Recover Me. escrita por believingg


Capítulo 2
Nem tão estranhos assim.


Notas iniciais do capítulo

Esse é o 1º capítulo e cada capítulo vai ser mais um menos como as memórias dela. Não é a minha primeira fanfic, mas é a primeira que posto aqui no Nyah. Criei a conta hoje e já quis dar um pouco de vida ao meu perfil. Espero que vocês gostem, porque escrever é o que eu mais gosto de fazer.



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Bristol, Tennessee. Abril de 2011.

O sol brilhava forte sobre as cores dos uniformes dos alunos do colégio secundário de Bristol que estavam ao redor do campus. A cidade parecia mais animada, o que era estranho já que primeiro de abril passou a serem todos os dias do ano. Pra quê inventar um dia da mentira se todas as pessoas mentem durante todos os trezentos e sessenta e cinco dias do ano? Não seria mais útil inventar um dia da verdade? Primeiro de abril está mais para o lado daquele dia em que você diz uma verdade para seus colegas e diz “primeiro de abril” dependendo da reação deles. Mesmo assim, aquele alvoroço não fazia tanta diferença na minha vida.
Subi o capuz do único moletom preto do colégio e bati a porta do meu armário, travando o cadeado logo em seguida. Eu era o único ponto escuro e obscuro sob aquele teto. Meus olhos não transmitiam nenhum tipo de brilho ou satisfação, meu sorriso só via quem tinha merecimento, e ninguém sabia a cor real de meus braços, já que eles sempre estavam cobertos. Ser invisível era um de meus talentos, e eu o fazia perfeitamente bem.
- Dá o fora, Loren – sibilei baixinho, tirando as mãos gélidas de minha amiga de cima das pálpebras.
Loren saltitou, parando ao meu lado com um sorriso de espanto no rosto.
- Você é pirada? – disse, olhando pra frente. Apenas suspirei, imaginando como seria bom quando toda aquela rotina cansativa acabasse semestre que vem. Eu tinha um ouvido atento na conversa furada de Loren, e o outro totalmente dominado pela música alta do iPod. – Como sabia que era eu?
- Você é a única estranha nessa escola que é capaz de falar comigo – respondi, piscando o olho direito para ela. Loren apenas riu, me abraçando pela cintura. Fomos para a aula de Literatura, a última depois do intervalo.
Tempo depois, o céu de Bristol já estava alto e coberto por nuvens carregadas as duas e vinte e cinco da tarde, mas o calor não afetava um décimo da sala de aula. Os quarenta e oito alunos em roda debatiam sobre os problemas da gravidez na adolescência. Ridículo! Eu estudei sobre isso na sétima série, fala sério!
- Ora, por favor! Ser virgem até o casamento? Que coisa horrível! Por que essa garota não se interna num convento? – gritou Janie. Estremeci.  Não havia possibilidade alguma de a presidente do clube de xadrez ter dito aquela frase obscena. Não naquela escola. Todos entreabriram a boca e a olharam chocados.
Susan dirigiu seu olhar a mim e, quase por instinto, desviei os olhos do centro, desejando não ser escolhida para a próxima pergunta a ser debatida. Mas ela não veio. A pergunta anterior foi prolongada. Susan parece ler meus pensamentos, é quase impossível se esconder dela. E o mais estranho é que ela é a única que me nota e me atrai para participar da aula.
- E você, Angeline? - fechei os olhos, enraivecida. Aquela professora possui algum tipo de mediunidade. – O que acha sobre a virgindade na adolescência? Ou, como Janie citou, sobre permanecer virgem até o casamento?
Reprimi os lábios, debatendo mentalmente como o tópico “gravidez na adolescência” havia tomado esse rumo tão indispensável.
- O que eu acho? – indaguei retoricamente, confiante. – Acho digno.
