Sombras sobre Sinéad escrita por Dani


Capítulo 23
Melancolia




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Já estava pronto para afastar-me quando senti uma mão segurar meu braço. Meu corpo estremeceu e tive vontade de gargalhar, pois estava desesperado e nervoso, contudo, quando me virei bruscamente (instinto de defesa), percebi que quem estava diante de mim não era um de meus inimigos, mas sim, Judith. A bela jovem observava-me com seus belos olhos aliviados.

      - Que bom que você está bem. Sua ação foi bem arriscada – disse ela.

      - Perdão, no entanto, fora a única ação da qual eu consegui pensar naquele momento para poder escapar. – Fiz uma pausa com o intuito de pensar por um instante. – Qual será o interesse deles em raptar-me?

      - Bem, em minha opinião, acho que é devido a sua habilidade. Seria muito vantajoso para nossos inimigos se você desenhasse locais nos quais eles poderão encontrar mais filhos de Yasuo, os poucos restantes pelo menos.

      - Eu os pouparia do trabalho de procura...

      - Sim. Além de ser bem sexy, charmoso e bonito, também possuí uma habilidade valiosa, mais do que pensa. – Ela lançou-me um olhar sedutor.

      Acho que se eu não tivesse namorada, eu teria beijado Judith naquele momento, afinal, ela era extremamente provocante e eu sou o bobo que cai nessas provocações (não, não sou). No entanto, eu gosto muito de Amber e ela é a garota mais interessante e bela que eu conheço. Seja quem for, não me fará perder o foco.

      - Onde estão os outros? – perguntei.

      - Não sei. Perdemo-nos na floresta. Mas, nossa preocupação agora é chegarmos a algum lugar mais seguro.

      Eu assenti.

      Desse modo, seguimos pela floresta em silêncio, tentando evitar qualquer tipo de ruído para não chamar a atenção de nossos inimigos. Aquela poderia ser a floresta onde a casa de Raj localizava-se, caso o for, eu sei guiar-me em certos locais, mesmo parecendo um labirinto de árvores. Entretanto, antes que eu tivesse de tomar uma decisão a respeito de qual direção seguir, comecei a escutar sons de passos quebrando galhos e batendo contra a terra. Raj e Jan apareceram diante de nós saindo de trás dos arbustos.

      - Jim, Judith, onde estão os outros? – perguntou Raj.

      - Não sei – respondi. – Sai correndo em meio às árvores e encontrei-me com Judith.

      - Bem, vamos tentar encontrar um lugar seguro, depois tentamos achar os outros, eu posso ligar para eles – sugeriu Judith. – Mas não estraguem meu momento de estar sozinha com três homens lindos.

      Prosseguimos em nosso caminho sendo guiados por Raj, de fato é a mesma floresta na qual a morada de meu irmão localiza-se, desse modo, ele conseguia indicar-nos o caminho correto. Seguimos por um bom tempo, no entanto, ainda faltava dar muitos passos para alcançar a toca segura. Incomodava-me o fato de que sempre quando meu olhar encontrava o da Judith sem querer, ela piscava ou fazia outros gestos com o intuito de seduzir-me (não é pelo fato de eu ser um homem que eu vou cair nas garras de uma mulher sensual e gostosa assim tão facilmente!). Tentei afastar a imagem da falsa seguidora de minha mente e pensar na doce e, ao mesmo tempo, interessante, Amber, com bastante êxito. Além das artimanhas da mulher, a canção da qual Jan cantava, mesmo em baixo volume, irritavam-me sempre, mas tive de superar tais incômodos.

      Em certo momento, escutamos mais ruídos de passos em meio às árvores e todos se posicionaram rígidos e atentamente (eu, o mais estúpido, não possuía nenhuma arma da qual eu pudesse utilizar para defender-me).

      - Não parecem ser nossos aliados – murmurou Raj.

      - Por que não? – perguntei utilizando o mesmo tom.

      - Porque são passos mais pesados. Não sei se você reparou, mas nossos inimigos estão utilizando botas, calçados mais pesados e produzem mais ruídos do que os nossos.

