Sinéad: a Imperdoável escrita por Sunshine girl


Capítulo 1
Capítulo Único: Sinéad


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!!!!



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"Você não precisa nos temer, a não ser que possua um coração negro, seja um vil que ataca os inocentes.

Porque eu prometo, vocês não podem se esconder para sempre do vazio da escuridão.

Porque nós os caçaremos como os animais que vocês são, e lhes puxaremos para as diabólicas entranhas do inferno".

Mother Maiden.

Eu tenho que tentar,

Ainda não é o fim

Nenhum sinal de amor você deixou

Meu coração está sangrando apenas por você

Sangra apenas por você.

E dói saber a verdade.

Qual seria o preço da redenção?

O quanto uma alma pecaminosa teria de lutar e lutar até que todos os seus pecados fossem completamente apagados?

Às vezes, penso que jamais alcançarei essa dádiva. Nunca me ocorreu ser perdoada. Afinal, quantos anos eu tenho habitado a escuridão e caçado aqueles que como eu, um dia, cometeram erros imperdoáveis?

Eu nasci em Dublin, na Irlanda, há muitos e muitos anos, vivi lá, tinha um pai que me amava, uma filha que precisava de mim. Mas abandonei tudo isso. Abri mão de tudo isso e somente para sustentar um maldito vício.

Eu costumava rastejar pelos becos pútridos e imundos à procura de alguma maneira de alimentá-lo. De certa forma, era como uma fera indomável dentro de mim. Uma fera que não mediria esforços para ser alimentada e fortalecida e cada vez mais exigir de mim, e me consumir em um ciclo vicioso e interminável.

Meu desespero por mais e mais era tanto, que cheguei ao ponto vergonhoso de roubar de minha própria família. E em uma fatídica noite, invadi a casa de meu pai. Meu querido e amado pai, que supria minha ausência na vida de minha pequena Susie.

E naquela noite cometi o maior erro que já poderia ter cometido. Naquela noite eu assassinei o meu próprio pai.

Apenas porque queria um pouco de dinheiro, queria alimentar meu maldito vício.

Embora ele tenha tentado me convencer de que eu devia procurar ajuda, de que eu devia exercer o papel de mãe na vida da minha filha, eu não lhe dei ouvidos, e carrego até hoje comigo as conseqüências dessa minha tola decisão.

Cerca de um ano depois de ter assassinado meu pai, eu fui assassinada. Mas o fim ainda não havia chegado para mim. Não.

Porque na morte eu encontrei o meu recomeço, a minha chance de me redimir. Minha alma suja e manchada pelos pecados foi resgatada das chamas e labaredas do inferno, e a segunda chance foi-me concedida.

Desde então, tenho vivido para apenas um propósito: caçar e exterminar os pecadores, aqueles que oprimem os inocentes e puros de coração. Esse é o preço que pago para obter a minha tão almejada redenção.

Para ter a minha alma limpa e remida de meus pecados, eu devo primeiramente varrer a face da terra das almas corrompidas.

Já se passaram tantos anos, e minha esperança de construir um mundo melhor ainda queima em meu peito. Porque alguém precisa combater esse mal, alguém precisa confrontá-lo. E por que não eu? Eu, que já provei do beijo da morte, eu, que já vivi e convivi com a escuridão. Eu, que já pequei.

Escondendo-me nas sombras eu aguardo, eu os observo, aqueles que precisam ser castigados, aqueles que devem perecer e ter as suas almas carregadas e devoradas pelas entranhas do inferno.

Não me julgo uma salvadora, mas sim uma vingadora. Aquela que a de libertar os puros dos que os oprimem, aquela que lhes garantirá um futuro melhor e ajudará a construir um mundo mais seguro.

Esse é o meu dever e o meu caminho.

Meu nome é Sinéad, Sinéad Harkin, e esta é a história de como me tornei uma caçadora e exterminadora, exterminadora da maldade e da corrupção.

Você está procurando por um salvador?

Perseguindo um sonho?

Mas o amor se tornou ódio?

Agora eu estou atravessando a barreira

Então me veja desaparecer,

Mas eu não estou com medo.

Os olhos azuis observaram a entrada da boate uma última vez, os seguranças envoltos em ternos escuros e óculos de lentes mais escuras ainda, pareciam durões, mas resistiriam perante ela?

Do beco sujo e malcheiroso, a ruiva furtivamente analisava a melhor maneira de eliminar seu alvo.

