Por que você está sempre sozinho?

 Foi a primeira coisa que ele me perguntou. 

 Eu nunca tinha falado com ele antes, mas é lógico que eu sabia quem ele era. Mello, o segundo melhor do orfanato. Todos os outros o admiravam, mas eu só sabia disso porque era algo obviamente perceptível. Até porque, eu não prestava atenção suficiente em nada à minha volta para poder perceber algo menos visível.

 Tínhamos apenas uns seis ou sete anos na época.

 - Você está sempre jogando isso - ele comentou olhando para o meu jogo - É tão legal assim?

 Não respondi.

 - Mello, Roger está chamando! - um garoto gritou pela janela.

 - Já vou - Mello respondeu com outro grito e virou pra mim - Depois eu volto - e saiu correndo.

 Nem olhei pra ele, continuei jogando.

 Ele não voltaria, eu sabia disso. Por que ele faria isso? Ninguém voltava...

 Fiquei sentado na grama, jogando, até que começou a escurecer.

 Eu não queria levantar. Aliás, o que eu estava fazendo aqui? Eu não tinha ninguém lá; eu não tinha ninguém em nenhum lugar.

 Desde que meus pais morreram há dois anos atrás, eu fui jogado de um lado para outro, de famílias adotivas para orfanatos, de igrejas para casas de ajuda e de parentes que não me queriam para parentes que me detestavam.

 Era apenas questão de tempo até que me mandassem embora daqui também.

 E quem sentiria a minha falta? Ninguém. Eu  já estava aqui há quase duas semanas, mas continuava sozinho. Não é como se eu fizesse algo para impedir isso, também. Era só que... Eu tinha medo.

 Medo de me aproximar, medo de ser rejeitado de novo, medo de ter a companhia de alguém apenas para depois tirarem isso de mim.

 Suspirei e levantei. Estava indo em direção à construção quando alguém veio correndo na minha direção.

 - Desculpe a demora - o garoto chamado Mello falou, um pouco ofegante.

 Ele voltou.

 - Você não vai jantar? - ele perguntou, começando a andar ao meu lado - Por que você não me responde? Eeeiiiii - ele diminuiu os passos e puxou o elástico da minha blusa, tentando chamar minha atenção.

 Ardeu quando o elástico voltou e bateu na minha pele.

 - Olha, está vermelho. Você não está bravo? - ele continuava falando e perguntando, mas eu ainda não respondia - Hã? Que marca é essa? - ele pegou minha mão, observando a clara cicatriz nela.

 - Solta! - exclamei alto, me afastando abruptamente.

 Doía.  

 Aquela cicatriz foi feita quando meu tio, o irmão mais novo do meu pai, ficou bêbado e começou a falar que eu era um garoto estranho, um estorvo que só servia para dar despesa, enquanto balançava uma garrafa de bebida que quebrou ao mesmo tempo que minha mão começou a sangrar.

 Lembrar doía muito mais do que doeu na hora.

 - Você finalmente falou - Mello sorriu vitorioso e começou a me puxar - Vêm logo, senão o bolo de chocolate vai acabar!

 Ele era um garoto muito estranho.

 E esse garoto passou a vir até mim todos os dias, e quando eu percebi, eu não passava mais as horas jogando sozinho no jardim. Ele sempre estava lá.

 Passaram-se alguns meses e eu continuava lá. Era a primeira vez que eu ficava tanto tempo no mesmo lugar e aos poucos eu reaprendi a rir, eu reaprendi a sorrir naturalmente. E claro, sempre com Mello junto.

 Mesmo tantos anos depois, quando nós dois já tínhamos saímos do orfanato, era assim.

 - Matt! Pára de viajar e me ajuda aqui! - Mello exclamou e eu fui pra perto dele.

 - Eu só estava lembrando de umas coisas - falei sorrindo e o abracei pelas costas.

 - Do quê? - ele perguntou se virando pra mim.

 - De como você era fofo quando criança - respondi e alarguei ainda mais o sorriso quando ele me afastou corado e voltou a olhar para o monitor do computador.

Eu não estava mais sozinho.