      Perguntei-me como Raj conseguia identificar a diferença sutil dos passos, contudo, relembrei que ele possui uma audição muito aguçada, é a sua habilidade sobrenatural por ser um dos filhos de Yasuo. Eu queria que ele estivesse cometendo um equívoco, não desejava mais nenhum combate armado, no qual minha vida ou a de outras pessoas estivessem em risco. No entanto, infelizmente, ele não estava. Escutamos um ruído mais brusco vindo dos arbustos, assim, Raj, Jan e Judith saltaram sobre a pessoa a qual produzira o som. Em questão de instantes, Ariadne estava encurralada, mesmo que de armas nas duas mãos, ela encontrava-se em desvantagem e tremia assolada pelo medo. A imagem daquela mulher imponente já não a marcava, agora ela era apenas uma presa e não a caçadora.

      - É o fim, cara irmã – anunciou Raj.

      - Não, Raj! – bradei. – Espere. Ariadne, por que você participa de toda essa chacina, de todo esse jogo doentio?

      Ela gargalhou antes de responder:

      - Você quer uma vida mais miserável do que a de um filho de Yasuo? Nós nascemos para perecer, Jim Harris, no entanto, eu não desejo isso à minha vida, não quero morrer como uma a mais, como um pequeno conto! Eu quero permanecer na história humana, quero ter fama, como todos os humanos desejam. Esse é o sentido da existência, essa é a imortalidade que tanto procuramos, ela não é carnal, mas sim, memorial, permanecer eterna na história. Yasuo pode me presentear com isso, eu sei que pode.

      - Não há necessidade de toda essa matança para você ser famosa – respondi. – O esforço é muito mais benéfico do que esse sangue que você insiste em derramar em seu caminho, sujando e borrando as páginas e palavras de sua história, aquela a qual você deseja que perdure eternamente. Isso não é bom, Ariadne, não caia nesse caminho sombrio.

      - Isso não vai funcionar comigo, Jim Harris. Eu estou certa de que esse é o caminho mais fácil e é exatamente o que eu quero. Os filhos de Yasuo infelizmente nasceram com o propósito de jogarem esse jogo sombrio e doentio, não há maneira de fugir, não adianta tentar remar contra a maré.

      Não coloque impossibilidades em seu caminho, foi o que eu quis dizer, mas não fui capaz, pois alguns dos aliados de Ariadne aproximaram-se de nós e, assim, o caos instalou-se no ambiente, dando início a mais um confronto armado. As mais atingidas foram as pobres árvores, tive piedade das belas criaturas, elas não deveriam ter de assistir a tal cena de degradação humana, no entanto, deveriam ensinar-nos a viver em equilíbrio com o universo.

      De repente, avistei Ariadne ser atingida na cabeça, o sangue jorrando da ferida. O tiro não fora disparado por nenhum dos meus aliados, mas por alguém que, até então, estava fora do combate, Julia. A namorada de Raj, bem rápida no gatilho, atingiu minha meio-irmã. O corpo dela caiu no chão, já sem vida. Nossos inimigos, em desvantagem, decidiram fugir antes que mais sangue fosse derramado. Mais uma das filhas de Yasuo encontrara seu fim, o cadáver frio jazia sem nenhuma força enquanto o deus pagão fortalecia-se na mais obscura das profundezas. Observei Raj colocar a mão sobre suas orelhas como se estivesse tentando abafar algum tipo de som e pensei que ele pudesse estar escutando os terríveis e agourentos gritos de nosso pai. Eu não era capaz de ouvir, entretanto, sentia fraqueza em meu corpo, o qual quase cedeu a ela.

      - Vocês estão bem? – perguntou Julia. Ela aproximou-se de Raj e beijou-o.

      - Eu estou – respondeu Raj.

      - É melhor retornarmos.

      Todos assentiram.  

Quando chegamos à morada de Raj, senti um odor bem agradável de comida sendo preparada, o que me fez relembrar o quanto eu estava faminto. Fiquei imaginando quem poderia estar cozinhando o almoço e quando eu adentrei avistei Amber trajando short, camisa do Pink Floyd, meia-arrastão, tênis All Star e, para completar seu traje, avental. Seus longos fios ruivos estavam presos em um rabo de cavalo. Sua graciosa face iluminou-se ao visualizar-me.

      - Vocês chegaram na hora certa, o almoço está pronto.

      - Amber, não é para você ficar vindo aqui sempre – reclamei. – O que eu te falei sobre o perigo.