Ajeitou o pesado sobretudo negro, sua mão infiltrou-se, deslizando até o coldre em sua coxa, dedilhando a pistola automática preso a ele.

Umedeceu os lábios vermelhos com a ponta da língua, a excitação crescia dentro dela conforme a hora aproximava-se.

Mais uma noite agitada para a população da cidade, mais uma noite de caça para ela.

Seus cabelos ruivos tremeluziam e ardiam como as labaredas do mais intenso fogaréu, contrastando com a negritude da noite. Aqueles cabelos eram as chamas do próprio inferno, do qual ela havia sido resgatada.

O mesmo inferno para o qual ela enviaria algumas almas pecadoras em poucos minutos.

Recostou suas costas à parede do prédio decadente no subúrbio da cidade e suspirou, fitando as estrelas no céu negro, seu brilho era fosco se comparado às luzes emitidas pelos letreiros e arranha-céus daquele império de concreto e sangue inocente.

Sim, o sangue inocente clamava por vingança. Sinéad podia ouvir os gritos das almas sentenciadas à perdição por aquele ser desprezível.

E ele mal imaginava que em breve olharia nos olhos da morte e reconheceria seus pecados mais nojentos e repugnantes.

O alvo da vez era Simon Leroy.

Suas fontes lhe disseram que aquele homem agora estava no comando do tráfico na região, era um chefão do narcotráfico, além disso, jamais estava desacompanhado: seus capatazes, brutamontes que lhe acatavam todas as ordens como cães fiéis e sarnentos o acompanhavam todo o tempo.

Apenas mais almas corrompidas que ela devia enviar direto para o fogo eterno do inferno.

Ainda na semana passada, aqueles mesmos homens haviam tirado a vida de um pai de família que se recusou a colaborar com seu império de horror.

Sinéad sentia-se estranha ao lembrar da dor estampada nos olhos da menina. Algo dentro era remoído ao observar à distância as lágrimas inocentes e dolorosas da garotinha. A forma como ela debulhou-se nos braços da mãe, a forma como apertava o ursinho de pelúcia a comoveu.

Era tão parecida com sua pequena Susie...

Sinéad mordeu o lábio inferior, não era o momento certo para remoer seu passado amargo. Ela estava ali para cumprir um propósito, lutar por uma causa, salvar o mundo decadente da perdição.

Ou pelo menos, colaborar para que ele não afunde de vez.

Ela possuía coragem e determinação o suficiente para confrontar as forças do mal. Ela havia recebido a sua segunda chance através do toque da Mãe Solteira, e desde então, caçar aqueles monstros inescrupulosos tinha se tornado o seu objetivo.

Sinéad era mais uma de suas brilhantes criações, mais uma escolhida para receber o dom de retornar do mundo dos mortos e a maldição de se tornar uma caçadora noturna.

Sim, ela era uma caçadora imponente e perigosa.

Seus lábios sedutores curvaram-se em um sorriso sombrio e a espera finalmente terminou. A hora havia chegado.

No meio da noite, ela caçaria, ela faria suas presas. Com tiros na escuridão, ela eliminaria seus oponentes. Feriria-os com gelo, fogo e ferro.

E assim, estaria mais um passo próximo de sua redenção.

Seus dedos, que ainda dedilhavam o gatilho de uma de suas pistolas, recuaram e ela desencostou-se do prédio decadente, recuando da escuridão, deixando a proteção e o conforto que as penumbras noturnas lhe proporcionavam.

Caminhou de forma elegante pela calçada, como um felino prestes a dar seu bote certeiro. Atravessou becos pútridos e tenebrosos, rumando em direção à boate lotada. Seu coração acelerava no peito, ela já podia sentir a adrenalina fluindo livremente por sua corrente sanguínea.

Podia sentir seus dedos coçando, seus membros enrijecendo, ela sempre se sentia assim antes de caçar.

E hoje, a noite seria do caçador. Ah, e como seria.

Apressando-se, ela finalmente alcançou seu objetivo, sentindo a música dançante que sacolejava a estrutura do prédio preencher seus ouvidos, o cheiro de cigarros e álcool preencher suas narinas e aquela sensação poderosa novamente apoderou-se dela.

