Alterego escrita por Gavrilo, Drablaze


Capítulo 12
Capítulo 12




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Os dois andarilhos — ou deveria dizer um só, já que apenas Daisuke estava de fato andando — tomavam seu rumo pelo deserto naquela gélida noite. Desde a grande catástrofe 100 anos atrás, ficou extremamente difícil organizar metodicamente os diferentes ecossistemas e biomas do mundo. De fato, a nomenclatura "ecossistema" era quase inexistente, à medida que a paisagem podia variar a cada quilômetro.

Mas não era isso que incomodava o garoto. Não, há tempos já se acostumara aos caprichos do mundo selvagem e teve certeza de tomar os devidos cuidados de antemão. O problema era o objeto alienígena em suas costas. Estava longe de ser desagradável, e isso o perturbava; nunca imaginou, e tentou nem cogitar, que o corpo de Natt pudesse ser tão leve, macio, quente e...

"No que diabos estou pensando em uma situação como esta?", censurou a si próprio Daisuke, cortando a corrente de reflexões indesejada. O contrato entre ele e Natt Synd era pura e simplesmente de parceria momentânea, até que chegasse o momento no qual suas ideologias os fizessem tomar rumos distintos. Quando isso acontecesse, ambos deveriam estar preparados para o pior.

Podia ser apenas uma desculpa conveniente para espantar pensamentos impróprios, mas estava ótimo assim. Era o único modo de se concentrar nas coisas que realmente importavam, e no momento precisavam de um lugar para descansar durante a noite. Com isso resolvido, Daisuke armou um campo improvisado a partir de um dispositivo em sua mochila.

Era algo como uma cápsula média, que quando arremessada se transformou em pleno ar em duas barracas e um pouco de lenha pronta para uma fogueira, como mágica. O princípio de equipamentos do tipo assemelha-se ao das armas feitas com tecnologia AE, ocultas na maior parte do tempo no campo AE de seus usuários. Daisuke pôs Natt em sua barraca e se preparou para enfim terminar aquele longo dia.

Foi quando sua dor de cabeça, que tentou ignorar por um bom tempo, piorou. Sentindo uma súbita dor aguda, o garoto caiu sobre sua mochila, derrubando diversos itens na areia. Enquanto os recolhia, alguns papéis amarrotados chamaram sua atenção. Eram as tais Profecias de Gumendi. Não dispensou muito tempo nelas, mas acabou lendo de relance o que dizia uma em especial:

"Ele será atormentado pelo demônio das ilusões e será pôsto à prova pelo mundo, mas no fim triunfará, pois Ele sabe qual é o seu dever."

"Profecias?", pensou Daisuke, "Rá, está mais para uma tentativa frustrada de algum épico". Tendo cumprido sua pequena tarefa, o garoto caminhou lentamente à sua barraca. E então veio aquilo. Uma sensação desagradável à qual Daisuke estava familiarizado, mas nunca se acostumara à terrível náusea causada e os calafrios subindo por sua espinha. Era um inimigo.

Fechando os olhos como se para anular os asquerosos cheiros e ruídos, Daisuke correu rumo a uma grande rocha e lá achou seu oponente. A princípio seu bom senso rejeitou de imediato aquela figura que não pertencia à realidade, mas lembrou-se que bom senso deixara de ser importante há muito tempo. Fitando sua exata réplica, Daisuke sacou sua foice e foi prontamente copiado.

Não podia dizer o que estava acontecendo, mas com uma arma de longo alcance poderia repelir os ataques do clone sem ter que se aproximar muito e dirigir seus ataques a outro lugar. Com certeza o autor daquilo devia estar por perto, observando a situação. Por que, então, não conseguia sentir nenhum traço de campo AE?

Os dois guerreiros entraram em combate, cada um tentando desferir um golpe mortal. O golpe era bloqueado e seguia-se um feroz contra-ataque, que sofria o mesmo destino do ataque anterior e um novo ciclo prosseguia. O som das lâminas colidindo preenchia o sinistro silêncio do deserto e continuava sem sinal de um fim. De fato, não seria um exagero chamar a luta de simplesmente choques sucessivos de lâminas.