      - Deixe de ser ingrato! – Ela observou-me com olhos grandes, brilhantes e repletos de piedade. – Não vai me agradecer por eu ter trazido seu presente de dezoito anos e feito o almoço? – Ela fingiu um choro muito bem, do qual eu achei que fosse verdade.

      - Não chore – pedi ao abraçá-la. – Eu agradeço e muito, só fico preocupado...

      - Assim é melhor. Eu deixei seu presente lá no quarto junto a uns livros antigos de minha avó que eu trouxe para você analisar.

      - O.k. Vou dar uma olhada.

      Rumei ao meu quarto e avistei a cama, percebi que havia um embrulho junto a uns livros velhos, empoeirados e grossos. Aproximei-me e abri o presente: uma garrafa de uísque de uma das melhores marcas (ela quer fazer com que eu retorne à minha época de poeta do Romantismo), um livro de poemas (muito bom) e camisinhas (agora eu sou sexualmente ativo). Um leve sorriso esboçou-se em meus lábios. Amber acertou, pensei, os presentes são ótimos.

      Retornei à cozinha e avistei Amber com seu belo sorriso travesso estampado em seus lábios vermelhos. Sem dizer alguma palavra, aproximei-me dela e envolvi-a fortemente em meus braços.

      - Parabéns, meu gatinho! – desejou. – E juízo nessa sua cabeçinha desmiolada.

      - Obrigado – sussurrei próximo ao seu ouvido enquanto eu o mordiscava. – Acho que tenho juízo, só não sei onde está... Enfim, muito obrigado pelos presentes, acertou em cheio!

      - Bem, você disse que nós dois deveríamos comemorar a sós, bebendo uísque... – O sorriso brincalhão retornou ao seu rosto e, neste momento, tive vontade de mordê-la ainda mais.

      - Hã, sem querer ser chato, mas será que não dá para os dois assentarem-se à mesa e almoçarem, sem ficar com esse “showzinho”? – questionou Raj.

      Percebi que todos à mesa observavam-nos. Desse modo, senti meu rosto ruborizar e parei de agarrar minha namorada à frente daqueles indivíduos e assentei-me em uma das cadeiras vagas. Durante o almoço, dialogamos mais a respeito de alguns planos, no entanto, essa conversa não demorou a cessar. Todos concordavam que aquele dia já fora demasiadamente exaustivo, minhas forças pareciam ter se exaurido logo após a morte de Ariadne, fato que aconteceu tão rápido quanto um feixe de luz. Apreciaria ter trocado mais palavras com minha meio-irmã, talvez eu tivesse conseguido fazê-la parar com os assassinatos, rumar por um caminho menos sangrento (não que existisse um totalmente limpo, uma vez que para se viver bem, era necessário passar por cima de muita gente. Era cruel ter de pensar dessa forma e ainda para mim era muito difícil refletir sobre a realidade nua e crua sem sentir um pesar interior). Enfim, eu não consegui salvá-la e aquilo me perturbava, infelizmente, sobreviver é muito cruel, ainda mais para aqueles que pensam demais, até mesmo nos podres da humanidade (momento de profunda melancolia).

      Após o almoço, Judith teve de deixar a morada de Raj e Amber e Jan aproveitaram para ir com ela. Despedi-me, relutante, de minha namorada, pois gostaria de desfrutar das mesmas sensações das quais percorreram cada célula de meu corpo durante a noite anterior. Apreciaria muito se eu pudesse parar o tempo justamente naquele momento de prazer e felicidade que vão além da compreensão de realidade. Contudo, eu sabia que não possuía tamanho poder e jamais conseguiria fazê-lo. Além disso, Amber não poderia passar noites ali comigo, não apenas pelo perigo, mas pelo fato de que ela tem uma família da qual se preocupa com ela (eu também, entretanto, não desejava pensar muito em mamãe ou Lisa, pois me fazia sofrer ainda mais). Em momentos como aquele, eu precisava refletir mais com a cabeça de cima do que a debaixo, por isso, deveria deixá-la ir. Sabia que num futuro (espero que próximo), eu teria o tempo que quisesse para aproveitar (caso eu obter a sorte).