Sinéad estacou diante dos dois seguranças da boate, por trás das lentes escuras de seus óculos, eles a analisavam, registrando cada detalhe como o sobretudo negro e pesado, a calça jeans puída, a blusa branca agarrada ao seu corpo, deixando seu ventre liso à mostra, os cabelos vermelhos como fogo, vermelhos como sangue, e os olhos azuis e cintilantes.

Um deles descruzou os braços e estendeu a mão enorme e carnuda, a palma voltada para cima, esperando que ela lhe entregasse o convite.

Cuidadosamente, a mão delicada da ruiva escorregou casaco adentro, e segundos depois ela depositava o pequeno convite na mão carnuda do segurança.

Ele encarou o pequeno cartão por segundos antes que o outro sujeito mal encarado aproximasse-se da figura esguia da ruiva, postando-se atrás dela a fim de revistá-la.

Sinéad nada esboçou quando as mãos do homem começaram a agir, segurando em seu casaco e abrindo-o lentamente. Um sorriso irônico vincou os lábios da moça quando o homem apalpou as pistolas em seus quadris.

E ele nem mesmo teve tempo de registrar ou assimilar os fatos. Em um momento, ele revistava a ruiva, no outro, ela girava sobre os próprios calcanhares, um giro perfeito, e então, de repente, a ponta de sua bota encontrava a face do sujeito.

Os cabelos ruivos encobriram o rosto da assassina elegante, mas ela não precisava de seus olhos para saber que o outro segurança agora investia contra si, seu sexto sentido a alertou.

Os braços musculosos do segurança envolveram sua cintura em um abraço férreo, tentando imobilizá-la. Sinéad agiu rapidamente, empurrou o peso do sujeito usando seu próprio corpo, fazendo-o recuar até que as costas dele batessem contra a parede da casa noturna.

Ele arfou com o impacto e foi o suficiente para ela, que girando novamente acertou-lhe um chute no abdome, retirando todo seu ar. Porém, ele ainda não havia se dado por vencido, e deteve um dos punhos da moça que estivera prestes a lhe acertar a face.

Sinéad aproveitou a deixa e golpeou-lhe o peito com uma joelhada, fazendo-o desabar, inerte, diante de seus pés.

Mais uma vez seu sexto sentido a alertou, o homem atrás de si ainda não havia desistido. Seus dedos agiram com eficiência, infiltraram-se por dentro de seu casaco longo e puxaram a pistola automática do coldre.

A ruiva girou mais uma vez, a arma apontada para a testa do sujeito, mas seu dedo hesitou no gatilho, ela não o puxou, e o segurança suou frio tendo o cano da pistola encostado à sua testa brilhante.

Sinéad sorriu antes afastar a pistola, com agilidade e manuseio perfeitamente executados, girou a pistola entre os dedos e usou-a para acertar o rosto do homem com um violento golpe, um que retirou sua consciência.

Ela ainda observou o corpo jogado desmazeladamente no asfalto de concreto, então retirou a outra pistola do coldre preso em sua coxa e deu meia-volta, dirigindo-se à entrada da badalada casa noturna onde seu verdadeiro alvo a aguardava.

Finalmente, a caçada começaria...

Oh, Sinéad,

Pela primeira vez,

O amor irá voltar

Eu estou lhe dizendo

Você vai gostar, eu sei.

Oh, Sinéad,

É a primeira vez

Só você pode libertá-lo

Oh, Sinéad

Venha e fuja comigo.

As mãos eram rápidas, ágeis, até mesmo um pouco desmazeladas, enquanto reviravam o armário, abriam potes, levantavam tampas de caixas, empurravam objetos, mas ela não encontrava o motivo de verdadeiramente estar ali.

E isso a desesperava.

Os cabelos curtos e embaraçados respigavam as gotas da chuva no assoalho de linóleo. Seu tênis puído manchava o carpete com lama e pedaços de grama.

Sinéad invadira a casa de seu pai, somente para pegar emprestadas algumas libras. Para alimentar seu vício, somente para alimentar seu maldito e desgraçado vício.

Pelo menos, até que suas mãos detiveram-se em um objeto: um porta-retrato, e nele encontrava-se uma outra versão dela. Tão vaidosa e feliz, com um sorriso largo nos lábios, as mãos sobre os ombros de uma menina de maria-chiquinha, envolta em um vestido bordado, e um homem robusto e cabelo ralo, sorrindo também.

Por alguns segundos, Sinéad permitiu-se se perder naquelas lembranças de dias tão felizes. Mas aquela sua versão não existia mais, não vivia mais e apenas deu lugar para a nova Sinéad, drogada, largada, abandonada.

