Batendo nas Portas do Inferno escrita por KAlexander


Capítulo 10
Capítulo 5 - Ilusão Negra (Parte 1)




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A brisa resfriando minha pele. A lua me cobrindo com sua costumeira apatia, inserida naquele infinito azul sedutor. Esta era a minha definição de paz. E paz era a única sensação que eu permitia que me dominasse naquele momento. Naqueles dias, para ser mais exato...

Após aquela noite, a maravilhosa noite do festim com que Christian havia me presenteado, diga-se de passagem, todos os pesos que se faziam presentes em minhas costas saturadas haviam sido retirados milagrosamente. Meu espírito estava leve, livre para agir imprudentemente mais uma vez. Entretanto, de todos os privilégios adquiridos com a expulsão da inanição, o mais importante era aquele. Estar livre novamente. Livre da dor, da confusão, do desespero e, especialmente, do cárcere emocional que Sophia havia me dado como presente de boas-vindas. Eu havia me desprendido daquelas correntes nocivas que sufocavam e envenenavam meu corpo e alma.

E lá estava eu, esquecido do mundo, literalmente largado no telhado de minha casa, meu lugar predileto para simplesmente aproveitar meus momentos de tranqüilidade. Sem arrependimentos...

Eu me lembrava de minhas vítimas, da morte encarnada em cada expressão de extenuamento. Era um fato. Entretanto, não havia culpa. Eu queria acreditar que eram apenas vestígios do monstro que eu libertara, mas ele não estava mais a solta. Aquele era eu. Não estava certo sobre o motivo de minha surpresa, afinal, eu nunca me encaixara no perfil de criatura melancólica. Sentia por minhas vítimas inocentes, que não compunham a maioria de meus assassinatos, mas jamais me repreendia por tirar-lhes a vida. Era necessário e, em hipótese alguma, eu poderia renegar minha verdadeira natureza.

De qualquer modo, aquela calmaria que a ausência da inanição que a luxúria desenfreada, a não mais existente fome libertina, me proporcionara uma racionalidade extrema. Bem, se é que eu poderia chamar aquilo de racionalidade. Eu estava, mais uma vez, disposto a procurar Sousuke. E Sophia... Não me importaria com ela. Não mais. Eu enfrentaria suas ameaças. Eu arcaria com as conseqüências... Eu não seria mais seu escravo conformado, pronto a satisfazer seus caprichos de criança contrariada.

Minha consciência não me permitia esquecer as seqüelas que eu infligira àquela criatura que me dedicara tanto amor, entretanto, mais que tardiamente, eu estava pronto para desfazer o erro de uma atitude instintiva da qual eu não tinha direito de me arrepender. Eu obscurecera o caminho de Sophia com as cinzas de seu coração. Um coração que um dia se entregara a mim. E eu, insensivelmente, o dilacerara, ignorando os gritos de agonia, gritos que clamavam por socorro; abafara cada eco de sua dor enquanto a luz destroçava sua alma. E o cobertor de cinzas com que eu lhe sufocara... Finalmente eu poderia arrancá-lo.

Respirei fundo, sentindo o ar frio resfriar o interior de meu corpo cadenciadamente. Os tijolos do telhado sob os músculos de minhas costas não eram dos mais confortáveis, mas eu ignorava aquele incomodo. Eu estava ali havia pouco mais de duas horas, calculei. Naquela posição vertical em que eu me encontrava o céu se tornava um espetáculo à parte para meus olhos noturnos, mesmo que o seu azul estivesse quase completamente encoberto por nuvens arroxeadas. O vento que assolava constantemente era úmido, de um cheiro sutil que eu sabia reconhecer muito bem. Chuva.

Um segundo mais tarde ouvi passos no sótão logo abaixo de mim e, em seguida, com minha visão periférica, notei um vulto se esgueirando pela clarabóia. Ele nada disse, apenas se acomodou exatamente na mesma posição em que eu estava; senti os fios de seu cabelo tocarem os meus quando ele se deitou. Permaneceu em um silêncio pensativo, provavelmente observando a mesma paisagem que eu – não podia ter certeza, pois não podia vê-lo - por alguns minutos. Somente escutei sua respiração ritmada e os batimentos suaves de seu coração, como se quisesse ter certeza da veracidade de sua presença.

– Cloud – Christian me chamou algum tempo depois, a voz pensativa.

– Sim?

– Está pretendendo ser astrólogo?