      Segui ao meu quarto e peguei um dos antigos livros dos quais Amber emprestara-me. As páginas já se encontravam amareladas e frágeis devido ao tempo e os manuscritos difíceis de serem lidos, no entanto, consegui identificar algumas informações. O volume consistia em relatar a respeito de cultos pagãos, rituais e todo esse tipo de coisa. Será que as outras lendas também existiam assim como Yasuo? Pensar naquilo deixava minha cabeça abarrotada de nós, por isso, decidi retornar à minha leitura. Procurei sobre meu pai, mas não obtive êxito, permaneci naquele estado até sentir que minha visão estava cansada. Guardei o livro no armário e rumei ao banheiro com o intuito de tomar um bom banho e relaxar os músculos do corpo. Yuki seguia-me pela casa ronronando.

      - Você é uma garota, logo, não pode avistar-me desnudo – disse a ela.

      Minha gata miou e permaneceu observando-me enquanto mexia o rabo felpudo.

      Suspirei.

      - Está bem, você pode ficar.

      Despi-me e entrei debaixo do chuveiro, permitindo que as gotas (não tão quentes) caíssem sobre meu corpo. Deixei meus músculos relaxarem e senti vontade de meditar, ir além daquele mundo concreto demais. Porém, não pude fazê-lo naquele momento (estaria gastando água de mais, não seria nada bom ao meio ambiente).

      Quando terminei meu banho, retornei ao meu quarto e avistei Raj assentado sobre minha cama com o meu novo livro de poemas em mãos. Seus olhos observaram-me rapidamente, mas logo se concentraram nas páginas à sua frente. Então ele começou a recitar:

      “Alegria não há que o mundo dê, como o que tira.

      Quando, do pensamento de antes, a paixão expira

      Na triste decadência do sentir;

      Não é na jovem face apenas o rubor

      Que esmaia rápido, porém do pensamento a flor

      Vai-se antes do que a própria juventude possa ir.

      Alguns cuja alma bóia no naufrágio da ventura

      Aos escolhos da culpa ou mar do excesso são levados;

      O ima da rota foi-se, ou só e em vão aponto a obscura.

      Praia que não atingirão os campos lacerados.

      Então, frio mortal da alma, como a noite desce;

      Não sente ela a dor de outrem, nem a sua ousa sonhar;

      Toda a fonte do pranto, o frio veio enregelar;

      Brilham ainda os olhos: é o gelo que aparece.

      Dos lábios flua espírito, e a alegria o peito invada,

      Na meia-noite já sem esperança de repouso:

      É como na hera em torno de uma torre já arruinada,

      Verde por fora, e fresca, mas por baixo cinza e anoso.

    

      Pudesse eu me sentir ou ser como em horas passadas,

      Ou como outrora sobre cenas idas chorar tanto;

      Parecem doces no deserto as fontes, se salgadas:

      No ermo da vida assim seria para mim o pranto.”

Quando Raj terminou, seus olhos voltaram a fitar-me, mas sem utilizar palavras. Eu fui o responsável por quebrar o silêncio:

      - “Estâncias para a música” de Lord Byron, creio eu.

      - Quem é Lord Byron? – perguntou ele, curioso. – O poema é bem impressionante!

      - Lord Byron foi um grande poeta inglês do século XIX, pertencente ao estilo literário Romantismo. Suas obras mais famosas são: “Peregrinação de Childe Harold” e “Dom Juan”. Certamente você já deve ter escutado alguma expressão citando este último.

      Raj anuiu.

      - Eu aprecio os poemas dele – prossegui -, são bem sombrios, característica do estilo literário. Acho que consigo identificar-me com os poetas românticos. Eles gostavam da escuridão, da noite, da solidão (dependendo do sentido atribuído a essa palavra), bebiam bastante, viviam como boêmios. Eu era um pouco assim, comecei a beber talvez antes de meus catorze anos, fato do qual eu não me orgulho e também vivia a escrever poemas obscuros, na solidão de meu ser, nos quais eu refletia meus sentimentos. Acho que na época eu tive princípio de depressão, não me recordo, mas minha mãe vivia preocupada comigo. Minha tia já dizia: “esse menino, do jeito que é muito belo, vai te dar muito trabalho, Marisa”, ela estava certa, entretanto não pelo motivo, apesar de eu já ter tido cinco namoradas e algumas “ficantes” também. Eu sempre fui motivo de preocupação para minha mãe. – Um sorriso melancólico formou-se em meu rosto. – Eu não cheguei a modificar-me drasticamente. Ainda mantenho muito de meus velhos hábitos. Mesmo assim, considero-me inconstante e gostaria de saber onde estou, queria encontrar-me... Enfim, é melhor para com essa falação a meu respeito.