Então, alguém acendeu a luz, iluminando todo o cômodo.

Sinéad sobressaltou-se, principalmente quando encontrou o semblante severo e indignado de seu pai. Suas mãos trêmulas suaram frias, e seu rosto desgastado foi tomado pelo espanto e pela vergonha.

— Pai... Pai, eu só... — ela tentou explicar-se, mas foi interrompida pela fúria tangível do pai.

— Mas que droga, Sinéad! Você já chegou a esse ponto? Roubar da sua própria família! Você não tem vergonha?

O semblante da moça enrugou-se, ela não queria confrontar o pai, mas a fera dentro de si precisava do dinheiro, precisava ser alimentada, e isso a impulsionava, isso a mantinha ali, tentando fazê-lo entender. Ele não entendia?

— Pai, sinto muito... Só preciso de um pouco, tudo bem? É só um pouco, eu juro!

Mas o semblante de seu pai não se suavizou, permaneceu rígido, indiferente ao desespero dela. Realmente, ela estava no fundo do poço. Ela havia alcançado o fundo do abismo.

— O que você precisa é de ajuda, não dinheiro! — esbravejou ele, endurecendo seus olhos negros cada vez mais e intimidando a moça de olhos azuis e cabelos ruivos.

A tristeza inundou Sinéad, varrendo-a como uma onda gigante. Por quê? Por que ele não podia entender? Sinéad tinha uma fera faminta dentro de si e precisava alimentá-la, antes que ela a dominasse, antes que ela a consumisse.

Seu rosto acabado enrugou-se pela dor, os dentes encontraram o lábio inferior, cravando-se nele e os olhos foram tomados por uma súbita umidade.

— Pai, por favor, não fique assim...

Mais uma vez, ela foi interrompida pela fúria do próprio pai:

— Assim como? Como um pai que ainda se preocupa com você?

Ela precisava convencê-lo, ela precisava acalmá-lo. Ela precisava sair dali o mais depressa possível e alimentar o monstro dentro dela.

— Pai, eu conseguirei ajuda. Eu só... preciso de um pouco...

Mas nada parecia convencê-lo, nem mesmo as palavras vazias e desconexas da moça, proferidas por lábios tão trêmulos. Estaria a verdade presente nelas?

— Como posso acreditar em você? É apenas mais uma das suas malditas mentiras!

Finalmente, a fera dentro da moça havia despertado e estava muito, muito faminta. Naquele instante, as trevas dominaram o coração de Sinéad, a raiva e o desespero a cegaram. Ela precisava do dinheiro, ela precisava agora!

Suas mãos agiram rápidas, e sacaram o revólver preso ao cós de sua calça de moletom puída, apontando-a para o seu próprio pai, a raiva agora remodelava suas feições, a tristeza e a vergonha agora substituídas por ódio e desespero.

— Cale a boca!

— Mas que droga, Sinéad! — seu pai exclamou, fitando o revólver nas mãos da filha. Ela havia chegado a aquele ponto? Ela teria coragem? O quão consumida ela já estava? O quão fundo ela já havia caído?

Ele espalmou as mãos, tentando se defender, tentando fazer com que a filha enxergasse que ele só desejava o seu bem. Mas ela estava cega, ela não via. Ela somente via o monstro dentro de si, a fera ao fundo de seus olhos azuis.

— Estou tentando apenas ajudar... — sussurrou, deixando que a ternura e o carinho pela filha falassem mais alto e suavizassem o seu semblante.

— Eu... buscarei ajuda, tudo bem? — murmurou a moça, mas eram apenas palavras vazias mais uma vez, sem qualquer intenção de algum dia serem cumpridas.

Seu pai ainda tentou uma última vez, uma última e desesperada tentativa de dissuadi-la, de tirá-la daquele mundo sombrio, de trazer de volta a sua doce e amada filha.

— Vamos, se não for por você, faça pela pequena Susie!

Finalmente, as palavras do pai haviam conseguido comover a filha. Pelo simples fato de ter mencionado o nome da pequena e adorável neta.

A raiva abandonou o semblante da ruiva, o monstro foi suprimido dentro de si, sufocado por um sentimento muito maior do que a sua ânsia por alimentar seu vício: a saudade de sua filha era tão grande...

