Parkour escrita por Yukii


Capítulo 1
I


Notas iniciais do capítulo

~ Me desculpem se as menções artísticas ficaram exageradas, às vezes eu não me contenho. Sério.



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O clique suave da fechadura sendo trancada pelo lado de fora ecoou na rua deserta, e Jeanie encolheu-se contra o frio de início da manhã. O céu ainda estava parcialmente escuro, desenhando contornos de nuvens leitosas por toda a sua extensão.

Enquanto ela andava pela rua, uma sacola plástica ia frouxa entre os dedos de sua mão direita, e ela fingia não escutar o estalar do material. Suas mãos suadas conferiram o relógio de pulso antes de Jeanie dobrar a esquina. Ainda tinha tempo para voltar atrás.

Mordendo os lábios, a moça sentiu-se tentada a dar meia volta. Estava prestes a fazê-lo, quando o barulho tímido da sacola de plástico lembrou-a de seu dever. Se olhasse para trás, ficaria mais difícil. Com as mãos trêmulas, ela ajeitou o coque do cabelo, e cantarolou baixinho uma música qualquer enquanto dobrava a esquina e fingia não estar nervosa.

Em poucos minutos de pura abstração mental e passos tortos, Jeanie chegou à uma rua de pedras que não conhecia. Puxando um papel amarrotado do bolso, ela conferiu sua trilha - estava no caminho certo. Desconhecido, sem dúvida, mas certo. A placa cinzenta ao seu lado trazia os dizeres "Rua Parkour" gravados, recortando-se levemente contra o céu ainda escuro de madrugada. Segundo o mapa improvisado de Jeanie, seu destino a aguardava após a esquina oposta daquela rua - a ponte Parkour.

Uma ponte e uma rua que compartilhavam o mesmo nome. Poético? Proposital? Falta de criatividade? Aquilo não interessava a Jeanie. Nos últimos meses, coisas tão triviais como essas lhe pareciam apenas detalhes sórdidos de uma sociedade que já não lhe incluía mais.

Os saltos de suas botas favoritas de couro - escolhidas propositalmente para aquela ocasião - claudicavam ao se chocarem com as saliências pedregosas da rua, acompanhados pelos olhos de Jeanie, fixos no chão enquanto caminhava - um velho tique que desenvolvera pelo simples medo de tropeçar.

No início da longa e larga rua Parkour, havia um camburão de lixo - vazio, como esperado para estar no início do dia. Sem nenhuma hesitação, Jeanie aproximou-se do mesmo e, com o braço erguido, preparou-se para jogar a sacola plástica ali dentro. O recipiente cheirava a comida velha e gatos, e o nariz da moça coçou, relembrando-a de sua alergia a pelo de felinos. 

Por uma última vez, Jeanie abriu a sacola e conferiu se tudo estava lá. Havia conferido aquela sacola pelo menos cinco vezes na noite anterior, mas queria ter certeza que não havia esquecido de nada. 

Carteira de identificação? Sim. Passaporte? Sim. Fotos de colégio? Todas elas. Diário? Logo embaixo das fotos. Celular? Estava ali desde o mês passado. Certidão de nascimento? Idem. Ela apertou o saco com um nó simples, e atirou-o no camburão com um ruído metálico.

Livre da sacola e com as mãos vazias, Jeanie apreciou por alguns segundos o silêncio. Os saltos estavam fincados no calçamento, e, fosse por frio ou nervosismo, ela abraçou o próprio corpo. Um calor no pescoço e no nariz indicou-lhe a iminência de choro, e ela engoliu em seco.

Jeanie poderia ter chorado tudo o que se privou de chorar naquele momento, não fosse o desvanecimento do recém-adquirido silêncio. Uma melodia, baixa e conhecida, lhe chegou aos ouvidos. Ali, na rua Parkour, alguém ouvia música.

Lentamente, a moça afastou-se do camburão de lixo, esperando que os pequeninos feixes abafados de sol não denunciassem sua presença. Os passos de Jeanie estavam travados, lentos, inseguros demais para seu gosto. Aquilo não era bom.