      Raj observou-me com cautela e, após isso, voltou a folhear o livro, mantendo o silêncio. Ele parou os olhos em uma sessão destinada a pinturas e desenhos dos quais o encantou, fazendo sua expressão tornar-se radiante e admirada.

      - Gosto desses. – Raj mostrou-me os quadros do modelo surrealista.

      - Está vendo esse? – Indiquei um deles. – Chama-se “A persistência da memória” de Salvador Dalí, nascido na Espanha, foi um dos mais importantes artistas do modelo Surrealista. Esse movimento artístico foi muito influenciado pelas ideias de Freud em suas teorias a respeito do subconsciente. Para Freud, os sonhos não são imagens sem sentido completamente desgarradas da realidade e, a partir desse pensamento, o Surrealismo expressou essas ideias em suas obras, pois, apenas das imagens parecerem completamente sem nexo, elas transmitem mensagens que estão ao alcance daqueles que conseguem enxergar o mundo através de outros ângulos.

      - Gostei... – Raj assumiu uma expressão pensativa e voltou seu olhar radiante para o livro no intuito de admirar mais a obra dos excelentes artistas.

      Meu irmão e eu permanecemos por horas a fio conversando a respeito de arte. Explicava-lhe muitas informações das quais eu sabia (claro que, durante aquela noite eu não poderia repassar todo o meu conhecimento, mas ficava feliz de está-lo ensinando). Raj estava completamente interessado e parecia possuir uma necessidade insaciável de aprender mais a respeito do assunto. Quando terminamos, ele voltou-se em minha direção e perguntou:

      - Vamos beber alguma coisa?

      Concordei (sem saber que, no fim, seria uma péssima ideia...).

      Ele foi à cozinha e retornou trazendo consigo garrafas de vodka vagabunda e copos para nós dois. Acabei aceitando a bebida, no entanto, à medida que íamos conversando, ingeríamos doses e mais doses de álcool. O resultado disso? Bem, não foi dos melhores...

      - Eu queria voar e... alcançar as algas do mar... – disse frases completamente sem sentido. – Ver as estrelas da terra e as pessoas que estão no céu...

      - Oh, não é céu, é espaço! – rebateu Raj também em estado de profunda insanidade. – As pessoas moram no espaço!

      - Sabia que eu já quis ju... não, chutar suas partes íntimas porque você era um porra de um filho da puta que vivia me perturbando, raptando, ameaçando-me de morte...? E agora estamos aqui dividindo garrafas de vodka! Há-há. Somos companheiros do mar... Somos companheiros da noite obscura e de sol branco...

      Raj começou a gargalhar e eu juntei-me a ele sem lembrar o que estava achando hilariante.

      - E sabia que eu queria te desfigurar porque você se parece comigo? – perguntou ele, embaralhando as palavras.

      - Desfigurar... Desfigurar... E isso é bom? Há-há. Palavra bonita... – Comecei a gargalhar novamente.

      - Do que eu estava falando? – Raj também voltou a rir.

      Por volta das três da manhã, Julia apareceu diante de nós e levou seu namorado, o qual se encontrava em estados deploráveis (assim como eu) embora antes que ele ficasse ainda mais louco. Deixando-me sozinho com Yuki naquele quarto.

      - Três da manhã? – disse a Yuki. – Ainda é tarde para dormir, gosto de dormir cedo, quando o dia amanhece! Esse sim é o horário de ir dormir! – Gargalhei.

      Contudo, mal terminei minha fala e desabei, exausto, sobre a cama, fazendo o irritante rangido, o qual não foi empecilho para que eu logo adormecesse.

Despertei com uma tremenda dor de cabeça e enjoo (ressaca). Percebi que minha gata estava ao meu lado utilizando suas patas com o intuito de brincar com os restos daquilo que se parecia com um cadáver de gafanhoto (já completamente destroçado). Pensei que seria melhor caso ela o fizesse no chão e não acima de minha cama. Levantei-me com dificuldade e cambaleei até o espelho preso à porta do armário. Minha face estava péssima e meu cabeço estava exatamente como uma juba de leão. Sacudi a cabeça como um cachorro molhado para melhorar um pouco a situação. Até que funcionou, os fios negros continuaram desgrenhados, mas não tanto.