— Susie? — ela repetiu, comovida, cheia de saudades, desejando poder envolver a filha em um abraço, afagar seus cabelos, beijar-lhe a fronte, cantar-lhe uma cantiga de ninar.

De repente, a fera havia sido posta em segundo plano.

— Como ela está? — indagou, desesperada por saber como a filha estava, quantos amigos tinha, se ela ainda dormia abraçada ao ursinho de pelúcia que ela lhe dera de presente de aniversário.

— Ela precisa de uma mãe. — sussurrou o pai, sabendo que estava tocando diretamente no coração da filha, sabendo que estava a ponto de comovê-la.

Mas o rosto de Sinéad enrugou-se pela tristeza novamente. A dor de saber que ela não podia, não seria capaz de abandonar seu monstro para sempre para ficar ao lado da filha.

— Não posso! — exclamou, sentindo a fera retornar aos seus olhos, pouco a pouco, e dominar-lhe o coração novamente, soterrá-lo em sombras.

— Sim, você pode! — insistiu o pai.

Mas Sinéad já havia tomado sua decisão e elevou o cano do revólver para o pai novamente.

— Não, é tarde demais!

De repente, ambos estacaram, cientes da menina que descia os degraus da escada, de camisola, os cabelos lisos presos na maria-chiquinha, os pezinhos descalços, e portando nas mãos o seu brinquedo favorito.

Os olhos da ruiva foram subitamente tomados pela saudade novamente, enquanto sentia os olhos da filha amada sobre si. Ah, como ela sentia falta da filha! A saudade era tamanha que esmagava seu coração.

Sinéad a fitou, o rosto esvaziando-se, até que um sorriso sincero vincou os lábios trêmulos.

— Susie, olá, querida... Vovô e eu estamos apenas conversando. Como está se saindo na escola, meu bem? Está indo bem?  — indagou, diminuindo seu tom de voz cada vez mais, e sem obter a resposta da menina, contentou-se em apenas admirá-la. Ela havia crescido tanto...

A menina levou as mãozinhas delicadas até os ouvidos, tapando-os e assentiu para a mãe, enquanto a discussão prosseguia. A mesma discussão que a havia despertado de seu sono profundo.

— Saia da minha casa! — vociferou o pai, cansado de tentar salvar a filha, com as forças todas exauridas. Ele não queria mais vê-la. Nunca mais. Sua filha havia morrido para ele. E aquela mulher diante dele, era uma completa estranha a partir de agora.

Sinéad desesperou-se. Ela queria despedir-se da filha. Ela queria matar aquela saudade esmagadora que consumia seu coração, e a fúria do pai apenas colaborava para despertar a fera indomável dentro de si.

— Por favor, eu só quero dar um beijo nela...

Mas nada parecia comover o coração duro e frio do pai. Nem mesmo suas palavras e promessas vazias, nem mesmo o desejo puro de seu coração de passar alguns momentos ao lado da filha.

— Saia da minha casa! — ordenou ele, mais uma vez.

Susie baixou a cabeça, assustada com a hostilidade do avô, mas Sinéad apenas se viu mais e mais consumida, mais e mais dominada pela fera, pelo monstro que agora rugia em seus olhos raivosos.

— Ela é minha filha!

— Saia da droga da minha casa!

E então, ele lançou-se em sua direção. Ele investiu, ele avançou, e correu para os braços da morte.

Sinéad não hesitou, seus dedos não vacilaram. E ela disparou, uma, duas, três vezes. O pai ainda teve forças para abraçá-la, para envolvê-la em um último abraço, manchá-la com seu sangue.

E depois, seu corpo desabou no carpete, imóvel, o sangue escorrendo das perfurações. Os olhos vagos e vidrados, arregalados.

Os dedos entorpecidos de Sinéad ainda permitiram deixar que o revólver escorregasse de sua mão e quicasse no assoalho, o som de ser culpada e o som de ter cometido um ato imperdoável preencheu seus ouvidos.

Naquela noite, ela autocondenou-se. Naquela noite, ela deixou que a fera dentro de si ganhasse e perdeu-se para sempre no caminho das trevas, no caminho das sombras.

Naquela noite, a alma de Sinéad recebeu a marca de sua condenação...

Esta segunda chance não vai durar para sempre

Mas tubo bem,

Não tenho ressentimentos,

E eu sinto o fim bem aqui

Eu sou uma tola,

Chegando mais perto.