Susan me olhou com um brilho intenso nos olhos, enquanto Janie se embaralhava toda tentando se explicar para os outros membros do clube de xadrez. Talvez ela fosse mais vadia do que pensávamos. O sinal soou e Loren cutucou-me com o cotovelo, sempre sorridente, enquanto saíamos pela porta dupla sob mais burburinhos. Aquela fora a primeira vez que eu havia me manifestado tão confiante num debate escolar. Loren continuava com os cutucões. Dirigi um olhar fulminantemente brincalhão a ela, que tinha a mesma satisfação de Susan nos olhos.
- O que foi aquilo? – ela perguntou pausadamente, manifestando-se com as mãos. Revirei os olhos, indo em direção ao meu carro. – Você praticamente fez a Janie limpar a parte branca do seu All Star batizado!
- All Star batizado, Loren? Dê onde você tirou essa porcaria? E como consegue sorrir tanto? – disse, rolando os olhos. Loren deu a volta no carro e ameaçou pular por cima da porta. – Ei! Eu já te falei pra parar com isso! Mandei limpar no domingo!
Loren bufou e destravou a porta, jogando a mochila no banco de trás e sentando-se ao meu lado.
- Calma, senhorita TPM. Você sabe que eu te amo.
- Será que é tão difícil assim conservar um carro limpo pelo menos por uma semana? Pular a porta parece aquela coisa trash de filme com retardados mentais. E ok, feliz primeiro de abril pra você também, retardada mental.
Loren riu abafado, acenando para um dos membros do clube de teatro. Ela era mais enturmada, mais popular e podia ter tudo o que quisesse naquele colégio, mas mesmo assim preferia ficar junto de mim. O que a tornava extremamente diferente dos outros populares, a tornava compreensiva e, acima de tudo, minha melhor amiga.
Puxei a ré, saindo de minha vaga e indo em direção a rua.

Logo após deixar Loren em casa, parei o carro de frente para a garagem. Subi os olhos para o céu e uma lua quase transparente já tomava seu lugar na imensidão. O horizonte estava quase tão vermelho quanto minhas unhas cor de sangue, o que me lembrou de tirar aquele esmalte horrível que Loren me obrigou a pôr nas unhas. Sentia falta de meus esmaltes pretos da Chanel.
Enfiei a mão na bolsa, procurando o controle para abrir o portão e as chave. Meus pais provavelmente não estariam em casa e eu teria um bilhetinho em cima da mesa escrito em letras cursivas pela minha mãe dizendo:
Sabemos que você não vai almoçar, mas a comida está na geladeira. Prometemos voltar em breve. Não se esqueça que nós amamos você! Ass.: mamãe e papai.
E durante toda minha vida eu nunca vi essa promessa ser cumprida, e isso doía muito porque meu tempo junto deles era totalmente limitado. Os momentos em que precisei de um abraço de pai, ou um colo de mãe, o trabalho sempre me tomou, e eu sempre fui o segundo plano. Parece drama de adolescente carente, mas é verdade. Não era o que eles diziam, mas eu conseguia enxergar a realidade quase sempre, quando eu estava sentada na sala assistindo TV e ouvia mamãe dizer ao papai que nós deveríamos sair juntos no sábado, e ele a respondia dizendo que teriam uma reunião nesse dia.
Acho que nunca fui uma pessoa completa por esse ponto.
Fui em direção ao meu quarto, jogando a mochila atrás da porta. Um vento frio passou pelos fios do tecido da cortina e soprou uma folha de caderno rabiscada de cima da escrivaninha; abaixei o vidro da janela, ignorando totalmente o pedaço de papel no chão. Eu já havia esquecido parte do que havia nele, não queria me lembrar de novo.
- Por que você sempre volta quando eu quero te esquecer por inteiro?
Suspirei. Ninguém sabia sobre aquele assunto. Era o único segredo que eu escondia, até de Loren. Meus pais eram os únicos que sabiam, e eu os fiz jurar segredo por toda a vida. Há uns dois anos atrás, ninguém mais tocava nesse assunto. Fiz questão de enterrar isso desde que nos mudamos para o Tennessee.