Eu soltei um riso curto, revirando os olhos antes de lembrar que ele não poderia ver meu gesto. Ele permaneceu em silêncio, obviamente esperando por uma resposta. Suspirei antes de finalmente responder:

– Não Christian, não estou.

– Então por que diabo está deitado há quase três horas olhando o céu? – Ele indagou, seu tom pacífico em nada combinando com suas palavras. – O garoto está lá, por algum acaso?

Não era necessário dizer seu nome para que eu soubesse a quem ele estava se referindo. A expressão doce e ingênua de Sousuke brotou em minha mente; seus olhos meigos e, ainda assim, preenchidos por uma personalidade indizível para mim fizeram os cantos de meus lábios se arquearem num sorriso suave.

Era quase cômico como Christian sabia exatamente o que se passava em minha mente. Ele me surpreendia constantemente, provando o quanto me conhecia de um modo extremamente perspicaz. Era fácil se enganar com aquela sua pose insolente e zombeteira. Contudo, por trás daquela casca petulante e indolente, havia uma personalidade inexplicavelmente perceptiva. E eu não era capaz de esconder meus sentimentos de seus olhos vigilantes.

– Achei que já houvesse se decidido sobre o que fazer – ele comentou vendo que eu permanecia calado.

– E achou certo. Aliás, parte dessa decisão se deve a você. – Disse eu, as imagens do festim aflorando abruptamente. Lindas imagens...

– Eu sei! – ouvi o sorriso descarado em sua voz quando afirmou com sua modéstia clássica. – Você não sobreviveria sem mim Cloud. Não sei como permaneceu vivo durante quase meio século! É de se surpreender que nenhum de nossos queridos semelhantes não tenha tentado lhe matar simplesmente por não ter gostado de sua cara. Eles fazem isso frequentemente, sabia? – Perguntou ele, como se estivesse falando com uma criança excepcionalmente obtusa.

Eu sempre ignorava seus comentários infundados, mas aquele, em especial, apesar de ter um tom completamente descontraído, estimulou algo sensível em minha mente. Afinal, eu não passara meio século completamente ileso. E sim, havia um imortal que, ultimamente, não simpatizava mais minha pessoa. Além do mais, se eu considerasse as ameaças de Sophia, eu deveria, de fato, temer por minha vida – ou o que restava dela.

Afastei aqueles pensamentos bizarros quando Christian voltou a tagarelar.

– Sabe, Cloud, eu realmente tento compreender o seu senso de diversão, mas quando o encontro desse jeito, olhando para o céu como um filósofo grego senil, você me faz desistir de meus esforços. – Ponderou ele, como se estivesse discutindo uma questão de extrema importância.

Ele estava tentando me aborrecer. E, como sempre, estava conseguindo. Eu verdadeiramente amava Christian, não havia dúvidas sobre isto, porém, às vezes, eu tinha a sensação de que ele era um fardo que eu tinha de carregar pelo resto de minha eternidade por todos os meus pecados como imortal.

E, para não ter de continuar ouvindo seu discurso sobre eu ser uma criatura inútil e mortalmente desinteressante, me decidi por não mais adiar meus planos. A noite estava apenas começando e, de qualquer modo, eu não pretendia desperdiçá-la com minha, de acordo com Christian, atitude de velho senil. Abandonei minha posição desconfortável e fiquei de pé, sem dificuldades, naquela superfície irregular. Voltei minha atenção para as casas intermináveis até onde minha vista podia alcançar antes de olhar para baixo e encontrar Christian, estirado e completamente relaxado, as mãos aninhando a cabeça, exatamente como eu estava segundos antes. Nossos olhos se encontraram e ele sorriu. Havia uma afável compreensão naquela expressão serena, algo que fazia meu coração gélido se aquecer e sorrir apenas por ter sua presença exclusivamente para mim. Eu era egoísta, mas isso não importava. Afinal, todos nós o somos não é mesmo?

Eu tive o ímpeto de abraçá-lo e dizer-lhe para ficar, para não me deixar novamente. Mas não o fiz. Ele não podia me desamparar. Ao menos não tão cedo. Eu necessitava de sua companhia. Eu o queria para mim. Assim como desejava Sousuke, com a diferença de que Christian possuía toda a força que havia me mantido em pé, firme diante de todos os meus anseios e medos que, de repente, haviam reduzido ao pó a masmorra que eu construíra ao meu redor, antes tão sólida e intransponível.