Nenhum dos dois recuava, apesar do ritmo cada vez mais intenso. Daisuke estava frustrado por não conseguir achar uma brecha entre os ataques para tentar surpreender o autor da emboscada, então decidiu alterar seu plano de ação. O clone copiava todos os seus movimentos. Se Daisuke não conseguiu ferir seu oponente, é porque ele próprio não queria ser ferido.

Sim, desde o início, para Kubo Daisuke, havia um caminho muito claro a trilhar. Devia pôr sua própria vida na linha, no mínimo. Decidido, recuou alguns metros e materializou uma magnífica espada no lugar da foice. Sendo copiado em todos os seus passos, fincou a lâmina com todas as suas forças no chão e o que se seguiu foi uma visão do inferno, erguida sobre pilares de chama saídas de algum lugar do subterrâneo.

Em meio às brasas, Daisuke permaneceu imóvel enquanto o clone se debatia em agonia e lutava por oxigênio — o que não durou muito, pois as chamas logo consumiram qualquer vestígio de vida fora Daisuke. Não foi nenhum truque. Tanto um quanto o outro tinham as mesmas chances de morrer, e apenas por sorte um sobreviveu para contar a história.

Sorte? Não, nunca houve algo do tipo. Fez-se o que devia ser feito, apenas isso. Uma coisa tão leve quanto a vida de uma pessoa não deve interferir no rumo natural das coisas, tampouco em sua missão. Se ele tivesse morrido, significa que sua vida nunca teve um significado para início de conversa. Enquanto as chamas apagavam-se e Daisuke tomava seu rumo, uma cínica voz ecoou:

— Tolo.

O garoto virou-se rapidamente, mas não havia mais nada ali. Nunca houve, aliás. Como não percebeu antes? A voz vinha dos confins de sua própria mente, querendo ou não.

— Tolo — repetiu a voz —. Você pode enganar a todos, menos a si próprio. Sabe muito bem que nada mudou, nem você nem o mundo. Continuará repetindo os mesmos erros, de novo e de novo, até sofrer uma morte sem honra.

Irritado, Daisuke desferiu um soco vertical contra seu queixo e sentiu uma desconfortável tontura por alguns instantes, mas ao menos fizera parar a voz. Felizmente, ou não, ele sabia o suficiente para afirmar que aquilo era causado por danos no cérebro resultantes do "jogo" anterior. Durante o período tinha perdido o senso de tempo, mas devia ter decorrido pelo menos algumas horas desde que suas ondas cerebrais começaram a ser manipuladas.

Mesmo após retornar à sua tenda, não, talvez nunca tivesse sequer saído de lá, a dor de cabeça e a sensação desagradável prosseguiram. Claro, o garoto sabia que ele era seu próprio inimigo. Seu oponente mais assustador. Tudo o que se precisa fazer em uma luta é defender a si próprio enquanto busca chances de atacar o rival. Então o que acontece quando o rival é a própria mente, que sabe desarmar suas defesas como ninguém? Você fica sem chão.

De fato, Daisuke se viu mergulhado em alguma espécie de abismo completamente dominado por uma escuridão desesperadora, estando à mercê da força gravitacional que o puxava para baixo. Quando a luz retornou — sim, a maldita luz —, Daisuke viu pequenos fragmentos de sua história. Sentiu-se perturbado. Não que fosse um passado muito interessante, mas tinha o direito de mantê-lo para si.

Resumo da ópera: uma criança queria ser um herói e foi derrotada pelo vilão no final. Não simplesmente derrotada como um herói propriamente dito, lutando bravamente em prol de todos, mas derrotada completamente por seus ideais. O herói morreu não como um espírito benevolente, mas como vilão. Quando o mundo é dominado pelas trevas, aquele que busca a luz só pode ser o malvado. É apenas natural.

Sim, ele sempre fora um caso excepcional. Todas as crianças de sua idade admiravam figuras heróicas e queriam salvar o mundo como faziam seus ídolos, mas poucas nutriam uma devoção tão grande a ponto de frequentarem um psicólogo por conta disso. No início ele tinha bastante afeição de seus amigos devido ao seu conhecimento de heróis, mas as coisas foram mudando.

Enquanto todos ao seu redor cresciam, adquiriam hobbies, turmas e interesses particulares, ele continuou firme em seus ideais. Sim, ficou claro que apenas por acaso gostava de estórias de heróis. Seu desejo era superar qualquer um deles; acima de ser um herói, salvar o mundo e garantir a paz tinha prioridade. Viajando no labirinto de sua mente, Daisuke encontrou um evento interessante.