Mas eu estou fazendo o que deveria,

Eu estava mergulhada em tristeza

Perseguindo o amanhã,

Que foge de mim.

O ambiente dentro da casa noturna era ainda mais excitante para ela. Não que a música dançante surtisse algum efeito sobre seus membros, não que o cheiro de cigarros e bebidas alcoólicas despertassem algo nela.

Mas somente pelo fato dela estar cada vez mais próxima de seu objetivo, algo dentro dela pulsava, algo dentro dela libertava-se.

Ela observava com desdém os corpos suados movendo-se de forma sensual na pista de dança, os drinques sendo servidos e pessoas conversando e rindo alto.

Cruzou as pistolas nas costas e caminhou por entre a multidão, ziguezagueando por entre as pessoas, como uma leoa se camufla na savana, Sinéad misturava-se em meio ao público, apenas esperando pela hora certa de atacar seus alvos.

Seus cabelos ruivos agora eram como chamas dançantes sobre as luzes da casa noturna e os olhos cintilavam oblíquos pela expectativa.

E então, finalmente seus olhos felinos pousaram sobre a figura por qual tanto ansiara. Simon encontrava-se assentado confortavelmente sobre um sofá, tendo a companhia de duas mulheres trajadas em roupas curtas e provocantes.

Ele bebericava o que lhe pareceu ser uísque em um copo de cristal, e prestando atenção em cada detalhe do que acontecia ali dentro, estavam seus capatazes, os brutamontes.

Mais uma vez ela umedeceu os lábios com a ponta da língua. Espreitando como uma verdadeira leoa, ela observou os semblantes endurecidos dos capatazes, Simon rindo e apalpando a coxa de uma das mulheres enquanto se divertia, como se nada pudesse atingi-lo.

Ah, como ele estava enganado.

Sinéad mirou sua pistola em seu primeiro alvo, decidiu que se divertiria um pouco com o medo de Simon. E então, seu dedo puxou o gatilho, do meio da multidão.

E acertou em cheio. A bala perfurou seu abdome, o sangue respingou no rosto de uma das moças, enquanto o brutamonte ainda tentava sacar sua pistola e procurar pela origem do tiro. Tarde demais, Sinéad puxou o gatilho novamente, atingindo-o desta vez no tórax.

O que houve depois disso foi apenas gritaria e confusão. Sinéad moveu-se rapidamente, registrando quando Simon abriu caminho por entre a multidão, buscando pela saída dos fundos da boate. Excelente, exatamente como ela previra.

Ainda correndo por entre o público alvoroçado, ela lançou seu corpo gracioso, buscando refúgio para a chuva de tiros que tentava lhe acertar.

Abaixada atrás do balcão de bebidas, ela empunhou suas pistolas, seu coração acelerava cada vez mais, bombeando o fluxo de adrenalina por todo o seu corpo, dando a ela uma sensação prazerosa e satisfatória.

A sensação de ter encurralado sua presa.

Quando os capatazes interromperam o tiroteio para recarregar suas armas, ela surgiu novamente, como uma sombra veloz e ágil, ela empunhou as pistolas e disparou contra os homens, acertando garrafas de bebidas, copos de vidro, algumas luzes da casa noturna e o globo de espelho no centro da pista de dança.

Conforme suas balas acertavam seus alvos, os corpos caíam sem vida alguma no piso lustroso, seu sangue impuro contaminando o chão, escorrendo e espelhando-se. Suas almas corrompidas gritavam por ajuda.

Tarde demais, o inferno já as tragava. Consumindo-as para as suas entranhas, afundando-as em tormento e sofrimento intermináveis.

Quando sua pistola já se encontrava descarregada, o que restara era apenas a destruição do cenário, cacos de vidro por todo o lado, a bebida misturando-se ao sangue derramado e uma Sinéad imponente e satisfeita, sem um único arranhão.

Calmamente, ela saltou o balcão de bebidas no qual se refugiara do tiroteio e caminhou em direção à porta dos fundos, para por um fim na noite de caça e estar um passo mais perto de alcançar sua redenção, um passo mais perto de ser perdoada.

Agora você está atravessando a fronteira

Você não vê um amanhã,

Mas você também não está com medo.

As portas duplas de metal do necrotério foram abertas e escancaradas de uma vez só, e entrando por elas, uma figura inusitada surgiu.

Aquela que já fora chamada de tantos e tantos nomes, aquela que já fora considerada amaldiçoada e abençoada. Aquela que se dedica a erradicar o mal através dos séculos, a Mãe Solteira.

