Um dia antes, a garota estava em sua sala, com a mesa de frente para a parede. A sala era pequena, mas abrigava todo tipo de tralha e caixas cheias de papeis. Não entendia como papeis importantes ficavam entulhados em caixas que ninguém abria.

Acabara de receber alguns memorandos para preencher. Conforme o tempo passava, as paredes se comprimiam deixando o já pequeno cômodo ainda menor. As letras do documento começaram a dançar. Elas formavam palavras feias e ofensivas à garota. Os objetos sem utilidade da mesa desorganizada tomavam formas distorcidas.

O porta-retrato sem foto ficou maior e mais reluzente. Ela olhou para seu reflexo e notara como estava diferente. A pele seca, os olhos opacos, as profundas olheiras e sua expressão vazia. Era uma figura sem vida. Se perguntou em que momento se tornara uma caricatura da morte. Sim, ela morrera e não havia ao menos notado.

O chão começou a tremer. Estava começando novamente. No início, ela ficava apavorada e chorava toda vez que aquilo acabava. Agora, era como assistir um filme de terror no qual era a protagonista.

A cadeira onde estava sentada começou afundar no piso. Suas pernas e braços foram atados por pesadas correntes. Ela gritaria se pudesse. A pressão em sua cabeça era forte. Os ruídos eram ensurdecedores. Garras em forma de sombras rasgavam seu estômago e dilaceravam suas entranhas. Sua respiração era pesada e difícil. Fechou os olhos para não ver o sangue. Tremia como se estivesse nua num frigorífico. Começou a ouvir seus próprios gritos ao longe. Eram desesperados e chorosos. Eram gritos antigos, do tempo que se permitia perder o controle.

O telefone tocou. Abriu os olhos e atendeu-o. Respirava com dificuldade e ainda tremia, mas tudo havia voltado ao normal. Procurou sua voz no fundo da garganta e disse alô.

Para Deus.

Imagino que o senhor exista, mas não sinto que isso seja verdade. Sei que nossas almas saíram de algum lugar, mas não me sinto parte desse pensamento. Não acredito que exista um reino em que as coisas sejam perfeitas e bonitas. Talvez ele só exista nos sonhos daqueles que ainda possuem esperança

Sei que não faço parte da parcela que te venera, mas eu precisava conversar com alguém. E conversar com alguém que inexiste é tão prático quanto procurar petróleo com uma colher. Eu só tenho uma colher, mesmo assim isso é melhor que nada.

Eu não compreendo muitas coisas. Não me entendo e não entendo as coisas à minha volta. Mas não precisa me dar conselhos nem dizer palavras bonitas. Eu não irei compreendê-las. Não é como se eu não as quisesse. É só que eu desisti de tentar. Isso me torna fraca e desprezível. Mas a verdade é que estou apenas cansada. Do quê, eu não sei. È como se o mundo sugasse minhas forças e depois despejasse todo o lixo nas minhas costas.

Eu sei que poderia ser alguém, mas eu não consegui ser nada. Eu sei de várias coisas, mas elas não fazem sentido, pois não as sinto.

Para Morte.

Você é a solução? Ou apenas uma espécie de fuga? Se for este ultimo, deve ser um tipo de fuga eficiente, não.

Não entendo como as pessoas têm medo da senhora. Por que ter medo do inevitável?

Da última vez, recusei o calor dos seus braços para mais uma tentativa de sobreviver. Mas eu não sou forte como esperava. Não consigo mais tentar viver de um modo menos doloroso. Por que temos que vivenciar a dor até não mais agüentar? Sei que a senhora não me responderá essas perguntas. Ao menos não agora. Porque a senhora é muito ocupada, eu sei. Mas no momento certo, talvez, você tenha que vir para me buscar.

Saiba que não é nada que tenha que se preocupar. É bom eu deixar as coisas organizadas para minha partida. Você virá em minha despedida? Acho que não, só depois, quando for me acolher.

Deixarei minhas lágrimas já esquecidas, meus gritos abafados pelo barulho da cidade, meus sentimentos comprimidos pela ética da sociedade.

Nos veremos em breve.