Apoiei o queixo na palma da mão esquerda e soltei um suspiro alto, observando as nuvens carregadas rodearem os telhados das casas da vizinhança e sorrirem sarcásticas para mim por detrás do vidro. Nós sabemos que você quer sair, Lina, elas diziam, mas hoje o dia é nosso. Suspirei novamente, e retirei os braços de cima do batente da janela. Primeiro de abril parecia ser um dia totalmente sem graça somente para mim. Agüentar o sarcasmo dos alunos fúteis da escola onde estudo já virou rotina diária e, por mais que eu tentasse ser invisível, sempre havia alguém pra me tirar do meu canto. Tirei a jaqueta e o uniforme da escola, vestindo uma blusa de mangas longas qualquer.
-Que se dane a chuva, nada vai me segurar aqui.
Desci as escadas, ignorando o bilhete em cima da mesa da cozinha pela terceira vez nessa semana. Peguei meu celular e enfiei algum dinheiro dentro do bolso traseiro da calça jeans. Escutei um trovão. Ok, nuvens. Vocês querem brincar, vamos lá.
Enfiei a chave do carro na ignição, puxei a marcha ré e arranquei, fazendo os pneus cantarem.
- Vamos ver quem chega primeiro? – gritei para o céu, e quase no mesmo instante um trovão me respondeu.
 O vento batia contra meu cabelo e o sopro frio arrepiava meus pêlos da nuca. A sensação de liberdade me tomava, e ela era a única que possuía permissão para me ter por inteira, sem estar presa a ninguém. Diminui a velocidade quando notei o semáforo e uma garotinha passou correndo pela faixa de pedestres. Sorri para ela, que nem sequer me notou. Outro garoto – aparentemente mais velho – gingou atrás dela, lutando para segurar em sua mão. Sorri internamente; alguma coisa nele me lembrava o pedaço de Justin que havia sido arrancado de mim. O pedaço físico, apalpável; porque o pedaço mais horrível ficou dentro de mim, apertando em vários momentos do dia no meu peito.
E quanto mais nós queremos esquecer as lembranças, elas se parecem com uma caneta tentando ser apagada com uma borracha simples. Nunca dá certo.
Uma buzina soou atrás de mim e eu avancei o sinal, correndo em direção ao Starbucks. Girei o volante, seguindo pela mesma direção do garoto e da garota.
Num vão entre as nuvens, era possível ver os raios de sol caindo em um circulo perfeito sobre o vidro da porta de entrada do Starbucks. E os dias quentes estavam chegando com todo vigor. Mas eles ainda não chegaram, pelo menos não hoje.
Desci do carro guiada por um pequeno raio de sol e me ocupei de uma mesa qualquer dentro do estabelecimento. O mesmo garoto e a garotinha estavam lá, comendo um daqueles docinhos de caramelo. Ele parecia se deliciar mais do que ela.
Uma nuvem tampava a visão do céu pela minha janela, a luz estava baixa e só havia eu e eles ali dentro.
O garoto continuava a me lembrar Justin. O mesmo sorriso, olhos mais intensos. A garotinha tentava acertá-lo com a colher de plástico em cima da mesa.
- O de sempre, Lina?
Voltei-me para meu amigo garçom. Liam era meu amigo desde que me mudei para Bristol e passei a almoçar no Starbucks todos os dias.
- Hoje não, Liam – suspirei, sorrindo fracamente. – Tem mais alguns daqueles docinhos de caramelo?
Ele seguiu meu olhar até o outro lado do lugar, para a outra mesa ocupada. Funguei. Geralmente o Starbucks é tão lotado. Uma ironia estar vazio justo em primeiro de abril. Liam desmanchou seu sorriso assim que pousou seu olhar sobre o garoto da outra mesa:
- Ele?
Não entendi. Liam parecia conhecê-lo. Quem era o tal garoto, afinal?
- Os docinhos, Liam.
Girou os calcanhares e saiu em direção ao balcão, a expressão facial impassível. Ignorei seus estalos de dedos – coisa que sempre fazia quando estava irritado – e me foquei em tentar achar a luz do sol através do vidro.