As rodas de sua cadeira de rodas guinchavam no assoalho de linóleo, enquanto ela se apressava para chegar até seu objetivo: Sinéad Harkin, que em breve se tornaria a sua mais nova criação.

Envolta em seu vestido negro de rendas e babados e com seu cabelo grisalho preso por um coque frouxo, ela aproximou-se da mesa de autópsia, a etiqueta de papel, presa no dedão do pé do cadáver não mentia; era ela.

Sinéad... A alma que agora clamava por redenção, por salvação.

Os olhos negros da senhora encontraram o lençol branco que encobria aquele cadáver, e sua mão esquálida e enrugada não hesitou em tocar seu pulso, por cima do tecido.

Um mero toque, e mesmo assim a energia fluía através daquele lugar. Os poderes da Mãe Solteira naquele momento traziam uma condenada de volta à vida e lhe concedia a sua tão sonhada segunda chance, a sua chance de se redimir de seus pecados.

Para Sinéad seria um recomeço. Uma nova vida. Uma fraca e tênue chama de esperança de receber a dádiva do perdão pelos seus pecados.

A energia fluiu com maior intensidade pelo necrotério, e logo o cadáver da moça tremia e convulsionava sob o toque da senhora.

As demais macas presentes naquela sala foram atraídas pela força magnética, guinchando no assoalho, até que veio a explosão, e tudo foi arremessado para longe com força e violência.

Mas a Mãe Solteira não estava mais lá e apenas desapareceu, depois de dar vida a sua mais nova criação.

Sinéad levantou-se, descobrindo seu corpo úmido. Seus lábios entreabertos permitiam-se ofegar. E ela nada esboçou, nada disse, ao se levantar da única maca de pé naquele necrotério, seus pés descalços alcançarem o piso frio e ela deixar tudo para trás, aceitando seu novo destino, aceitando seu novo dever, sem relutar.

Sinéad logo desapareceu pelas portas duplas escancaradas, enquanto as luzes piscavam, lutando para permanecerem acesas...

Oh, Sinéad,

Pela primeira vez,

O amor irá voltar,

Eu estou lhe dizendo

Você vai gostar, eu sei.

Oh, Sinéad,

É a primeira vez

Só você pode libertá-lo,

Oh, Sinéad

Venha e fuja comigo.

O silêncio que sucedera o pandemônio era de fato assustador. Principalmente para o homem, que se encontrava acuado, sem saber o que fazer. Quem ou o quê estava atrás de si?

Era fato de que estava rodeado de inimigos. Mas não imaginara ser atacado justo essa noite.

Em posse de sua pistola, ele tentava se acalmar. Controlar sua respiração ofegante, seus batimentos descompassados.

Levou a mão livre até a testa suada e brilhante, limpando o suor. Recostou sua cabeça ao muro e suspirou.

Sua calmaria cessara no momento em que ouviu um ruído, passos distintos ao longe. Seus lábios tremiam e seus olhos eram vagos, nada conseguia focalizar.

A gravata o incomodava agora, sufocando-o.

Decidiu afrouxá-la e então tornou a sua pose de sentinela. Se vacilasse um segundo que fosse perderia a vida.

Concentrou-se em ouvir os ruídos, identificar de onde vinham. Descobriu, tarde demais, que eles eram oriundos da porta dos fundos da casa noturna, a qual usara agora pouco para escapar do inferno.

Com as mãos tremendo, girou a face, os olhos lutando a acompanhar seus movimentos, o suor descendo por sua face, e eis que ela surgiu diante de si: a mulher demônio, o seu carrasco, aquela que arrastaria sua alma e o entregaria pessoalmente ao inferno.

A pistola encontrava-se bem no centro de sua testa e o dedo dela parecia ansioso para apertá-lo. Ela mal via a hora de executá-lo. A ruiva sorriu para o homem apavorado, que largou a pistola no chão e levantou as mãos em sinal de rendição.

Ao fundo dos olhos de Sinéad, uma fera devoradora de pecados rugia, ensandecida e louca para devorar os deles. Eram tantos...

Simon recuou, ainda suando, vendo-se acuado e sem saída. A ruiva o acompanhou, tocando-lhe a testa com o cano de sua pistola.

— Qual o problema, Simon, tem medo do inferno?