      Eu desejava dormir mais, contudo, eu não consegui e já era quase três da tarde. Rumei à cozinha com a finalidade de saciar minhas necessidades básicas. Raj já estava fazendo seu desjejum quando eu adentrei ao recinto. Cumprimentamo-nos como de costume, então eu disse:

      - Raj, por que você me fez beber? Sempre quando o faço, acabo exagerando e muito, desse modo, acordo com uma terrível ressaca. Eu sou alcoólatra...

      - De fato, bebemos demais, no entanto, eu não pude impedi-lo. Até que não é tão ruim, estávamos precisando de um pouco de loucura, de um momento para falarmos bobeiras e coisas sem sentido. Vivemos muito atolados com essa história de Yasuo, acho que isso pode nos destruir.

      - Sim. Eu também acho, mas já estou morrendo devido à ressaca... – respondi. – Enfim, a culpa foi minha e eu preciso arcar com as consequências.

      Preparei meu desjejum e assentei-me à mesa, mas não consegui digerir os alimentos antes de colocar tudo novamente para fora. Aquilo não era nada bom, sentia-me péssimo e meu estômago revirava-se. Ingeri muita água e permaneci na inércia em minha cama, aquele não era um dia propício às investigações. Peguei apenas um dos livros dos quais Amber havia deixado para que eu analisasse (seria o máximo que conseguiria para coletar informações).

      Folheei novamente passando ligeiramente os olhos pelas informações ali contidas, memorizando algumas delas. Pensei que não havia nada a respeito de Yasuo, no entanto, algumas palavras chamaram minha atenção: um resumo sobre um ritual, o qual parecia ser capaz de selar um deus pagão. Será que funcionaria com meu pai? Será que eu conseguiria prendê-lo antes que ele pudesse retornar à vida? Era completamente descrente com relação a esses assuntos, entretanto, depois de tudo o que passei, de todas as coisas as quais derrubavam o tênue fio entre o real e a insanidade, entre o imaginário e o concreto, talvez aquilo também pudesse funcionar. No entanto, não havia nenhuma informação sobre como executá-lo. Desse modo, decidi perguntar a Raj, porém, não o encontrei em lugar algum, apenas a Julia.

      - Quando você se casar, chame-me para ser sua madrinha? – perguntou Julia ao avistar-me.

      - Hã, casamento? Eu não vou casar-me, Julia.

      - Eu sei, apenas estou brincando. Mas, sua namorada é bem legal, conversamos um pouco quando ela viera fazer o almoço. Bem simpática.

      - Sim. Muito mais do que eu – respondi. – Não sei como ela me aguenta, sou muito chato e possuo poucos amigos...

      - Eu o acho legal. E fico feliz por você estar se empenhando para ensinar meu namorado, ele anda bem empolgado com todas as informações que consegue e sempre vem me relatar. É até engraçado. Foi Raj quem chamara sua namorada no dia em que vocês se reconciliaram. Ele indicou o caminho a ela. Ele dizia que você estava precisando de sexo.

      Um sorriso esboçou-se em meus lábios.

      - De fato eu estava e ainda estou... – Fiz uma pausa. – Ei, Ju, onde está o Raj?

      - Mandei-o ir ao mercado comprar pão.

      - Ah. Mas ele não está ruim da ressaca?

      - Não tanto quanto você parece estar...

      - Obrigado. – Realmente eu havia bebido mais do que meu irmão e minha expressão acaba denunciava tal fato. – Ju, posso te fazer uma pergunta? – Ela anuiu, desse modo, eu prossegui: - Você acha que um ritual para selar um deus pagão funcionaria?

      - Pergunta difícil essa sua... – Ela encolheu os ombros. – Como vou saber? Onde você viu isso?

      - Bem, Amber deixara-me uns livros sobre lendas antigas, nos quais eu poderia utilizar para pesquisar. Em um deles, eu li algo parecido e pensei que se for mesmo verdade, poderá ser a solução para os meus problemas – expliquei. – Desse modo, eu poderia retornar à minha vida e vocês não teriam de aturar-me mais.