Devia ter uns 11 ou 12 anos na época. Percorriam certos rumores sobre algum garoto de sua classe, mas ignorava quais fossem. "Não ouça o mal, não fale o mal, não veja o mal". Em um belo dia de primavera, chegou ao seu conhecimento que o tal colega tinha arrumado confusão com outro, então decidiu conferir o que estava acontecendo.

Surpreendeu-se ao ver que havia uma verdadeira multidão observando o "espetáculo", e a surpresa converteu-se em indignação quando ficou claro que se tratava não de uma briga ou confusão qualquer, mas um simples espancamento. Tentando parar aquilo, ameaçou contar aos professores e fez menção de sair imediatamente, mas o autor da agressão "convocou" alguns amigos para impedi-lo.

O garoto movimentou-se rapidamente e escapou por uma brecha, correndo diretamente ao centro da confusão. Sem hesitação, imobilizou o agressor contorcendo seu braço e ordenou que se desculpasse naquele instante. Apesar da resistência contínua, ele não desistiu e pôs mais força em sua imobilização.

— Ei, pare, você vai quebrar meu braço deste jeito!

— Provavelmente sim, sinto muito. Se quiser posso te ajudar depois.

Com essas poucas palavras, um crack foi ouvido por aqueles que estavam próximos o suficiente. Claro que o acontecimento repercutiu pela escola toda, porém o mais surpreendente ainda estava por vir. Foi quando ficou claro ao garoto que havia uma ruptura entre ele e a sociedade.

Ele era curioso em muitos aspectos. Não foi tomado pela ira, como se notou pelas suas palavras antes de quebrar o braço do outro; não tinha o cinismo de um pequeno sociopata, pois sabia que como bom cidadão devia ter agido diferente; não era um tolo inconsequente porque sabia como o agressor teria alguma dor e dificuldades a partir de então, e de fato sentia muito. Apesar de tudo, não se arrependia.

Um herói é um defensor da justiça, e portanto apenas captura os vilões para que esta os puna adequadamente. Mas o garoto sabia que a justiça tinha seus limites. Mesmo punindo o agressor, não podia ignorar o fato de muitos colegas não apenas permitirem a agressão como a incentivarem. E se são assim é porque foram criados em uma sociedade corrompida, então precisava dar um "choque" a ela com alguma punição exemplar.

Nota-se que, embora ingenuamente, o que ele realmente queria derrotar era o mal maior, aquele que atormentava a humanidade. Eis o motivo de sua derrota: queria salvar o mundo, mas este não queria ser salvo. Não era nem questão de ser algo impossível, mas não era uma tarefa para heróis. Um herói só é um herói quando o mundo aprova de suas ações; do contrário não passa de um vilão.

No final das contas, ele fez as pazes com a sociedade e tornou-se um sujeito ordinário. Para ter certeza que não se desviaria novamente, adotou a mediocridade como uma máxima. Aurea mediocritas. Fazia apenas o mínimo necessário de qualquer coisa e se contentava com a perspectiva de um emprego estável em um escritório qualquer.

Entretanto, apesar de muitos adultos discordarem, os ideais de uma criança são fortes o suficiente para deixar reminiscências pelo resto da vida. Por esse motivo Daisuke acabou descobrindo uma afinidade com o excêntrico Masaru, que era tudo menos medíocre. Talvez fosse uma tentativa de afirmar que não estava preso aos padrões da sociedade, mas ele não se importava com nada disso.

Imagine um deserto extremamente árido e sem vida, onde em um minúsculo ponto encontra-se um copo d'água preenchido pela metade. O otimista se alegraria em ver um copo meio cheio, enquanto o pessimista acharia que não aguentaria o resto da jornada com um copo meio vazio. Masaru era o tipo de cara que jogaria a água fora para incrementar o desafio.

Outro modo de entender Masaru é imaginar alguém dando a volta ao mundo para provar que a Terra é redonda. Enfim, ele não se importava com o caminho mais fácil nem com as consequências, apenas almejava o mais divertido e desafiador. Então, apesar de passar bastante tempo lendo e estudando, podia-se dizer que ele era um verdadeiro hedonista afinal.