Foi quando me dei conta de que, mesmo após tanto tempo longe de Christian, agora que eu o tinha para mim, eu me tornara dependente de sua individualidade. Deus! Isto era um absurdo! Era terrível... E era uma realidade. Uma realidade que sufocou meu peito, dificultando minha respiração. Era como se houvessem mãos apertando meu coração impiedosamente, mãos venenosas e pestilentas que atingiam diretamente meu espírito. Eu tentei me livrar delas, mas era impossível... Elas eram mais fortes que eu...

Creio que a confusão daquela percepção assolou meu rosto, pois, no segundo seguinte, Christian estava de pé. Ele se aproximou de mim com cautela. Seus olhos expressaram toda a compreensão e a compaixão que eu necessitava naquele momento. Seus braços me envolveram num abraço protetor e não pareciam dispostos a me soltar tão cedo. Era cômico como nossos papéis haviam sido invertidos. Christian não parecia meu pupilo, aquele a quem eu deveria ensinar e encaminhar. Ele tomara meu lugar em nossa convivência. E eu apenas podia agradecê-lo por isso.

– Está tudo bem – ele sussurrou próximo ao meu ouvido. – Está tudo bem, Cloud. Vou cumprir minha promessa. Vou retribuir o que fez por mim.

Ele repetiu aquela frase. Aquela frase que eu não conseguia compreender e que, eu tinha certeza, mesmo que eu lhe perguntasse, não obteria resposta. Mas não importava. Eu me sentia frágil, vergonhosamente frágil. E tão fraco... Eu me deixei ser consolado por Christian, que deslizava os dedos lentamente por meu cabelo, numa tentativa de atenuar meu choro mudo e sem lágrimas. Respirei fundo, aspirando o perfume doce que se desprendia de seu corpo, guardando-o mais uma vez em minha memória. O mesmo aroma depois de tantas décadas... Como eu poderia esquecer?

Não sei ao certo por quanto tempo ficamos naquela posição, Christian me abraçando daquele modo protetor como um pai que resguarda o filho. Entretanto, sei que foi o suficiente para me trazer uma enorme sensação de segurança novamente. Aquele desespero momentâneo foi espantado pela força de sua presença. E, mais uma vez, me questionei o que havia acontecido com Christian durante sua estada longe de mim. Ele estava tão assustadoramente mudado, que eu mal podia crer que aquele era realmente meu pupilo impulsivo, o eterno adolescente de 17 anos cujo qual eu roubara a vida.  

Uma garoa fina começou a nos cobrir e o vento soprou com mais intensidade, nos lembrando de onde nos encontrávamos. Ele me afastou gentilmente e tocou meus ombros com as mãos. Eu voltara a respirar normalmente e aquela onda de pensamentos dolorosos se fora, dando lugar a uma estranha exaustão mental. Eu quase podia sentir os danos martelando em minha cabeça. Se fosse humano, tive certeza, estaria com uma terrível dor de cabeça. Pude apenas agradecer por não o ser...

Christian me olhou com determinação quando disse:

– Você é um vampiro, Cloud – e sua voz soou profunda, clara e, pude ver em seus olhos límpidos, teve o efeito desejado. Me atingiu como uma agressão física. – Você é a morte andando na Terra. Não tenha medo de fazer o que deseja. Pegue tudo o que quiser.

E um sorriso esplêndido, encorajado por suas palavras, arqueou seus lábios róseos quando exclamou:

– A noite já é nossa! Aja como tal!

Por um momento apenas permaneci em silêncio, fitando aquele rosto liso e pálido; havia um lampejo de vida naqueles olhos que me incitaram a sorrir, algo que chamejava e parecia mover aquele corpo morto, um fogo fátuo que jamais se deixaria apagar. O fogo imortal que eu lhe presenteara, que corria em suas veias, queimava em sua alma. Ah, Cloud, você fez um belo trabalho.

Eu assenti uma vez e ele fechou os olhos por um segundo, sorrindo brevemente, compreendendo meu agradecimento naquele gesto simples. Eu lhe dei as costas e caminhei até a clarabóia. Uma última vez o olhei por sobre o ombro. O vento esvoaçava os cachos louros de seu cabelo, ponteado pelas gotas da garoa que aos poucos se transformando em chuva. Com as mãos nos bolsos, ele me fitava, totalmente imóvel. Mas não havia mais o sinal de seu sorriso contagiante. Seu cenho estava franzido e, em seus olhos profundamente negros, eu apenas encontrei uma estranha apreensão.

Uma ansiedade que me fez estremecer ao descer pela clarabóia e perder o contato com o enigma que eu tinha como pupilo. Christian... O que há com você?


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