      - Ai, quem dera... Você é muito chato, Jimmy! Queria me livrar de você logo!

      - Poxa, Ju...

      - Brincadeira, bobinho. Como eu disse, você é legal.

      - Obrigado. – Então, mudando drasticamente o assunto, eu disse: - Não estou me sentindo muito bem hoje...

      - Isso se chama ressaca... – Julia sorriu. – É melhor você ir descansar, Jimmy.

      - É. Talvez.

      Retornei ao meu quarto e deixei meu corpo cair pesadamente sobre a cama velha a qual rangia de modo irritante, no entanto, aquilo não fora uma boa ideia, pois senti meu estômago revirar-se. Não era apenas ressaca, eu também me sentia melancólico, como se existisse um grande vazio dentro de mim. Às vezes ficava em dúvida a respeito de meus objetivos. Pensava em retornar à minha casa, rever minha mãe e minha irmã, mas, e após isso? Retornar à escola? Não possuía nem mais meus amigos, eles não irão mais encarar-me. Eu não sou capaz de manter amizades, elas sempre sofriam eventuais abalos e eu voltava ao meu estado de lobo solitário. Eu ainda tinha Amber, porém até quando ia durar? Também não possuía habilidade para manter relacionamentos amorosos. Raj e Julia são legais, mas sinto-me como um irritante morando aqui, um incômodo. Jan é um louco que só fala coisas sem nexo. Os novos aliados ainda me são um bando de estranhos e Judith ficava tentando seduzir-me descaradamente (tudo bem, ela é gostosa, mas eu já tenho minha namorada...). Senti-me como um solitário, sem rumo, vazio interiormente.

      Porém, eu sabia que não poderia deixar esses momentos de crises existenciais e melancólicas subjugarem minha vontade. Eu sei bem o que quero e não entendia o motivo pelo qual ainda duvidava. Talvez pelo fato de perguntas fazerem-me refletir, o que era muito bom, eu necessitava daqueles instantes de indecisões apenas dedicados à minha mente e a uma visão geral de minha vida e de minhas escolhas. Um dia, talvez, eu até estivesse disposto a desistir de minha existência, entretanto, esse dia está bem distante, pois ainda faltavam-me muitos desafios a serem superados e concluir tudo aquilo que desejava em vida. Enquanto houver objetivos, minha existência continuava atribuída a um sentido.

      Posicionei-me de modo que eu pudesse meditar, aliviei meus músculos rígidos, respirei profundamente e comecei a distanciar-me de tudo ao meu redor, ir para longe até mesmo de meu eu superficial apenas com a finalidade de alcançar meu interior distante.

      Quando terminei minha meditação, senti uma súbita vontade de estudar Geografia (às vezes possuía uns estranhos impulsos. Sendo essa uma das minhas matérias favoritas, eu conseguia estudá-la tranquilamente). Assim, fui até o armário com o intuito de retirar um de meus livros da disciplina e lê-lo, fazendo algumas anotações também quando necessário.

      Quando senti minha visão já turva e cansada, voltei a guardar meu livro onde o havia retirado. E fiquei mais um tempo pensando no quanto minha vida modificou-se, há dois meses, eu ainda morava com minha mãe e minha irmã, Luke ainda estava vivo, eu ainda possuía amigos na escola e ainda era virgem (esse é o único aspecto negativo do passado). Os fatos foram piorando cada vez mais. Tive de enfrentar muitos desafios e sei que precisava vencer mais para encerrar toda esta confusão. Era como se eu estivesse carregando uma bomba da qual eu não fazia ideia da hora em que ela irá explodir.

      Como vim parar nesta loucura? Eu não estaria em um longo pesadelo? Então relembrei a história de Jan e pensei que um dia eu ficaria louco com toda essa insanidade a respeito de Yasuo. Eu não poderia deixar esse fato enlouquecer-me. Eu precisava refletir em todos os aspectos positivos, eu sei que sempre havia algum, mesmo que mínimo. E, de fato existia, era boa a minha “amizade” com meu irmão mais velho, Raj, e acho que as dificuldades enfrentadas foram importantes para o meu amadurecimento, assim como continuarão sendo e contribuindo para novas reflexões e, às vezes, até imaginava que era surreal um dia no qual eu não passava por algum tipo de perigo (estranho esse tipo de coisa, mas eu já estava acostumando-me com meu novo ritmo de vida).