Daisuke conseguia aturar os diversos problemas causados por seu amigo por isso. Sentia-se em um mundo novo e imprevisível, no qual podia expressar-se como quisesse sem ser julgado. De fato, Masaru ficou sinceramente fascinado quando perguntou a Daisuke sobre que tipo de super-herói seria o mais forte e ele revelou alguns de seus ideais.

— Eu nunca tinha pensado nisso, mas... — comentou Masaru, surpreso — não tenho certeza se responde à minha pergunta. Por que esse super-herói seria mais forte do que todos os outros?

— Não se preocupe com a minha opinião, até porque não sei muito sobre super-heróis. Mas sei que um grande herói precisa ser um grande guerreiro.

Guerreiros não são pessoas que lutam; são as que vencem. O melhor guerreiro é aquele que vence suas batalhas sem mover um músculo sequer, e apenas este tipo de herói pode ser o mais forte, portanto. Assim sempre pensou Daisuke.

— Por exemplo — prosseguiu Daisuke —, está acontecendo uma série de roubos a bancos por gangues diferentes e você tem habilidades mais do que suficientes para derrotar uma gangue inteira, mas as operações são muito eficientes e terminam rapidamente. O que você faz?

— Bem, se eu conseguir deter alguns a tempo de forma eficiente, eventualmente os outros ficarão assustados e terminarão suas atividades. Só preciso analisar os dados e monitorar os bancos com a maior chance de sofrerem um roubo.

— É o que um bom herói faria, mas não O herói. Ele não precisa sequer chegar a tempo, basta encontrar os responsáveis por um roubo eventualmente e aprender como eles agem. A partir daí só precisa instruir os responsáveis pela segurança nos bancos a dificultar os procedimentos adotados pelos bandidos.

— Verdade, a longo prazo parece a melhor solução. O herói não se expõe desnecessariamente e faz a população salvar a si mesma. Mas essa atitude não é um tanto... anti-heróica? Basicamente ele não seria nada mais do que um auxiliar nesse caso, e não acho que teria o reconhecimento merecido.

— Aí está a diferença fundamental. É por isto que heróis muito idealistas precisam ser constantemente protegidos pelo seu autor na ficção: estão mais preocupados em ser bons lutadores, com bom status entre os cidadãos, do que vencer as batalhas como guerreiros. Não nego que tenham boas intenções, mas boas intenções não impedem bandidos.

Sim, Daisuke já havia percebido isso. Podia ser um tolo por acreditar que é possível salvar um mundo corrompido, mas continuaria firme em seus ideais mesmo que todos discordassem dele. Nunca foi questão de ser herói, vilão, anti-herói, bom ou mau. Se tivesse que ser chamado de vilão e conseguisse salvar o mundo, seria um pequeno preço a pagar.

Desse dia em diante, Masaru começou o que chamava de "projeto Daisuke", um plano para tornar Daisuke o mais forte dos heróis. O próprio Daisuke nunca entendeu ao certo o que ele pretendia com isso, nem o que era de fato o plano, mas ficou feliz por ter ao menos uma pessoa que o aceitasse. E então tudo foi tirado dele. Masaru, heróis, projeto Daisuke, sua família, seus ideais...

... Não, não seus ideais. O herói Daisuke é seu verdadeiro alterego, e ninguém poderia mudar esse fato. Não importa se vingança é um pretexto para salvar o mundo ou se salvar o mundo é um pretexto para se vingar. Derrotaria a Aliança e enfim salvaria o mundo, porque esse era o seu dever. Percebendo isso, Daisuke foi "puxado" de volta ao mundo dos humanos.

Acordou sem muita disposição física, mas espiritualmente revigorado. De qualquer forma, precisava acordar Natt e... Por que estava sentado em cima de um cacto? Falando em Natt, esta encontrava-se bem ao seu lado, sinceramente tentando conter uma gargalhada. Usando toda a sua força de vontade, livrou-se dos espinhos e tentou retomar o controle da situação. Em vão. Ninguém leva a sério um sujeito que dorme em cima de um cacto.

Durante o caminho à próxima cidade, Daisuke mexeu em seu bolso e deu uma olhada em outro papel.

"Ele será perfurado pelas agulhas do destino, mas sua armadura espiritual o impedirá de ter um furo sequer em seu espírito."

Malditas profecias.


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