Suspirei mais uma vez, a terceira em cinco minutos. Desistindo da luz do sol, virei-me para o balcão. Liam tentava forjar uma expressão feliz e sincera quando, na verdade, queria socar o vidro até estilhaçá-lo. Senti seu olhar sobre mim se desviar rapidamente. Ele estava irritado.
Puxei o ar e arrastei a bolsa por cima da mesa, me levantando. A garotinha me olhou e sorriu, enquanto o garoto tentava limpar sua boca com um lencinho.
Abri a bolsa para pegar meu dinheiro e um vento entrou forte pela janela atrás do balcão, acompanhado de um trovão e o que parecia ser um raio. Malditas nuvens. A garotinha estremeceu e me olhou novamente com os olhos fechados, tentando enxergar alguma coisa através de mim. Sorri de volta, tentando parecer confortante, sem muito sucesso; mas ela pareceu não reparar. O garoto continuava inquieto, balançando a perna, sem olhar para mim uma vez. Pude ver uma linha fina se formar em seus lábios suavemente.
Liam continuava a me observar enquanto colocava os docinhos num saquinho qualquer. Os raios de sol continuavam a cair no mesmo canhão de luz em direção a porta de entrada, dessa vez mais fracos. Mais um trovão soou e dessa fez quem estremeceu fui eu. A garotinha estava confortável envolta pelos braços e pela jaqueta do garoto, sentada no colo dele. Senti um arrepio percorrer-me a espinha e uma vontade imensa de estar no lugar dela.
Só então percebi que ainda estava olhando em direção à mesa deles.
Enfiei a mão dentro do bolso traseiro da calça para caçar algumas moedas e, quando puxei o celular junto, uma delas deslizou até o chão de linóleo até pousar ao lado do pé esquerdo do garoto.
Revirei os olhos, desgostosa. O que foi que eu havia dito sobre permanecer quieta no meu canto?
A garotinha saltou e agarrou a moedinha, trazendo-a até mim com um sorriso sereno e as mãos trêmulas. Notava-se que ela sentia falta do casaco do acompanhante. Agachei até encontrar seus olhos e rocei os dedos nos dela, analisando a moeda.
O olhar sereno de uma criança. Tão linda, com os fios de cabelos soltos fazendo o contorno da cabecinha e enrolando nas pontas.
- Deu cara, dá sorte. – sibilei para ela com um sorriso sincero, que saiu correndo.
 Agarrou a mão do garoto e o mesmo deixou alguns dólares em cima de um pratinho na mesa.
Notei o olhar dele se desviar quando o meu encontrou seu sorriso. Tão irreconhecível e tão familiar. Ele me parecia confuso, assim como eu.
Passei o a moeda para Liam com mais um suspiro, torcendo para que fosse o último. Que agonia não saber o nome dos dois.
Enquanto os dois passavam pela porta uma chuva fina começou a cair. Ajustei a visão e percebi  o couro do banco de meu Miata umedecendo aos poucos. Apertei o passo até a porta, abrindo-a antes que o garoto tocasse a maçaneta.
Nos olhos da garotinha as gotas de água refletiam como num espelho. Quando parei ao seu lado, o garoto a puxou para si, envolvendo-a com os braços. Parecia ter medo de mim. Aproximei-me mais ainda, provocando. Ele parecia tão injuriado quanto eu.
Empurrei a porta de vidro e a sinetinha tocou mais uma vez.
- Posso levá-los para casa se quiser – dirigi-me ao garoto, hesitante, parecia tão atirada; mas queria que aceitasse – A chuva ainda está fina, então...
- Tudo bem – respondeu, um pouco arrogante – Preciso levar minha irmã pra casa.
A voz me parecia mais estranha do que eu imaginei ser. Suave, parecia atirar-se para fora na esperança de que eu não a reconhecesse, e, bem, eu não a reconhecia.  Meu coração estava aparentemente calmo, embora estivesse exatamente o contrário internamente; inspirei e expirei, sentindo meu peito subir e descer devagar.
