Maria.

          Percebi uma leve recaída nos olhos de Daniel. Eles baixaram e fixaram-se em um ponto perdido. Encostei-me o máximo que pude no sofá, espremendo minhas costas e olhando para o teto.

          - Fale Deni... – percebi que algo o incomodava.

          - Não agora... Depois. – murmurou ao meu lado.

          Ficamos ali até a banda voltar a se por na frente dos instrumentos. Deni parecia nem perceber a movimentação na sua frente. Precisou que algum integrante viesse dar um chacoalho para ele sair do transe. Veio então uma integrante.

           - Ei Deni, acorde! Venha tocar. – sorriu para ele.

           Daniel balançou a cabeça de um lado para o outro e piscou algumas vezes antes de responder.

           - Nossa, desculpe! Devo ter me desligado. – respondeu ainda um pouco sério.

           Ele demorou um pouco para se levantar, o que levou Natalí a pensar que tinha o direito de pegar na mão dele e puxá-lo de pé.

           - Vamos seu bobo, não é hora de dormir. – falou enquanto puxava-o.

           Simplesmente ela já se achava a intima. Não que eu estivesse com ciúme.

           Maria voltou para meu lado com o sorriso cortando de lada a lado do seu rosto.

           - Aiai... Você reparou como a Natalí já se entrosou bem com o pessoal. Até parece que ela já era da banda.

           - Percebi.

           - Estou tão feliz de ter conseguido uma pessoa para substituir meu cunhadinho.

           - Vocês são amigas? – indaguei curiosa.

           - Não tanto. Vi que Diego estava em uma tensão enorme tentando tampar a falta do irmão, então resolvi dar uma força. Enquanto ele procurava um baterista, eu corria atrás de um tecladista. Foi assim que encontrei a Natalí. Ela é irmã da amiga de uma prima minha e nós nos encontramos em uma festa. Ela tocava em bicos há algum tempo, então quando comentei da vaga na banda ela topou na hora. Ela chegou a ir à casa do Diego ensaiar as músicas e isto me deixou mais feliz ainda. Ela tem potencial, sabe? – tagarelou sem tomar um fôlego.     

          Depois de tentar processar rapidamente todo o histórico que acabara de ouvir, assenti com a cabeça bem devagar. E a música seguia. E eu seguia os passos da tecladista, cada olhar, cada movimento que ela fazia eu julgava como suspeito ou não. Estava frustrante e ridículo. Nunca fui disto, de ficar perseguindo as pessoas, julgando seus atos, reparando no que fazem. Nunca, mas como sempre, há uma primeira vez.

          A música parou e os integrantes se juntaram em um bolinho no meio da garagem. Ficaram um bom tempo conversando, enquanto eu só observava, respondendo a algumas perguntas que Maria insistia em continuar fazendo.

          Reparei então no que mais me incomodou. A Natalí se apossou do ombro de Daniel, se apoiando nele na maior boa vontade. Como se já não bastasse isto, em uma hora da conversa, o que havia entre eles deixou de ser uma conversa e se tornou um papo. Papo a dois. Ela ria de tudo e o fitava com vontade. Ele estava de costas para minha visão, então não consegui reparar nas suas reações. Também não consegui ouvir do que falavam e acho que demonstrei minha ansiedade.

          - Você também reparou? – perguntou Maria tentando seguir até onde chegava meu olhar.

          - Reparei em que?

          - Como Daniel e a Natalí estão se dando bem. Ficaria feliz se desse certo, já que minha prima falou que ela anda muito carente desde que terminou com o namorado.

          - Carente? – estava inconformada. – Desse certo o que? – perguntei incrédula.

          - Sei lá, um rolo entre os dois. No carro, viemos conversando sobre isto e ela me falou que estava na expectativa de conhecer alguém que realmente lhe interessa-se, sabe? Ela disse que estava cansada da infantilidade dos garotos da escola dela e que passaria a procurar em outros ambientes. Acho que ela está fazendo isso. 

          Fiquei boquiaberta com o que acabara de ouvir. Só me faltava essa agora, uma garota carente e super bonita, caçando um garoto perfeito em um território que já tem dona. Não, na verdade em um território que a dona acha que tem, mas que não possui isto na escritura. Uma terra de ninguém, vazia, com uma plaqueta de “aluga-se”.

         Gelei quando me deparei com a concorrência. Certamente ela conseguiria jogar seu charme sobre qualquer corretor e alugar o terreno bem mais rápido do que eu. Achei um tanto que tosca essa minha comparação, mas era o que chegava mais perto do real. Tentei relutar um pouco, enganar a mente ao pensar que aquele tipo de garota não era o perfil de Deni, porém meu coração parou quando vi o braço dele erguendo e passando a mão nos cabelos sedosos e dourados dela. Homem é tudo igual.