      Enfim, a vida era assim, todos possuem dificuldades e o importante era vencê-las e aprender com elas e que morresse, mas sem desistir enquanto houvesse objetivos de vida, algo pelo qual lutar. Então meus pensamentos perderam-se em minha mente e desse modo, rumei ao meu banho revigorante (nem tanto porque o chuveiro era velho). Despi-me, enfiei-me abaixo do aparelho e permiti que as gotas de água caíssem sobre mim e logo senti os músculos relaxarem. Quando terminei, sequei-me e posicionei-me à frente do espelho com o intuito de fazer a barba (aquilo era bem chato, mas os pêlos já estavam ficando espessos em meu queixo e incomodava-me). Também aproveitei para diminuir o volume de meu cabelo que mais parecia uma juba de leão, deixando-o do modo como estava quando decidi morar por um período na cada de Raj.

      Após isso, voltei a encobrir meu corpo desnudo com as minhas vestes e deixei o banheiro. Encontrei-me com Raj e decidi comentar a respeito de minha descoberta. Ele escutou tudo com curiosidade e interesse, sem dizer uma palavra enquanto eu relatava, apenas quando terminei, ele encontrou-se no momento de fazer uso do léxico.

      - Eu também acho que possa ser uma solução para o nosso problema. Também faria com que nossos inimigos desistissem de perseguir-nos. Precisamos saber se esse selo será eterno ou se existe algum meio de destruí-lo, pois, caso houver, nossos inimigos não desistirão tão facilmente.

      - Pensei nisso também, mas o livro não comentava nada a respeito da duração do selo, de como quebrá-lo e, muito menos, como executá-lo.

      - Mais coisas para a lista de pesquisa.

      - Sim. Parece que a cada dia que se passa, mais perdidos e abarrotados ficamos. – Suspirei. – Enfim, mais trabalho.

      - Bem, mas, mudando de assunto, recuperou-se da ressaca? – Ele me lançou um sorriso irônico.

      - Acho que sim... – Mas antes que eu pudesse dizer alguma coisa, avistei uma faca de passar manteiga no pão vindo em minha direção. Esquivei-me agilmente, no entanto, assustado com o ocorrido. – Por que você fez isso?

      - Porque queria ver se você está apto a enfrentar nossos inimigos. – Ele fez uma pausa. – Mentira, porque você disse que queria chutar minhas partes íntimas.

      - Isso é pouco comparado ao que você queria fazer comigo: matar-me!

      - Ah, mas é passado, agora eu quero seu conhecimento.

      - Interesseiro...

      - É bom ser interesseiro, pois sempre busco por mais conhecimento.

      - Sim, olhando por esse lado... – Fiz uma pausa. – Mas isso não elimina o fato de você ser um maníaco!

      - É uma ofensa à minha pessoa!

      - Ah, fiquem quietos, eu estou tentando ler! – exigiu Julia.

      - Sim, querida – disse Raj, calando-se instantes depois.

      Contudo, o silêncio não se fez presente por muito tempo, pois um miado agudo cortou-o. Pertencia à Yuki, será que ela precisava de mim? Não pensei muito antes de sair atrás do ruído, o qual parecia vir de meu quarto. Apressei-me pelo corredor até alcançar o local. Quando o fiz, avistei o caos: os livros dos quais Amber emprestara-me estavam jogados no chão e várias suas folhas estavam soltas, rasgadas e espalhadas pelo lugar. A cama apresentava-se desarrumada, como se houvesse passado um furacão por ali.

      Avistei minha gata assentada no parapeito da janela aberta observando alguma coisa lá fora. Caminhei até ela e percebi que ela estava com alguns ferimentos superficiais, os quais manchavam seu pêlo branco e rajado de cinza com sangue. Perguntei à minha bichana ocorrido naquele local, Yuki limitou-se a miar (óbvio, ela não fala na língua humana).

      Minha gata permaneceu observando fixamente para fora, então decidi fazer o mesmo, avistei a floresta ao redor da casa e visualizei, ao longe, o mesmo que ela: o gracioso gato dourado. 


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