O homem escancarou seus lábios, ciente do fim estar cada vez mais próximo.

— Que-quem é você?

Sinéad tombou a face irônica, seus olhos azuis dançavam exultantes diante do temor de Simon. Um sorriso demoníaco vincou seus lábios avermelhados.

— Sou seu carrasco. Vim levar a sua alma pecadora.

— Na-não... Não faça isso... Deixe-me ir, por favor, eu lhe peço...

Franzindo os lábios, ela desaprovou a atitude do tolo homem pecador.

— Ora, Simon, anime-se, o inferno não é tão ruim assim.

Recostando-se à parede e espalmando suas mãos sobre ela, o homem buscou refúgio da ira da ruiva, seus olhos mal desgrudavam da pistola apontada para o centro de sua testa, e ainda assim quando o faziam encontravam o vazio desolador nos olhos irônicos de Sinéad.

— Co-como você pode saber?

Sinéad mordeu o lábio inferior, o dedo exercendo uma mínima e quase imperceptível pressão no gatilho da pistola. Tombou a face para o lado, desviando os olhos azuis do rosto amedrontado do homem.

E quando finalmente tornou a fitá-lo, estava mais obstinada e determinada do que nunca.

— Porque eu já estive lá.

Foi o que bastou para que o medo do homem lhe consumisse o coração e alma corrompidos, e sem pensar duas vezes, girou o tronco, desejando que seus pés somente lhe obedecessem e ele pudesse fugir o mais depressa possível.

A ruiva sacudiu a cabeça, tolo homem.

Mirou sua pistola em sua perna direita, acertando-a em cheiro, derrubando-o no chão. Mesmo assim, Simon tentou rastejar-se pelo beco escuro e malcheiroso, gemendo e afundando em agonia, desesperançado de conseguir escapar de seu anjo da morte, seu carrasco, como ela mesma dissera.

Em passos lentos e suaves como o vento, Sinéad aproximou-se da figura que se arrastava pelo concreto como um decrépito animal.

Sem esboçar nenhuma emoção, mirou sua pistola na cabeça do homem, os olhos azuis endureceram abruptamente, tornando-se tão opacos quanto vidro.

— Hora de pagar por seus pecados, Simon.

E dizendo isso, seu dedo puxou o gatilho mais uma vez, disparando a arma, esguichando sangue, levando a vida, presenteando a morte com mais uma alma corrompida.

Seu sangue impuro escorreu pelo beco até os pés da ruiva, que encarou a poça que se formava ainda sem esboçar reação alguma. Porque agora que a caçada terminara, ela sabia que teria de recomeçar tudo de novo. Outro alvo, outra alma a ser arrastada para o inferno por ela.

Rapidamente devolveu as pistolas ao seu coldre, incapaz de demover os olhos da poça vermelha e brilhante, poça esta que lhe refletia o semblante belo e letal.

Despertou apenas quando sentiu aquela presença perto de si. Com um sorriso no canto dos lábios, elevou seus olhos para cima, encontrando o primeiro deles, os outros dois deviam ocultar-se nas densas sombras.

O garoto estava grudado à parede lateral do prédio e a fitava com um sorriso maroto nos lábios pequenos, o torso magricelo descoberto:

— Belo trabalho, Sinéad. — murmurou, observando-a de cima e a ruiva viu quando os outros dois decidiram recuar das sombras para se juntar ao primeiro.

Trigêmeos. Ou nem tanto, um deles representava o seu yin e o outro o yang. Todos trazidos à tona quando a Mãe solteira tocou-lhe o caixão.

Um dos garotos abriu um largo sorriso para ela, enquanto o outro se mantinha mais atrás, mais calado e retraído.

A ruiva assentiu para o trio, depois baixou os olhos, ciente dos garotos escalando a parede, retornando para as sombras. Isso significava que ela deveria retornar também. Agora que seu alvo já havia sido eliminado, a caça terminara. Pelo menos por enquanto...

Afinal, a redenção para uma Imperdoável não era nada fácil de se conquistar. Ao menos, ela não estava sozinha nessa longa e fatigante jornada de combate incessante contra as forças do mal.

Porque enquanto houvesse maldade e opressão nesse mundo, ela estaria à espreita. Das sombras ela observaria, e apenas aguardaria pelo momento certo de atacar e eliminar esse mal, definitiva e irremediavelmente.


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Notas finais do capítulo

Reviews???

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Beijinhos!!!!