Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 5
Subconsciente


Notas iniciais do capítulo

Capitulo 5, enfim, minhas amadas pessoinhas. Espero que gostem.



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                Fiquei um bom tempo contando para Elora como fora minha noite com o senhor Marshall. Ela queria saber cada mínimo detalhe, o que deixava a conversa muito mais demorada e constrangedora para mim. Cada detalhe parecia ser muito interessante para ela, que sorria a cada momento, com cada um. Quando citei a parte em que eu havia contado a ele sobre o momento em que acordei e Elora expulsou todos do quarto, ela fez uma expressão de decepção, lembrando-se da forma como todos me cercaram.

                – Claro que fiquei irritada, não se faz com uma pessoa em repouso o que fizeram com você, ficar gritando daquele jeito e enchendo-a de perguntas.

                Ela suspirou e voltou a sorrir, e mandou-me continuar o relato. Continuei a narrativa e quando citei que ele havia dito que me ajudaria, não compreendi a expressão em seu rosto. Misturava alegria e angústia. Talvez ela não quisesse que eu criasse esperanças de que eu realmente descobriria quem sou eu, ou fui, e depois acabasse ficando frustrada.

                Tratei de logo continuar a contar como fora minha noite, não gostava de ver Elora angustiada. Mas talvez não tenha sido tão bom eu ter continuado. Agora quem estava angustiada era eu. Eu chegara à parte final. Parei abruptamente no momento em que eu deveria dizer que ele havia me beijado. Ela percebeu isso, pois seu sorriso tornou-se malicioso, e aquela pequena mulher, que mais parecia uma garota, estava quase pulando em cima da cama, pedindo-me para contar o que havia acontecido.

                – Ele me beijou.

                Falei tão rápido e baixo que ela franziu o cenho, tentando assimilar o que eu havia dito. Ela que entendesse assim, eu não vou repetir isso. Ela ficou pensativa por alguns segundos e quando enfim entendeu, voltou ao seu tradicional estado eufórico.

                – Millenia, você deu seu primeiro beijo! – Ela praticamente gritou e logo terminou em um tom mais baixo – Bom, o primeiro de que você se lembra, mas pode ter sido seu primeiro mesmo. Como foi?

                Como explicar para essa doida que não havia sido nada de extraordinário, apesar de ser o único beijo de que me lembro? Ficamos um bom tempo conversando, ela tentando encontrar uma razão para o beijo. Não houve muitas alternativas, se não o fato de que ele já estava acostumado a ter este tipo de contato com as damas deste distrito. E foi exatamente essa razão que nos fez ter um mesmo pensamento: eu não deveria de forma alguma me apaixonar por ele.

                Apaixonar-me por ele seria um grande erro. Apesar de não o conhecer, já sei o suficiente: qualquer mulher bonita que possa satisfazê-lo basta, e todas as damas desse distrito certamente gostam de fazer isso. E ter de encarar outras desvairadas, como Bonnie, não seria nada legal. Isso sem contar o fato de que, por ser um marinheiro, ele deve viajar muito, visto que já estou aqui há um ano e nunca havia visto ele.

                – Bom, vou deixa-la sozinha. Você deve estar cansada e eu tenho que ajudar as meninas a arrumar o salão. Faltam poucas horas para a casa abrir. A propósito, Luce viu tudo o que aconteceu ontem à noite e contou para madame Agatha. Ela disse para você descansar, não precisa trabalhar por alguns dias.

                Ela foi dizendo e indo para a porta, mas antes que ela pudesse sair, chamei-a novamente.

                – Elora – ela virou-se para poder olhar em meus olhos – tive um sonho esquisito essa noite.

                – Esquisito como? – Ela fechou a porta e veio sentar-se ao meu lado, sua expressão era séria – Acha que pode ter sido uma memória?

                Uma memória? Eu não havia pensado nessa hipótese, mas fazia sentido. Por que, de fato, tudo no sonho me parecia familiar.

                – Talvez. Eu não tinha pensado nessa possibilidade, mas agora que você falou, faz um pouco de sentido.

                – Como era o sonho?

                Seu tom de voz era diferente, não era seu tom usual, da Elora minha amiga, mas sim o tom da Elora, minha médica. Fiz o que ela pediu e descrevi detalhadamente o sonho, embora a parte final tenha sido um pouco difícil de descrever. Ela me causava náuseas. Não conseguia acreditar que não havia sido real, o medo que senti tinha sido real até de mais.

                – Como era a voz que você disse ter escutado chamando você? Era masculina ou feminina?

                – Isso eu não sei dizer. Foi muito rápido. Eu só sabia que conhecia a voz. Parecia tão natural, como se eu devesse conhecê-la. Como se eu a conhecesse há muito tempo.

                Ela ficou pensativa por algum tempo. Provavelmente pensando nas probabilidades.

                – Poderia muito bem ser uma memória. Mas não seria possível sobreviver da queda que você descreveu. Ou então – ela fez uma pausa para olhar em meus olhos – sua mente está de dando pistas através de seus sonhos.

                – E isso é possível?

                Como minha mente poderia me dar dicas de algo que eu mesma não sei? Se for assim, qualquer dia ela vai começar a me fazer charadas e conversar comigo.

                – Não é como se você tivesse apagado todas as memórias da sua cabeça. É mais como se algum acontecimento traumático ou um golpe forte que você tenha sofrido tenha feito com que você as escondesse lá no fundo. Elas ainda estão aí, você só precisa descobrir como acessá-las. – Ela então deu seu clássico sorriso gentil, seu rosto ficando doce como o de uma fada. Ou pelo menos como eu imagino que seja uma fada, eu nunca vi uma.

                Acontecimento traumático?  Ah, legal, agora sim fiquei animada. Seja lá o que for que tenha me feito esquecer tudo, deve ter sido grave. Grave como o quê? Uma perda? Uma tristeza profunda? Uma traição? Seja lá o que for já não sei mais se quero lembrar. Se tiver sido tão ruim ao ponto de me fazer esquecer tudo, não sei se seria capaz de aguentar a dor novamente. Não sei se eu seria capaz de sentir novamente todas as dores emocionais que possam ter me feito esquecer tudo, e mais todas as outras que devo ter sofrido em minha vida. Pois certamente não foram apenas dores físicas que todas essas cicatrizes trouxeram consigo.

                A segunda opção também é bastante possível. Eu caí, ou fui atirada, no mar, as chances de eu ter batido a cabeça numa pedra ou algo do tipo são grandes. Mas provavelmente eu me lembraria de ter tido dores na cabeça ou algo assim, mas havia tanta dor no começo, quando acordei, assim como nos dias seguintes a isso, que não sei dizer se havia alguma dor além daquela em minha barriga.

                Ouvi os passos calmos e ritmados de Elora novamente. Ela estava parada, o rosto virado para trás por sobre o ombro, já com a porta aberta.

                – Tenho que ir. Logo estarão procurando por mim e reclamando porque não as estou ajudando a arrumar as coisas, daqui a poucas horas já terá clientes por aqui. – Seu olhar ficou mais sério, demonstrando um pouco mais a idade que ela possuía – E não seja teimosa, Millenia. Fique aqui e descanse.

                A porta fechou com um baque surdo e eu atirei-me na cama, em meio a devaneios.

                Acordei em meu quarto já enegrecido pela noite. Provavelmente eu acordara por causa dos barulhos que vinham do salão. Eu definitivamente não conseguiria descansar até a casa fechar. Mas também, quem precisa descansar tanto é doente, e eu de fato não estou doente. Já dormi mais que o necessário, ficar nesse quarto sem ter o que fazer não é uma ideia muito legal. Então me resta apenas trabalhar. Mesmo que talvez Elora me mate depois por causa disso.

                Levantei-me da cama e parei diante do espelho. Penteei meus cabelos bagunçados e depois tratei de prendê-los com uma presilha que Elora havia me dado. Era bonita, tinha algumas pedras de um lindo tom de verde, que eu realmente não queria acreditar serem esmeraldas. Ela ficava realmente bem em meu cabelo, o verde contrastando com o vermelho. Algumas mechas ficaram soltas, assim como minha franja, pois não eram longas o bastante para eu conseguir prendê-las.

                Assim que considerei que eu estava apresentável o bastante, saí do quarto e fui até o fim do corredor, onde parei.

                Quase todas as mesas estavam ocupadas, apenas algumas poucas vazias. Não havia a habitual aglomeração em torno do balcão, e não consegui ver quem estava ali em meu lugar. A maior parte das garotas ainda estava no salão, conversando e persuadindo seus clientes. Não vi Elora, para minha sorte. Caminhei rápido para meu balcão, enfim vendo quem estava lá, em meu lugar. Era Laureen. Ela já estava aqui quando cheguei. Não é uma mulher de muitas palavras, sempre séria e calma, costuma apartar brigas e discussões quando madame Agatha não está por perto para fazê-lo. Sua beleza, assim como a maior parte das mulheres aqui, é realmente deslumbrante. Pele extremamente clara e cabelos negros, completamente lisos, que caem até sua cintura, e olhos de um azul escuro que eu nunca pensei ser possível existir no olhar de alguém.

                Caminhei até ela, parando ao seu lado. Ela não pareceu se surpreender com minha aproximação.

                – Você não deveria estar em seu quarto, Millenia? – sua voz não era ofensiva, era baixa e séria, e ela falava como se isso fosse o mais óbvio.

                – Não estou doente para precisar dormir tanto. – aproximei-me de seu pescoço, e sussurrei em um tom brincalhão – Além de ser realmente impossível dormir com o barulho que esses bêbados fazem.

                – Pois bem, estou vendo que não há nada que vá convencê-la a voltar para seu quarto. – ela olhou para mim e sorriu serenamente – Foi até bom você voltar. Não sei se conseguiria  aguentar ficar a noite toda servindo bebidas.

                Soltei uma leve risada. Ela realmente não era o tipo de garota que eu conseguia imaginar atrás de um balcão, servindo bebidas a noite inteira.

                Assumi meu lugar, enquanto Laureen afastava-se rápida e silenciosamente. Tratei de limpar os copos e canecos, não havia ninguém na volta pedindo bebida, e comecei a observar o local, sem presta atenção em nada específico. Mas então eu vi aqueles olhos cor de mel, olhando diretamente nos meus. Ele já estava vindo em minha direção, encerrando alguma conversa que havia tido com madame Agatha, que pude ver suspirar quando viu que eu estava aqui.

                – Como você está senhorita Millenia?

               Ele já estava sentado em um dos bancos em frente ao balcão, com um sorriso brincalhão nos lábios.

               – Como sempre estive. Deseja alguma bebida?

               Ele sorriu mais intensamente com a minha evidente evasiva e voltei a percorrer o local com os olhos. Então eu vi a dona dos longos e ondulados cabelos loiros no fundo do salão, olhando-me como se estivesse tentando me matar apenas com o olhar.

               Suspirei e voltei ao meu trabalho. Essa seria mais uma longa noite.


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Notas finais do capítulo

Como prometido anteriormente, tradução de nomes:
Laureen :Inglês :A Que Sempre Vence.
Os que eu não colocar é porque não os escolhi com base no significado.
Espero que tenham gostado, aguardo sua opinião nos reviews =]