Assenti para os dois e vi de relance Liam bater a porta da cozinha com força. Ele estava estranho.
E eu também.
Caminhamos lado a lado até meu carro. O garoto segurava a pequenina nos braços e a escondia da chuva com seu casaco de couro. Debati mentalmente se ele sempre era carinhoso assim ou só estaria deixando-se molhar para proteger a irmã porque havia uma garota por perto. Homens. Destravei as portas e abria-a para ele, dando a volta e sentando no banco do motorista. Imediatamente subi o capô, enquanto ele ainda prendia a irmã no cinto de trás. Notei sua confusão. Mais uma vez: homens.
- Quer ajuda? – sugeri. Ele parecia tão desastrado. A pequenina olhava para as mãos estabanadas do irmão, que tentavam travar o cinto.
- Não, obrigado – respondeu, arrogante, como da outra vez. Suspirei e ajeitei-me no banco, travando meu próprio cinto – Eu sei travar um cinto e também tenho um carro – completou, ajeitando-se ao lado da irmã, também no banco de trás.
Girei a chave, observando as lágrimas de chuva descerem sobre o pára-brisas.
- Sério? E onde ele está agora?
Ele não riu. Por mais que eu tenha usado a minha melhor expressão irônica ele não riu. E me parecia mais sério do que eu imaginei na primeira impressão. Rolei os olhos pelo espelho retrovisor, ele apoiou a testa na mão esquerda, e o cotovelo na janela, balbuciava palavras baixas. Tremi.
- De quem está se escondendo?
Antes que o garoto-sem-nome se pronunciasse, a garotinha ergueu o indicador e apontou para a rua, um pouco atrás de nós, virei os olhos até o retrovisor externo.
- Deles! – ela disse.
Alguns homens e mulheres com câmeras varriam a rua com os olhos a procura de algo, ou alguém.
- O que? Paparazzis?
- Você tá falando sério? – ele perguntou, tirando o cotovelo da janela e me encarando firme pelo retrovisor.
Tive certeza de que já havia visto aqueles olhos em algum lugar.
- Tenho cara de quem está brincando?
Ele bufou e se escorou no banco, destravando o cinto.
- Põe o cinto. – murmurei.
A garotinha me olhou com uma expressão “ih, ferrou”, e, antes que eu precisasse repetir, ele me olhou com a cara mais estúpida que se pode imaginar: grosso, arrogante, mal-humorado.
- Não quero por o cinto.
- Põe – repeti.
Ele se endireitou no banco e ergueu os braços:
- Caramba, não vou por o cinto! Qual é o seu problema?
Suspirei, afirmando as mãos na direção e olhando para a estrada.
- Tá chovendo - eu disse -, você tá no meu carro, com uma criança do lado e tem um bando de doidos com câmeras na rua. Quer fazer o favor de afivelar a merda do cinto?
Ele acabou cedendo e a chuva engrossava cada vez mais. Maldito início de primavera. Estávamos entrando numa zona um tanto barrenta de Bristol, e o índice de movimentação começava a cair, sobrando apenas nós e outro carro próprio para trilha que eu realmente não lembro o nome.
Pisei fundo no acelerador, ouvindo o barulho do barro arranhando sob o assoalho. Os vidros estavam respingados de chuva e terra, e não me restavam dúvidas de que estávamos atolados.
- O que aconteceu? – ele perguntou. Idiota; estávamos a um palmo abaixo da terra, e a lama respingava toda nos vidros laterais do carro.
- Nota-se que você nunca veio à Bristol.
Abri a porta e desci. Meus pés afundaram junto com as rodas, e aquilo abaixo de meus pés parecia mais areia movediça. Dobrei um pouco as mangas da blusa e prendi o cabelo no alto.
- Se eu tivesse deixado a Loren pisar no banco talvez eu só tivesse que limpar uma peça, não o carro todo! Argh. - comentei baixinho e ele pareceu escutar, mas não demonstrou interesse. Ou talvez não tenha escutado.
