A Voz do Silêncio escrita por SleepySeven


Capítulo 2
Capítulo 2




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2776. Ano 412 do calendário da União.

Cheiros estranhos.

Comidas estranhas.

Pessoas estranhas.

Aquele era, como veio a descobrir mais tarde, um mundo artificial. Artificial desde o ar que respiravam até o céu sobre suas cabeças.

E aquela realidade lhe era muito nova e, ainda assim, fantástica.

Um verdadeiro milagre.

xxxxx

Feliciano sentia que algo não estava certo.

Desde que fora acolhido pela família Hérdeváry, recuperara os ares de jovem saudável: ganhou peso e a cor voltou às suas faces, antes pálidas. Suas feridas também já não doíam, agora não eram mais que pequenas cicatrizes.

E se mostrava mais vívido também (agitado, segundo Roderich).

Apesar de recuperar-se bem fisicamente, sentia a própria saúde mental se debilitar. Sua cabeça o incomodava — doía e latejava sem dar trégua. Começara com uma dor fraca que quase não se fazia perceber, mas, eventualmente, piorou. Essas dores o atacavam momentos isolados do dia e, nas piores vezes, chegava a sentir-se desorientado e esquecer-se momentaneamente do que estava fazendo ou mesmo de onde estava.

Mas não era só isso: havia também a falta de memórias antigas. Estas não lhe retornaram desde o dia em que acordou confortável na casa dos Hérdeváry, apenas uns fragmentos que lhe eram vagos demais para que os considerasse. Depois disso, até a noção do tempo que já havia se passado tornara-se um pouco confusa para ele.

Ia acabar enlouquecendo, tinha certeza. Era como se a sua mente estivesse sendo dividida em duas. E todas as duas lhe berrando coisas diferentes ao mesmo tempo.

— Você... está se sentindo bem?

A voz o tirou de seus devaneios e o fez olhar para a direção de onde ela vinha.

Sentia-se mal novamente. Tão mal que chegara a esquecer-se da presença do outro, que o olhava com um tom de incerteza.

“Bem”. Foi a única palavra da frase que Feliciano compreendeu. Negou, abanando com a cabeça. Não estava nada bem.

Viu Ludwig arquear a sobrancelha, ainda indeciso se o menor passava mal mesmo ou se era alguma de suas manhas para interrompê-lo. Resolveu afinal dar-lhe um voto de confiança.

Pelo modo como Feliciano esfregava as têmporas, concluiu que devia ser uma dor de cabeça e retirou-se, indo buscar algum remédio que surtisse efeito.

O que ficou acompanhou-o com o olhar até que este sumisse em um dos cômodos.

Não gostava dele.

(Ou pelo menos não lhe tinha muita simpatia, até o momento).

Era verdade que foi por causa de Ludwig que Feliciano conseguira aprender as noções básicas do novo idioma (Ludwig resolveu continuar com as aulas – não aceitava falhar), apesar das desavenças iniciais, mas, de todos que conhecera ali, era dele de quem menos gostava.

Nunca sabia exatamente como se portar na presença do loiro, chegava até a ficar nervoso. Tinha a sensação de que este estava sempre gritando com ele e dando-lhe broncas (demorou um bom tempo para descobrir que aquele era o tom de voz normal dele). Acabavam sempre brigando e, depois de algum tempo, “fazendo as pazes”.

Mas havia algo sobre ele que o fascinava: nunca tinha visto cabelos tão claros como aqueles (ou pelo menos não se lembrava de ter visto). Punha-se às vezes a observá-los quando Ludwig estava distraído. Os cílios e sobrancelhas do mentor eram tão claros que Feliciano tinha a impressão de que eram brancos, às vezes.

Acharia engraçado, não fosse a incerteza de que a sensação fosse alguma ilusão causada pela falta de memórias: havia muitas coisas naquele lugar que o fazia ter aquele mesmo tipo de impressão.

— Ei! — Chamou a atenção de Feliciano, que pela segunda vez naquele dia não notara sua presença. Havia voltado com o remédio e um copo d’água, estendendo-os para o outro.

Feliciano olhou para a pílula com um pouco de curiosidade. Tinha certeza de ter pegado em alguma daquelas antes. Engoliu-a rapidamente junto ao conteúdo do copo.

Havia algo mais que, além de causar-lhe a mesma sensação de curiosidade, causava-lhe também espanto.

Por mais que não se lembrasse do passado ou que sentisse a sanidade ruindo aos seus pés, tinha certeza de uma coisa: o céu era azul e aquela era uma verdade imutável.

Sim, o céu. Ele era azul. Nem verde, nem marrom, nem prata, muito menos violeta. Azul.

Mas aquilo não era o que seus olhos lhe diziam. Fosse manhã ou noite, o céu daquele lugar tinha uma coloração violácea. Mais clara pela manhã, mais escura pela noite. Nuvens brancas e, dependendo do horário, alaranjadas.

E isso ia levá-lo à loucura. Era tão certo quanto o céu era azul.

xxxxx

Eram tempos difíceis aqueles.

Ludwig não gostava da vida que levava: de fato, era horrível viver com o dinheiro contado no bolso, controlando cada centavo para não chegar ao final do mês com a despensa vazia.

Queria ser grande. Fazer a família viver do bom e do melhor sem precisar se preocupar com mais nada.

E, por esse motivo, acordava todos os dias com o mesmo objetivo: ser alguém na vida.