Como um vislumbre ilusionário, havia uma figura escura no fim da rua, recostada ao último poste de luz do lugar. A penumbra não permitiu a Jeanie identificar o outro com clareza, e a única certeza que tinha era de que a música vinha dali.

Ao aproximar-se mais alguns metros, já não se importando em camuflar sua presença e guiada pela curiosidade, Jeanie foi capaz de enxergar quem lhe chamara a atenção. Um homem, um tanto mais alto que ela, usando um chapéu escuro e vestido com um longo sobretudo preto e largo que caía frouxamente sobre ele. A face, levemente reclinada para baixo, exibia traços jovens e bonitos, emoldurados por cabelos negros e longos levemente arrepiados nas pontas. Havia algo de familiar nele. Suas mãos enluvadas seguravam uma mala larga, e, aos seus pés, um pequeno rádio de pilha desfraldava a conhecida melodia da Valsa das Flores.

O desconhecido pareceu sentir o olhar inquiridor de Jeanie pousar sobre ele. 

- Gosta de Tchaikovsky? - ele levantou a cabeça para olhá-la e apontou para o rádio de pilha.

Jeanie piscou, censurando-se mentalmente. Não devia ter se aproximado. Ia se atrasar.

- Um pouco.

- Um pouco. - repetiu o homem calmamente. Somente nesse instante Jeanie foi capaz de perceber que ele segurava um papel escrito pela metade. - Eu gosto bastante. Uma pena que esta não seja minha música preferida dele.

- É mesmo? - ela tentou soar desinteressada o suficiente para que o estranho a dispensasse.

- Sim.

- Por que não ouve a sua preferida, então?

Ele sorriu.

- Oh, como eu queria! Não vou mentir, eu até tenho a fita. Mas, você sabe, esta não é minha ocasião preferida. Não estou nos meus melhores dias. Pode soar estranho, mas deixo minha música favorita para meus melhores dias.

- Eu também... também não estou em um de meus melhores dias. De maneira alguma. - ela deixou escapar, hesitante. - Mas isso não faz sentido. Supostamente, você deveria escutar algo que realmente gosta nos dias ruins, para alegrar, sabe.

Enigmático, ele apenas sorriu novamente, e questionou:

- Qual o seu nome?

Ah. Era o que ela temia. 

- Hã. Julie. - mentiu ela.

- Um belo nome, Jeanie.

O rosto dela empalideceu, acompanhado por um calafrio. Instintivamente, a garota recuou um passo.

- Co... como...

- Como sei? Ah, acho que esqueci de mencionar. Falha minha. Eu sou ele. Lembra-se? Eu sei de tudo.

Jeanie estava sentindo-se cada vez mais nervosa.

- E-ele? O que... como...

O homem manteve a face altiva e séria por um momento, encarando-a. Então, repentinamente, ele jogou a cabeça para trás numa gargalhada divertida.

- Ah, me desculpe! De verdade. Eu realmente assustei você, não é? - ele passou a mão pelos cabelos baguçados, derrubando o chapéu e não se importando em recuperá-lo, um resquício de riso pendente em seus lábios. Jeanie, ainda pálida, não respondeu, completamente confusa. - Eu não pensei que iria lhe assustar tanto. Não me leve a mal, eu estava apenas brincando. Seu nome está escrito no pulso da sua jaqueta, ou assim me pareceu.

Na mesma hora, os olhos velozes de Jeanie conferiram o punho da veste, confirmando as palavras do estranho. Em letras cursivas e desleixadas, lia-se "Jeanie Coutt" numa etiqueta precariamente costurada à mão. Claro! Como pudera se esquecer? Aquela era sua velha jaqueta de educação física do colégio. Fora tão cuidadosa em apagar todos os resquícios da sua existência e, ainda assim, lá estava o seu nome, rabiscado no punho de sua jaqueta. Ela mordeu os lábios, arrancando a etiqueta com violência e enfiando-a no bolso.

- Eu preciso ir. - ela sentenciou secamente, virando-se para continuar a caminhar.

- Tanta pressa assim para morrer?

Jeanie virou-se novamente, incapaz de responder. Por um momento, o som dos violinos de Tchaikovsky foi a única resposta à fala do homem, e ele mirava Jeanie com olhos calmos.

- Não se preocupe. Foi uma pergunta retórica. - ele deu um leve sorriso e voltou-se para o papel, onde escrevia algo usando uma caneta de bico de pena.

- Como sabe que estou prestes a me suicidar? - a pergunta de Jeanie saiu num murmúrio.

- Não é preciso ser um gênio para isso. Você estava pálida desde que dobrou a esquina. - ele falava sem olhá-la, compenetrado no que escrevia. - A Ponte Parkour, certo? Você não é a primeira. Já vi muitos se jogando de lá. Não que eu considere uma visão agradável.

Jeanie absorveu as palavras do estranho em completo silêncio. Buscando autoconfiança, enfiou as mãos nos bolsos. A Valsa das Flores continuava tocando, espalhando notas agudas pelo vazio. 

- Não há mais espaço para mim. - ela sussurrou, a voz saindo engasgada. - Eu não tenho ninguém. Não tenho amigos. As pessoas me odeiam e não escondem isso de mim.

O homem escreveu mais algumas linhas, antes de levantar a caneta escura e olhá-la nos olhos.

- A propósito, já mencionei minha música favorita do Tchaikovsky? Confesso que gosto de muitas, mas nenhuma supera Danse de La Feé Dragée.

- O quê? - Jeanie piscou, confusa pela brusca mudança de assunto.

- A Dança da Fada Açucarada. Vamos, todo mundo conhece essa!

A Valsa das Flores parou de tocar, finalizando seus longos sete minutos com uma nota grave. Uma melodia familiar ecoou na mente de Jeanie, uma melodia muito, muito antiga.

- Ah! - ela exclamou subitamente - Eu conheço essa! Do Quebra-Nozes... assim como a Valsa das Flores, certo?

Ele sorriu animadamente, fazendo um aceno aprovador com a cabeça, recostando-se melhor no poste.

- Exatamente! É a minha favorita. Uma pena que não seja tão longa. É uma beleza em apresentações de ballet.

- O rádio da cozinha. - murmurou Jeanie.

- Hum?

- Ah, nada. - ela pareceu pertubada. - Estava lembrando de umas coisas antigas minhas.

- Oh, conte-me, por favor. Se você realmente decidir pular da Ponte Parkour, não acho que teremos outra chance de conversar, e não é fácil achar alguém que converse sobre Tchaikovsky.

As mãos de Jeanie passearam por seus cabelos amarrados, enquanto ela fingia não estar nervosa.

- Faz uns dez anos, mas eu me lembro perfeitamente. - ela engoliu em seco. - O rádio da cozinha tocando o Quebra-Nozes. Mamãe preparando pretzels. Minha única preocupação era passar o anel na brincadeira de roda.

Por um momento, ela sentiu lágrimas arderem em seus olhos, mas logo desatou num riso engasgado.

- Você não está anotando o que eu estou falando, está? - ela perguntou num tom esganiçado. Seria um jornalista amador relatando casos de suicídios em Parkour? Já bastava que todo dia ela sentisse alguém a perseguindo. Um jornalista relatando suas memórias suicidas seria o fim.

- Oh, não, não. - ele sorriu, abaixando-se e puxando a mala aos seus pés para junto de si. - Não se incomode comigo. Não importa o que estou escrevendo. Apenas desabafe.

Jeanie sentiu-se tentada a comentar que não se sentia à vontade para desabafar com um homem carregando uma mala gigante e escrevendo algo obstinadamente, mas resolveu aceitar o convite do estranho. Eram suas últimas horas de vida. Não haveria remorso algum horas mais tarde, quando seu corpo já estaria abandonado e sem vida em algum lugar fundo do rio.

- Eu já tive amigos, há muito tempo. - ela sentou-se na calçada ao lado do homem, afrouxando as botas. Seus olhos miravam o vazio da rua. - Eu era apenas uma criança boba, mas tenho certeza que aqueles eram meus amigos. Nós brincávamos de roda todo o dia, e aquilo era... era a melhor coisa do mundo. - sem perceber, ela riu. - Mamãe ainda estava viva, e fazia montes de pretzels para nós.

- Nós?

- Sim, como eu falei, eu tinha alguns amigos. - ela fungou. - Acabei me distanciando de todos.

- O que aconteceu? - ele indagou em tom suave, continuando a escrever.

- Coisas de criança. - ela deu um riso leve, mas seus olhos ainda estavam úmidos. - Um de meus melhores amigos só queria passar o anel de vidro da brincadeira para mim, porque ele sabia que eu jamais deixaria cair. Que nós jamais desapontaríamos um ao outro. Os garotos começaram a desdenhar dele, e, um dia, ele ficou tão irritado que jurou que nunca mais brincaria comigo. - Jeanie sorriu, triste. - Na época, eu chorei muito. Nunca mais o vi. Crianças podem ser tão bobas às vezes.

- Se é pequeno quando por tudo se sofre / Uma dor maior que a morte - entoou o homem com um leve sorriso, sem parar de escrever.

- Um dístico. 

- Sim. Eu que o fiz. - ele suspirou, os olhos levemente brilhantes. - Adultos podem ser tão pretensiosos às vezes.

- Como assim? É um belo dístico.

Ele soltou uma risada irônica.

- Oh, claro. Mesmo que fosse, estamos numa sociedade que pouco se importa com belos dísticos. 

- Você é um poeta? - Jeanie questionou.

- Já quis ser. Assim como quis ser pintor, escultor, ator... tantas coisas. E, no fim, as pessoas simplesmente me olhavam com pena, perguntando-se o quão longe poderia minha loucura me levar. - ele franziu a testa. - Ironicamente, ela me trouxe até a rua preferida dos suicidas.

Jeanie olhou-o, apreciando a beleza que o rosto dele exibia à luz fraca do poste. Por que um homem bonito como ele teria qualquer dificuldade de ascender naquilo que queria?

- Não entendo. Você me parece jovem. Ainda poderia tentar ser um ator, pintor ou seja lá o quê.

Foi a vez do homem rir.

- Você sabe disso melhor que eu, minha cara Jeanie. Nunca se sentiu cansada demais até para tentar? Cansada de tropeçar nos seus próprios limites? Cansada de seu reflexo? Cansada dessa vida, ao ponto de desafiar a gravidade na Ponte Parkour?

Jeanie mordeu o lábio inferior.

- Sim, me senti. Sem dúvida. - ela sussurrou. Enquanto isso, a Valsa das Flores começava a tocar pela terceira vez.

- Exatamente. Eu não conheço todas as razões que a levam para tal fim, nem tentarei lhe impedir. Todos nós temos nossas próprias razões para desistir de vez em quando. Tenho certeza que há muito mais por trás da solidão para lhe fazer desistir da vida, assim como há muito mais por trás da minha falta de talento para me fazer desistir de seguir meus sonhos. E mesmo sabendo disso, nunca seremos capazes de entender um ao outro.

A clareza e a calma nas palavras do rapaz fizeram Jeanie sentir-se estranhamente calma. Poucas centenas de metros lhe distanciavam da Ponte Parkour, e ela sabia que não faltava muito para tudo acabar. Mesmo assim, estava surpreendentemente calma. As fivelas frouxas de suas botas reluziam à luz do poste, e a Valsa das Flores se desenrolava ao seu lado, emitindo vibrações no ar.

- O que tem dentro desta mala enorme? - questionou a jovem depois de algum tempo, observando o objeto ao seu lado.

- Uma vez - disse o homem, ignorando a pergunta dela e sem parar de escrever por um mísero instante -, eu fui diagnosticado com esquizofrenia. Não quero me delongar sobre o assunto, mas digamos que uma situação complicada envolvendo um cachorro manco e três xícaras de açúcar me levou a isso. Fui gentilmente encaminhado para um acompanhamento psicológico e, enquanto eu ouvia os debates nervosos de psicólogos se delongando se eu seria realmente um esquizofrênico ou só passara por um momento de crise, comecei a me sentir bem o suficiente para fazer um dístico sobre a situação. - Ele pigarreou: - E não existe grito mais triste e rouco / Do que um grito de artista louco. - ele riu. - Ah, eu era tão convencido!

Jeanie riu, deixando o riso morrer na garganta após alguns míseros segundos. O dia começava a clarear lentamente, e a luz do poste piscou e apagou. Ela sentia-se quase incapaz de levantar-se. Estava pensando em despedir-se do seu último interlocutor em vida, quando ouviu um clique abafado ao seu lado. Surpresa, ela assistiu o homem guardar o papel que se empenhara tanto em escrever na mala, enfiando-o por uma fresta e fechando-a rapidamente, impedindo que Jeanie visse o que havia ali dentro. Enquanto ele guardava a caneta no bolso frontal do sobretudo, ela perguntou:

- Está indo embora?

Ele sorriu. Dessa vez, foi um sorriso estranhamente triste.

- O tempo não espera por ninguém, minha cara, e eu não gostaria de ser um atraso para você. O dia está clareando. Em uma fração de hora, as pessoas estarão nas ruas. Você não pode se deixar ser vista, certo?

O coração de Jeanie deu um salto quando ela consultou o relógio de pulso - o ponteiro menor indicava que já passava das 5h da manhã. De acordo com seus planos fúnebres, ela já deveria estar devidamente morta àquela hora. Jeanie deu um pulo da calçada.

- Antes que você corra para os adoráveis braços da Morte, permita-me lhe dar um presente. - ele pousou a mala no chão, aos pés da garota. 

- É... para mim? - ela questionou, incerta.

- Você estava curiosa sobre esta mala, não estava? - ele deu um sorriso triste. - Você irá entender melhor quando abrir.

Jeanie fez menção de se abaixar para o fecho dourado da mala, mas os dedos finos de seu interlocutor seguraram seu pulso suavemente.

- Ainda não. - ele disse quase num murmúrio. - Por favor, ainda não. Espere apenas eu estar longe o suficiente. É uma escolha sua abrir. Se abri-la, poderá se atrasar para seu último compromisso. Esteja ciente disso.

Ele afastou a mão, soltando o pulso da jovem. Em seguida, apanhou o chapéu caído do chão e, espanando a poeira do mesmo, virou-se para o mesmo lado que Jeanie pretendia seguir dali a alguns minutos. Para sua surpresa, porém, foi a vez dela de segurá-lo pelo pulso. Ele virou-se, surpreso.

- Espere. - ela tentava soar calma, embora cada molécula de seu corpo parecesse gritar de confusão. - Eu nem mesmo sei seu nome. Como posso aceitar algo de um desconhecido?

Ele mirou-a de olhos arregalados por um tempo, e depois sorriu.

- Ora, vamos, não sou tão desconhecido assim. O meu nome não importa. Não é como se você fosse me conhecer por inteiro apenas por saber meu nome. - ele fitou-a por longos segundos, antes de soltar sua mão da dela. - Adeus, Jeanie.

Ela observou-o sumir na curva da alameda, sentindo seu coração bater descompassado. Bem, ao menos ele não estava indo se atirar da ponte, mesmo que seguisse na direção da mesma. Pessoas normais atravessavam a Ponte Parkour, não se suicidavam ali.

Assustada, ela se deu conta que o desconhecido deixara o rádio para trás, e a Valsa das Flores se repetia na calçada vazia. Quis correr atrás dele para avisá-lo, mas sentia que era tarde demais. Ela não seria capaz de atravessar a Ponte Parkour como uma pessoa normal e não ceder à gana de se atirar dali.

Com a mala a seus pés, Jeanie viu que tinha uma difícil questão em mãos. O dia já começava a despontar, e era possível ver uma ou duas pessoas caminhando aleatoriamente na rua. Abrir aquela mala podia atrasá-la ainda mais, e ela não podia perder um único segundo sequer. 

A curiosidade, porém, falou mais alto na mente de Jeanie Coutt.

Os fechos dourados abriram após sofrerem uma leve pressão dos dedos gelados de Jeanie, e ela descansou a metade inferior da mala em seu colo. Surpresa, ela constatou que não havia muito ali - apenas um pequeno embrulho em papel grosso, e o papel no qual ele estivera escrevendo durante a conversa de ambos.

Jeanie desdobrou o papel apressadamente, e, com as pedras da calçada arranhando seus joelhos desprotegidos, ela leu:

Minha cara Jeanie,

Como vai? Imagino que esteja surpresa ao receber um escrito meu - de alguém que, supostamente, você não conhece. Peço desculpas por isso. Eu deveria ter me apresentado melhor. Ainda assim, estou fazendo o melhor que posso para me expressar para você. Não tem ideia de como é difícil para alguém como eu me expressar apenas com palavras e nenhum verso ou pintura. É por isso que escolhi escrever essa carta no momento em que você conversa comigo - eu sei que não terei outra chance. E sua voz me fará um tanto mais capaz de escrever tudo o que preciso.

É, eu sei. É confuso. Horrivelmente confuso. Eu não queria estar na sua pele, aliás. 

Deixe-me esclarecer um pouco as coisas. Que tal começar abrindo aquele pequeno embrulho? Prometa-me que vai abrir. As próximas páginas não farão nenhum sentido se você não abri-lo.

Surpresa, Jeanie dobrou a primeira folha e olhou de esguelha para o embrulho. Espiando a segunda folha da carta, percebeu que esta estava quase completamente em branco, exceto pelos dizeres "Você abriu o embrulho? É realmente importante!" Ela quase riu, soltando os papeis e apanhando o embrulho leve.

Cacos. Pequenos cacos de vidro de algo pequeno. Um objeto despedaçado num embrulho? Uma parte dele, porém, ainda estava inteira - um pequeno anel de vidro, com a auréola parcialmente destruída.

Jeanie conhecia aquele anel. Seus olhos voltaram-se para a terceira folha da carta.

Eu estava realmente incerto se você lembraria desse anel ou não, mas, enquanto escrevo essas palavras, você acaba de mencioná-lo. Estou um pouco mais tranquilo agora. Não esperava que você ainda lembrasse daquele dia.

Francamente, desculpe-me por ter sido um idiota.

Me desculpe pelo o que fiz.

Confiávamos cegamente um no outro, passando este anel como se nada mais importasse. E, um dia, eu quebrei a sua confiança. Eu lhe reneguei por simples vaidade. E nunca pude me perdoar por isso. Só vim a perceber o quanto eu estava errado depois de muitos anos. E, aí, eu já tinha perdido você há tempos.

'Crianças podem ser tão bobas às vezes', você me disse, não faz nem dez minutos. Quis gritar que concordo inteiramente com você, mas acho que eu lhe assustaria se fizesse isso. Assim como quis começar a carta lhe chamando de Jean-Jean. Lembra desse apelido? Não consigo me lembrar se quem o deu fui eu ou Mary. Mary nunca foi muito inteligente com palavras, então deve ter sido eu. De qualquer forma, não lhe chamei de Jean-Jean, nem pretendo fazê-lo. Tornando-me um estranho, perco esse direito.

Eu não retiro nada do que disse - eu não vou lhe impedir de cometer suicídio. Eu entendo sua aflição. Eu a sinto, também. E isso me faz me perguntar o que nos tornamos. O que nos tornamos, afinal? Adultos angustiados? Frustrados? Não importa. 

Você deve estar se perguntando como a encontrei depois de tanto tempo. Foi difícil procurá-la após a morte da sua mãe, mas fiz o melhor que pude. Hoje em dia, é tão fácil obter informações alheias! A internet chega a ser algo assustador. Mas, eu lhe pergunto - já se sentiu alguma vez perseguida? Sentiu como se alguém lhe seguisse? Se sim, peço desculpas mais uma vez. A culpa deve ser totalmente minha. A não ser que alguém mais seguisse você. O fato é que consegui descobrir um pouco sobre os dez anos que passamos separados, e posso afirmar que os seus dez anos foram tão depressivos quanto os meus. 

O dia está clareando, e acho que atrasei um pouco você. Se está lendo isso, é porque escolheu abrir a mala, certo? Ótimo. Eu não sei se isso vai de algum modo ferir ou magoar você, mas, de qualquer forma, já não lhe importa mais. Antes de terminar esta carta, quero lhe pedir desculpas mais uma vez - não por quebrar nossa relação de confiança há tantos anos, ou por fingir que não a conhecia ainda agora. Quero pedir desculpas porque acho que roubei o seu lugar na fila de suicídios da Ponte Parkour. Não costumo furar filas, mas, você sabe, se for para morrer, eu gostaria de ir primeiro. Não fique chateada comigo! Estou tão sem rumo quanto você. Embora eu ainda teime e ache que sua vida ainda vale a pena.

De qualquer modo, se ainda estiver com a mesma ideia na cabeça, nos vemos no fundo do rio. Hum, certo, isso foi deprimente. Soa como romance barato. Retiro o que disse.

Ernest (ou Ernie, como você gostava de chamar).

A Valsa das Flores ainda tocava quando Jeanie largou o papel e o anel, correndo para a direção onde ela sabia que estava a Ponte Parkour. O som do restante do anel quebrando e das notas de Tchaikovsky foram parcialmente abafadas pelo grito da jovem, cujos batimentos cardíacos fortes e cheios de vida a impediram de ouvir qualquer outra coisa.

A Ponte Parkour estava a poucos metros dali.


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Notas finais do capítulo

CLIIIIFFFFHANGEEERRR~ -é, eu sei, o final foi cliffhanger. Demais. D8 Primeiramente, queria pedir desculpas (momento Ernest de pedir desculpas, oi) a quem achou essa fic extremamente delongada e chata. Sério, eu entendo vocês. Eu também achei. Q Segundo, queria agradecer a quem ficou me enchendo o saco no msn para escrever algo novo, eu amo vocês. E odeio ao mesmo tempo, porque foi um saco. Parece até que tenho editores, argh.Ok, eu sei que a história carece de sentido, mas ela é, na verdade, uma grande metáfora. O anel representa o elo formado entre pessoas, e a quebra é um prelúdio de uma situação-limite. E, para ser sincera, foi fortemente baseado na poesia do Manuel Bandeira, 'O Anel de Vidro'. E, não, eu nunca pensei em me suicidar (na verdade, eu ia usar esse tema para uma fic de Ano Hana, mas acho que ninguém mais assiste além de mim, então... q). É um tema bastante delicado e complexo, e quis explorar pelo menos uma das facetas que alguns suicidas apresentam - o conformismo. Nem todos são conformados com a morte, mas, no caso da Jean-Jean e do Ernie, sim. Uma faceta estranhamente adorável, na minha opinião. /psicopata/Tenho um fraco por sobretudos, daí quis colocar o Ernest usando um. Tchaikovsky é um gênio musical que embelezou minha história, e a Valsa das Flores e a Danse de La feé dragée realmente existem, ambas são músicas do Quebra-Nozes. E ambas são indispensáveis para a coleção de quem gosta de música clássica ~~como eu~~, recomendo. ♥ Enfim, sem mais delongas, essa fic não saiu como eu esperava. :c Sei lá, eu queria algo mais onírico, mais louco, mas não deu. Fiquei com medo de matar ainda mais qualquer resquício de sentido que ainda sobrou. Queria também ter incluído mais referências artísticas na história além do Tchaikovsky (olá, eu sou uma pessoa que ama pintura e música clássica. Chamem-me de velha, mas me deixem com meus Raphaels e Boticcinis. q/), mas achei que pesaria muito o lado do Ernest mais do que deveria sobre a Jeanie. :C Se vai ter continuação? Não é para ter, mãããs... se me pedirem muito e ficarem realmente interessados, eu posso fazer uma. Sendo uma nova one-shot, vale lembrar.Deixem suas opiniões e obrigada por lerem! c: /de volta para o momento Tchaikovsky/



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