Ao meu lado, ele subiu nas borrachas da porta, ficando um pouco acima do carro, tentando se equilibrar para não cair. Olhou mais uma vez para os lados, certificando-se de que não havia mesmo [i]ninguém[/i] ali. Realmente ele nunca veio à Bristol.
- Desculpa, mas ficar olhando para os lados não vai atrair nenhum tipo de ajuda divina, não, sabe? Se você quer ajudar, por que não procura descer daí e...
- Escuta aqui, você sabe quem eu sou? Eu simplesmente não posso me sujar porque tem mais de trinta pessoas me esperando [i]limpo[/i] no hotel e eu preciso estar lá até as seis horas, ok?
- Ah, é? Desculpa, pensei que você fosse só mais um desses lavo-as-mãos-trinta-vezes-ao-dia – retruquei, mais preocupada em conseguir lembrar o número do guincho, misteriosamente desaparecido da minha lista de discagem rápida – E eu não faço questão nenhuma de saber quem você é, depois de hoje não vai fazer a mínima diferença na minha vida, mesmo.
Deslizei o dedo pela tela e disquei os números da delegacia.
- E não sei se percebeu, mas ainda está chovendo.
Ele sentou-se rapidamente, analisando as mangas da blusa azul-marinho e ajeitando o cabelo.
Ótimo, um supervaidoso dentro do meu carro.
- Cadê a garota gentil que me ofereceu carona?
- Ah, tá bom! Falou o senhor simpatia.
 A garotinha estava distraída demais prestando atenção numa borboleta amarela que rodava do lado de fora do carro. Tentei virar minha atenção para o GPS e, pela marcação da setinha, estávamos bem longe do hotel dos dois. Sinceramente, em dois anos morando em Bristol, nunca soube que havia um hotel nessa cidade.
Encostei o celular na orelha, puxando a minha porta e enxugando alguns pingos de água do banco com a mão.
- Alô? É da delegacia? Por favor, tem como vocês mandarem um guincho até a segunda saída principal de Bristol? É, eu sei que aí é a delegacia, mas eu perdi o número do guincho, tem como vocês me fazerem esse favor? Aham, é a segunda saída principal, sabe? E tem como não demorar? É que tem uma criança e um garoto revoltado junto comigo, e... Não, não é seqüestro nem nada do tipo, eu só preciso do guincho! Por causa da chuva, sabe? É Angeline Turner. Certo? Obrigada!
Desliguei o telefone. Policiais são tão toscos, tive muitos encontros com eles em Los Angeles.
Atrás de mim, o garoto escorou-se no banco, sua expressão era deprimente. Corri os olhos pela criança ao lado dele, ela parecia entediada, olhava para os dedos das mãos e, hora ou outra, variava olhando pela janela, desembaçando o vidro molhado de chuva. Abri a bolsa no banco do passageiro e tirei um pirulito de coração, que ganhei no dentista ontem. Ri internamente, tamanha mulher com 17 anos ganhando pirulitos do dentista. Entreguei-o à menina, que parecia um adolescente ao encontrar um lugar com internet liberada, ou coisa assim.
O silêncio dentro daquele carro me matava por dentro. O fato de ter três pessoas dentro do carro e nenhuma delas pronunciar nada me matava por dentro.
Corri mais uma vez os dedos pela bolsa, puxando um porta-CD e tirando dele um disco de músicas aleatórias que Loren havia esquecido ali. Encaixei na gavetinha de CD e liguei o som, finalmente quebrando o silêncio. Tocava La La Land da Demi Lovato. Óbvio, vindo daquela retardada fanática por Demi que eu tenho como amiga.
A garotinha tirou o pirulito da boca e olhou para o garoto ao seu lado:
- Vamos demorar pra chegar, Justin?
Justin.
Ele também se chama Justin.
- Talvez, Jaz. – ele respondeu.
O Justin respondeu.


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Notas finais do capítulo

Em breve tem capítulo novo. Espero que tenham gostado e vou tentar fazer capítulos menores, mas não prometo sucesso. (: