Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 6
Rindo


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura, pessoinhas ;]



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Eu estava limpando alguns canecos e observando o salão, tentando não prestar atenção no Sr. Marshall.

– Que tal subirmos, senhorita Millenia?

Voltei meu olhar para ele, vendo que logo um sorriso tomou conta de seus lábios, e seu olhar era profundo, como se tentasse descobrir minha resposta antes mesmo de eu decidi-la. Mas na verdade ele provavelmente tentava me guiar à resposta desejada com seu sorriso galanteador e seus persuasivos olhos cor de mel. E eu odiei-me profundamente por ter desejado me deixar levar por este homem desconhecido e completamente sedutor. Mas logo afastei o desejo para o mais longe que pudesse, no fundo de minha mente. As feridas em meu braço mal pararam de sangrar, é cedo de mais pra dar motivos à Bonnie para criar mais delas.

– Senhor Marshall – comecei calmamente – o senhor sabe que este não é meu serviço. Eu apenas sirvo as bebidas. Se o que deseja é uma acompanhante, aquela moça ali parece estar mais disposta a satisfazê-lo do que eu.

Fiz um gesto com a cabeça para onde a loira raivosa estava. Ele virou-se para trás para então poder acompanhar meu olhar e logo voltou a virar-se para frente, deixando um suspiro escapar por seus lábios, sua expressão era de aversão, quase de repulsa. Eu podia apostar que ele não a aguentava muito mais do que eu. Eu ainda olhava para Bonnie, percebendo que o desinteresse do senhor Marshall por ela só fez com que sua expressão se tornasse mais hostil. Instintivamente passei a mão levemente sobre as feridas em meu antebraço direito.

Ele pareceu perceber o movimento que fiz sobre meu braço, mas algo na forma em que ele franziu as sobrancelhas me fez perceber que ele não fazia ideia da origem por trás de meu gesto. E que bom que ele não pareceu desejar se aprofundar nisso, eu realmente não sei qual seria sua reação ao saber que, de certa forma, a origem das feridas em meu braço era ele. E definitivamente não estou nem um pouco disposta a descobrir.

– Então vou querer uma dose de uísque. – Ele sorriu levemente, mas seu sorriso logo deu lugar novamente a uma expressão que parecia ser de aversão – Nem em sonhos passo a noite com aquela mulher novamente.

É, se eu tivesse apostado isso, teria acertado em cheio. Eu ri de sua reação, sem conseguir me controlar, os risos saíam sem que eu conseguisse evitar, e continuaram a vir até que minha barriga começou a doer. Aos poucos me acalmei, tendo o olhar curioso e divertido do Sr. Marshall sobre mim por todo o tempo.

Situações como esta não são exatamente comuns por aqui. A maior parte das mulheres por aqui se preocupa de mais em parecer uma dama, nunca riem e aproveitam os momentos de verdade. Apenas soltam aquelas risadinhas baixinhas e irritantes. Então não estranhei que praticamente todos os pares de olhos presentes no salão estivessem sobre mim – menos os dos bêbados, é claro, estes não reparam em nada – mas apenas ignorei-os.

– Já se acalmou?

Um sorriso brincalhão surgiu em seus lábios e os olhos cor de mel que fitavam fixamente minha face demonstravam diversão e curiosidade. Eu realmente devia estar atiçando a curiosidade dele. Eu, um animal exótico no meio de todas estas falsas damas.

– Vai me contar o motivo por trás desse escândalo, ou pretende me deixar curioso pelo resto da noite?

Pensei por alguns instantes. Não havia motivos para eu não contar-lhe o motivo por trás de meu deslocado surto de bom-humor. Não era algo realmente importante, nem interessante. A maior parte das pessoas daqui não riria disto, a não ser, talvez, Laureen. As duas não têm uma relação muito boa, como uma rivalidade, a maioria delas demonstraria solidariedade. Mas depois da noite passada, eu era a pessoa aqui com mais motivos para rir da rejeição de Bonnie.

Olhei para onde estava Bonnie. Ela estava de costas para mim, paparicando um velho feio, um visconde que aparece por aqui de tempos em tempos e a enche de presentes.

Lembrei-me das diversas vezes desde cheguei aqui em que a ouvi falar sobre um tal Sr. Marshall, que havia se tornado Marquês após a morte de seu pai. Ela fazia questão de dizer a todas que o Marquês era seu, que eles se amavam e que se casariam após seu regresso. Após ver a forma como ele reagiu ao vê-la, percebi que com toda certeza o romance era unilateral.

– Não é exatamente um grande motivo. Apenas é engraçado vê-la ser rejeitada pelo grande Marquês com que ela dizia que se casaria após seu regresso.

Sua expressão ficou mais séria, contida. Droga, falei de mais.

– Mas eu não a rejeitei realmente.

Eu realmente havia falado de mais, analisei a sua expressão séria e resignada por alguns instantes. Mas então percebi que algo na contração em seus lábios fazia parecer que ele não conseguiria manter a expressão por muito tempo.

– Quase me enganou agora, espertinho. – Dei uma risada, normal desta vez, e o vi compartilhar dela. – E você nem precisava rejeitá-la com todas as palavras na minha frente para eu entender, a sua reação de antes foi o bastante.

Meu riso foi mais alto quando terminei a frase e percebi que estava correta quando percebi que ele também ria, compartilhando de meu humor atípico.

Assim que me lembrei, servi o uísque que ele havia pedido, eu havia me esquecido dele depois do meu estranho surto de bom-humor. Coloque o copo com a bebida em cima do balcão, logo a frente de onde seus braços estavam debruçados. Puxei para perto de mim um banco elevado, que eu costumo usar quando não há muito movimento e sentei-me na frente dele.

– Como foi sua estadia no mar?

Eu não sabia o que perguntar, então acabei por deixar minha curiosidade transparecer. O mar costuma me chamar atenção. A beleza da imensidão azul, que depois de certo ponto já não se distingue mais, misturando-se ao céu azul. Ele ficou pensativo por alguns instantes, olhando em minha direção, mas não exatamente para mim. Ele provavelmente via outra cena, menos colorida, mais azul. Mas então seus olhos ganharam foco novamente e parecia que havia voltado a ser o destino de seu olhar.

– A vida no mar é cansativa. Toda expedição é complicada. A beleza do azul absoluto não pode apagar toda dificuldade existente em uma expedição. Como a escassez de água e os conflitos que surgem com o tempo devido a tantos meses de convívio. – Ele parou por alguns segundos para poder tomar sua bebida, mas logo voltou a falar, antes soltando um suspiro – Ainda mais uma expedição como essa, que acabou por ser excepcionalmente longa e cansativa.

– Durou quando tempo esta expedição?

– Cerca de um ano e meio. Parávamos em cidades de vez em quando para adquirir suprimentos e espairecer um pouco. Mas ainda assim é cansativo.

– Mas por que esta expedição foi tão longa? Nunca ouvi outros marinheiros falarem sobre estadias tão longas em uma missão.

– Porque a tripulação que eu estava perseguindo era a do pirata Skallen.

O pirata Skallen. A tripulação pirata mais temida e odiada. Mesmo não sabendo muito sobre piratas e marinheiros, de uma coisa eu sabia: a tripulação de Skallen era a pior de todas. As histórias sobre esta tripulação eram muitas e certamente cada marinheiro aqui presente me contaria pelo menos uma, e todas elas seriam distintas. A tripulação de Skallen não é a mais temida apenas por sua brutalidade, mas sim por sua capacidade de adaptação. Mesmo que perdessem seu capitão, um novo já havia sido previamente nomeado, assim a tripulação nunca ficava sem uma liderança. Os marinheiros dizem que a tripulação já está com seu quarto capitão, mas nunca é possível dizer quem ele é, já que desde o primeiro deles é mantido o hábito de o capitão esconder seu rosto. Isso é claro, é o que eu ouvi falar desde que cheguei aqui. Provavelmente a maioria das histórias que ouvi eram exageradas e fantasiosas, recebendo algum acréscimo cada vez que eram contadas, mas sempre há um fundo de verdade em qualquer história, mesmo nas fantasiosas.

– Pouco depois de dois meses após eu ter saído de Voltrina em busca da tripulação de Skallen, eu consegui encontra-los. Houve um confronto e eu consegui ferir ele, a ferida era grave, ele provavelmente morreu por causa disso, já que logo depois havia outro em seu lugar, provavelmente o quarto a assumir o título de capitão Skallen, não há uma estimativa exata. Persegui Skallen IV por algum tempo, mas ele era mais escorregadio que o anterior, apesar de menos inteligente, ataca qualquer embarcação. Percorri o litoral norte à procura dele, mas ele parecia conhecer bem de mais a região, tornando complicado para minha tripulação, que em sua maioria é daqui do sul. – ele sorriu para mim, fazendo-me perceber que a parte tensa havia passado – Então tratamos de voltar para Voltrina, visitando algumas cidades pelo caminho.

Foi só depois que ele terminou de falar que percebi que meus músculos estavam contraídos devido à tensão, e que eu estava debruçada sobre o balcão, bem próximo dele. Resolvi me afastar, então me espreguicei, soltando um leve bocejo, que tratei de esconder com a mão.

Continuamos a conversar por mais algum tempo, em sua maioria assuntos triviais. Ele querendo saber o que havia acontecido enquanto esteve fora e eu querendo saber como eram as cidades que ele conheceu. Vez ou outra eu servia algo para algum cliente quando me chamavam em alguma das mesas próximas do bar, ou então servia drinks quando alguma das garotas vinha buscar.