Perseguia o sonho febrilmente, nunca se desviando dele — vestir a farda verde da Força Aérea da Nação do Norte era tudo o que mais queria.

Dinheiro e conforto. Os militares daquela época tinham esse tipo de prestígio com o governo e com a própria sociedade, mas, no entanto, as vagas eram disputadíssimas. Aquele era bem dizer o sonho de todo garoto da idade dele (que, por sinal, era treze, mas o ingresso na vida militar era bem cedo por aquelas bandas).

As vagas da Força Aérea eram as mais cotadas. Além de cuidar do espaço aéreo, englobava também a exploração espacial, que se fizera bem importante desde a época da colonização.

Mas faria o que fosse necessário para ingressar nela. Não se importava se precisasse dedicar sua vida para atingir seu objetivo.

Naquele dia, porém, se esquecia um pouco disso: era dia de feira. Hora de conseguir comida barata para durar as próximas semanas.

Ele e o irmão eram encarregados da maior parte das compras e desempenhavam a função com gosto. Sempre acabavam conseguindo bons descontos nas compras. E adoravam descontos.

Apesar de todas as diferenças, essa era uma das qualidades que Ludwig gostava em Gilbert. Falava demais, mas conseguia bons resultados, no final das contas. Aprendera com ele a pechinchar.

Iam os dois todos os finais de semana na feira, já era parte da rotina, mas daquela vez havia algo de mais incomum na tarefa.

— Por que tinha que trazer ele? — lançou ao irmão um olhar de reprovação.

— E por que não trazer ele? — replicou Gilbert. — Ele tem que ver o mundo, conhecer pessoas, se enturmar e... ele é uma graça, não acha? Ele me lembra você, quando era pequenininho. Era tão fofo! Mas, depois, quando começou a falar...

Não sabia se ria ou chorava, mas limitou-se a ficar calado, emburrado, ignorando o comentário. Tinha a impressão de que a presença de Feliciano estava cada vez mais freqüente na vida dele, e mais ainda depois que Gilbert ficara encantado ao conhecê-lo. E aquilo estava causando cada vez mais dor de cabeça.

— Ah, é uma pena que o riquinho que está cuidando do Feliciano! Aposto que se fossemos nós a descobri-lo...

— Estaríamos os quatro morrendo de fome, debaixo da ponte. — Interrompeu. — A renda mal dá para nós três, imagine só mais um...

— Você é pessimista demais. Devia aprender a pensar como seu incrível irmão aqui! Ia ser mais popular com as garotas também, kesesesese~! — Cutucou o menor com o cotovelo, dando uma piscadela e acabou por ser ignorado.

Dividiram-se e, antes que pudesse protestar, foi deixado com Feliciano, que, energético como sempre, queria fuçar todos os cantos.

“Gilbert vai me pagar essa...”, pensou consigo mesmo.

Tentou não se estressar, mas, assim que tirava os olhos do outro, demorava para achá-lo novamente.

Encontrou-o uma das vezes fazendo gracinhas para algumas garotas, que soltavam risinhos e gargalhadas. Só não fazia idéia de como mantinham diálogo.

Desculpou-se com as três e arrastou Feliciano pela mão, resmungando por entre os dentes.

Resolveu que, por mais que não gostasse, a melhor das soluções seria aquela: mantê-lo de mãos dadas com ele. Assim não o perderia de vista e ainda aproveitaria pra dividir com ele algumas sacolas.

Funcionou, na prática. Mas acarretou em um incidente que deixou Ludwig fulo da vida pelo resto do dia: um dos feirantes, que lhe conhecia, deu-lhe os parabéns por finalmente ter conseguido uma namorada.

Demorou a desvencilhar-se do “problema” e explicar que “ela” era “ele” e que não eram namorados coisa nenhuma. Achou tão absurda a situação que desandou em gritos, acabando por se cansar, sem de fato saber se tinha conseguido desfazer o mal-entendido. (Na dúvida, passou a não comprar mais com aquele vendedor, desviando toda vez que via a barraca dele).

Era verdade que as roupas que Feliciano usava eram um tanto... efeminadas. Não sabia onde tinham conseguido-as, mas, depois disso, convenceu Roderich a arranjar novas roupas para ele, que fossem mais de acordo, porque “não iria mais levar Feliciano a lugar algum, se fosse daquele jeito”.

Roderich, por sua vez, sentiu-se um pouco desconfortável com o comentário e achou estranho o motivo de tanta insistência, mas não contou, porém, que aquelas eram suas antigas roupas.

Ludwig não mencionou o acontecido para o irmão e nem para mais ninguém. Preferiu tentar esquecer-se daquilo.

Apesar de tudo, conseguiram fazer boas compras naquele dia  (o preço das batatas estava especialmente bom) e voltaram carregados de bolsas para casa. Para surpresa do loiro, Feliciano mostrou boa vontade e disposição, ajudando com as sacolas.

A partir daí, começou a acostumar-se com ele. Não era de todo mal, afinal, ainda tentava ajudar um pouco.

Passou a aceitar sua companhia no dias de feira que se seguiram, mesmo que isso o obrigasse a fazer o possível para passar longe de uma determinada barraca.


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Notas finais do capítulo

Agradeço a todos que estiverem acompanhando, espero que estejam gostando ^^

Acho que acabei fazendo o Itália e o Alemanha ficarem OOC, mas prometo me esforçar mais ;;

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