          Senti uma cotovelada leve de Maria que olhou para mim e para os dois com um sorrisinho nos lábios. Pude traduzir isto como um: “Não disse?”. Respirei fundo e rangi os dentes. Aquele intervalo estava passando dos limites, em todos os sentidos. Percebi que precisava agir. E foi exatamente o que fiz. Em um salto levantei do sofá e corri para onde Hugo dava um trato no baixo. Abri um sorriso e pedi gentilmente para eles tocarem a música da abertura do show no Open. De fato aquele havia sido minha música preferida e eles ainda não haviam tocado. Apenas juntei o útil com o agradável.

          Hugo confirmou e até comentou que a pausa estava muito demorada mesmo. Lançou o baixo ao pescoço e deu um comando para os outros. Voltei saltitando para o sofá, com um ar de missão cumprida, já que Deni estava de um lado e a tecladista do outro.

          Tocaram a música que eu tanto gostava. Fechei os olhos e sorri com as notas. Depois desta, tocaram mais umas quatro e só aí resolveram acabar o ensaio. A banda havia treinado bastante e entrosado legal. Até de mais.

          - Bem, já vou indo rapazes. – disse Hugo se despedindo de Deni e de Diego. – Garotas. – acenou então para mim e para Maria, cutucando o braço da Natalí ao passar por ela.

          - Quer que eu te acompanhe? – perguntou Daniel, dando uma de anfitrião.

          - Não precisa, sei bem o caminho. – disse saindo.

          Olhei para o pessoal que havia ficado tentando imaginar quem seria o próximo a ir embora. Queria conversar com Daniel ainda. Mas olhei para o relógio e vi que já estava ficando tarde e eu não podia comprar briguinhas com o meu pai, então tive que ceder.

           - Acho que eu já vou indo... – murmurei derrotada, lançando meus olhos para a boca da Natalí, que se curvava em um sorriso.

           Quis voltar atrás, mas não voltei.

           - Está ficando tarde...- murmurei, por fim

          - Não Mel! Espere mais um pouco para que eu possa te acompanhar. – pediu Deni.

          - Mas...

           - Sem “mas”, Mel. Não te busquei na sua casa? Então, vou te devolver lá!

           Meu sorriso abriu ao passo que o da Natalí fechou.

           - Nós já vamos, amor? – murmurou Maria,

          - Bem, acho que sim. – respondeu Diego.

          A garota ruiva só os fitava, até a hora que resolveu intervir.

          - Então estamos indo, não é? Antes disso, Daniel, posso falar com você? – exclamou toda charmosinha.

          - Claro.

          E lá se foi ele.

          - Queria saber se posso vir treinar algum dia aqui com você? Sabe como é, você é o guitarrista, tem as músicas com os arranjos certos, ficaria bem mais fácil para mim se pudesse fazer esse favor. – seus olhinhos brilharam implorando.

           Carência. Para mim isso é desculpa.

            - Bem, eu creio que você está ótima, mas se acha mesmo necessário... É só marcarmos.

            - Excelente! Importa-se de passar seu telefone para que eu possa ligar marcando?

            Carência? Não, isso não é carência, é assanhamento.

            - Passo sim. – ele digitou rapidamente no celular dela seu número. – Prontinho.

            - Obrigada Daniel, com certeza isso vai me ajudar. – sua voz sedosa e melosa cortou meus ouvidos. – Até mais.

             Ela se curvou para ele e deu um beijo em sua bochecha. Literalmente um beijo. Não foi aquele negócio típico de “tchau fulano” e ploc, duas bochechas se encontram e as pessoas beijam praticamente o ar ou o cabelo da outra pessoa. Foi a bochecha dele e o beijo dela. Isso me incomodou.

             Diego e Maria também se despediram e eu pude notar a nítida diferença na bochechada que Maria deu em Daniel e Diego deu em mim. Exatamente neste ponto que ficou mais do que nítida as intenções de Natalí. As necessidades.    

              Os três foram embora e Daniel e eu os acompanhamos até a porta. Um segundo após eles saírem de vista, os olhos azuis encontraram os meus. Estavam muito sérios, até de mais e isso me assustou muito. Meu ciúme havia me consumido tanto, que eu nem lembrava mais dos assuntos que realmente importavam.        

              - Mel, precisamos conversar. – disse-me com voz séria.


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Notas finais do capítulo

eHHHH coments^^