Estávamos em uma conversa calma sobre uma das cidades que ele visitara ao longo de sua vida como marinheiro, cujo nome eu não lembrava, quando percebi que Bonnie caminhava em nossa direção, com seus cabelos dançando pelo ar à sua volta.

Quando ela parou ao lado do Sr. Marshall, ele nem mesmo a olhou e eu pude ver a frustração presente nos olhos dela, e quando ela voltou seu olhar para mim, havia também ódio e repulsa.

– Me veja uma garrafa de rum e dois canecos.

A voz dela era baixa e ela tentava esconder sua ira diante do Sr. Marshall, mas eu sabia que ela estava presente. Peguei uma garrafa de rum de baixo do balcão, bem na minha frente, destampei-a e a coloquei sobre ele. Então apoiei minha mão direita no balcão e me estiquei um pouco para o lado para poder alcançar os canecos.

Antes que eu pudesse alcança-los, ouvi um ruído baixo e o som de algo líquido caindo e no mesmo instante a dor surgiu, o álcool penetrando em minhas recentes feridas. Tão forte e profunda que fechei meuss olhos o mais apertado que consegui e apoiei-me pesadamente sobre o balcão com a mão esquerda. Pude escutar um baixo pedido de desculpas vindo de Bonnie, mas eu sabia que não havia sido um acidente.  No mesmo instante a dor atingiu minha garganta também, e um som agudo e imensamente alto preencheu o salão.  Meu grito de dor fez com que todos ali ficassem em completo silêncio.

Mas o silêncio foi quebrado pelo alto som de algo caindo no chão. Pude ver, com pouca clareza devido às lágrimas intrometidas que brotavam de meus olhos, o momento em que Bonnie fora jogada no chão. Assim como pude ver o massacre a seguir. Após derrubá-la, Elora já havia se sentado sobre o corpo da mesma imobilizando seus braços. Ela deu dois socos que atingiram direto o rosto de Bonnie e estava prestes a dar o terceiro quando uma mão segurou seu braço.

– Vá cuidar da Millenia. Não acha que é mais importante agora acabar com a dor dela do que bater em uma pessoa que não consegue revidar? – Era a voz de madame Agatha.

Minhas pernas estavam bambas, não conseguia encontrar energia nem concentração o suficiente para manter-me em pé. Então me lembrei de que não havia comido nada o dia inteiro, assim como não havia dormido muito. Meu corpo foi tombando para o lado e eu já não me importava com o baque e a dor que eu sabia que sentiria quando meu corpo batesse contra o chão. Mas eu não caí sobre a superfície lisa sob meus pés. Alguém me segurara no meio do caminho e logo me levantou em seus braços, como se meu peso fosse nulo. Apoiei minha cabeça no ombro dele, sem ligar para o fato de estar indefesa no colo de um estranho, mas então vi os disformes fios cor de mel, não era alguém tão estranho assim, afinal.

– Leve-a para a última porta do corredor ao lado da escada. – alguém gritou de longe, provavelmente Elora.

Não prestei atenção no percurso familiar, apenas tentava esquecer a dor. Mas ela era forte de mais, e muito presente. Ele deitou-me cuidadosamente na cama, cuidando para não encostar em meu braço direito. Logo Elora chegou ao quarto, trazendo consigo suas coisas. Ela sentou-se ao meu lado e puxou meu braço para seu colo.

Elora levantou cuidadosamente a manga de meu vestido e logo tirou as ataduras.

– Quem fez isso? – pude ouvir o horror presente na voz do Sr. Marshall, assim como a incredulidade.

– A sua noivinha piranha que acabou de ganhar um olho roxo.

– Mas por que ela faria isso? – ele ainda parecia incrédulo e confuso, sem conseguir enxergar claramente os fatos.

– Não se faça de sonso. Você sabe muito bem que a Bonnie cai de amores por você. E deveria ter imaginado que algo poderia acontecer com a Millenia por culpa de sua irresponsabilidade. Você não estabeleceu um limite entre vocês dois e deu nisso, ela acha que é sua esposa.

A voz de Elora estava mais alta que o normal e a raiva contida nela era bastante perceptível. Não houve mais diálogo depois disso. Elora continuou a tratar de meus ferimentos e eu agradeci aos céus quando ela passou algum extrato anestésico. Assim que ela terminou de fazer os curativos, desejou-me boa noite e cobriu meu braço com a manga do vestido novamente.

Fechei meus olhos, sem ligar se havia alguém ali ainda e logo escutei o som da porta se abrindo, mas só havia o som dos passos de uma pessoa. Escutei o som de algo sendo arrastado, Elora devia ter puxado uma cadeira para sentar-se perto de minha cama. Não senti a necessidade de abrir os olhos para checar, apenas tratei de me perder dentro da escuridão do sono.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado, espero sua opinião nos reviews ;]