In My Head escrita por IsabelNery


Capítulo 24
Doença, Insônia e tempo




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P.O.V. 3ª Pessoa

Duas horas. Duas curtas e rápidas horas. Foi apenas isso que conseguiram dormir, para eles parecia ainda menos. Acordaram com o alarme no quarto cinza, claro que todos estavam exaustos, mas cada vez que tentavam adormecer o alarme voltava a ressoar. Isabelle já estava com medo de ficar surda, mas ela não conseguia controlar quando iria desmaiar de exaustão. Filipe foi o primeiro a conseguir acordar ou pelo menos se levantar da cama, ele ficou dando voltas e voltas em círculo para que não dormisse. Até pensou em qual seria o prêmio dessa vez, mas depois de um tempo pensava se teria algum prêmio. Ele fazia o máximo de esforço possível para não pensar em Max e em todos os outros fantasmas do seu novo mundo. Apenas repetia quando lhe dava vontade de desabar: “Você está melhor aqui do que com seus irmãos, você está melhor aqui do que com seus irmãos.”. Tyler desistiu depois da décima quarta vez que o alarme tocou, ele seguiu o português nos círculos, mesmo que parecesse um zumbi. Isabelle foi também. Rosa tentou resistir, ela costumava dormir cerca de dez horas por noite antigamente, mas levantou dando horríveis xingamentos em espanhol, ela estava com olheiras profundas e roxas em seu belo rosto que mesmo com elas continuava lindo.

Uns cinco minutos depois, todos desabaram no chão, e o alarme tocou de novo. Que tortura mais infeliz. Não podiam dormir e o buraco negro não aparecia para que dormissem em qualquer outro lugar. Acordaram com o alarme, Rosa começou a chorar em silêncio, assim como Isabelle. Tyler voltou a andar para ficar acordado, mas dessa vez foi explorar, entrou no banheiro, no quarto de refeições (Onde não havia o que comer no momento) e no de recreações, no último havia uma caixa nova. Ele a pegou e trouxe para a sala onde os outros estavam. Era um quebra-cabeça. Não daqueles pequenos, mas um de 3000 peças. A foto da caixa era de um pôr-do-sol. Foi tão bom ver algo que não fosse cinza, cores em laranja, amarelo, vermelho, etc. Claro que no começo não conseguiram montar quase nada devido ao sono, mas depois de uns 30 minutos, todos os quatro já haviam despertado por completo e estavam focados no quebra-cabeça. Não tinham habilidades especiais, mas terminaram de montar quando a fome começou a se instalar. Foi bom por um momento esquecer as dúvidas e focar apenas em juntar uma peça com a outra. Todavia sem que eles percebessem, o roxo veio se espalhando.

Eles estavam relativamente perto uns dos outros, debruçados sobre o quebra-cabeça, por isso, quando o buraco negro alcançou Rosa, Tyler a segurou pelo pé e foi puxado junto. Filipe segurou a mão de Isabelle e a blusa cinza do americano. Logo, os quatro estavam caindo no buraco, eles até ficaram agradecidos, finalmente teriam um lugar para dormir. Antes que percebessem caíram num solo duro, rochoso. Era apenas uma rua com um asfalto ligeiramente estranho. Ela estava vazia, preenchida apenas pelo vento, um vento calmo e quente. Chegava a ser assustador, mas o mais assustador dali possivelmente eram eles, quatro criaturas de cinza que mais pareciam zumbis pelas caras de sono e olheiras inchadas. Eles estavam acostumados a serem estranhos, esquisitos, mas não assustadores.

— Any ideia? (Alguma ideia?) – Tyler perguntou enquanto bocejava. Os outros três apenas balançaram as cabeças. Rosa nunca pensou que a coisa que mais desejaria na vida seria uma cama, qualquer cama serviria, contanto que não houvesse um alarme soando o tempo inteiro. Ela até pensou em se deitar na rua, mas estava nojenta demais, não iria se rebaixar a esse nível.

Apesar do sono, a fome já estava presente e chegava a ser mais difícil até dormir com fome do que com um alarme tocando. Dessa vez Tyler liderou a caminhada, se ele não estivesse tão cansado que parecia que iria cair a cada passo que dava, ele poderia carregar Rosa nos braços, a espanhola estava praticamente caminhando de olhos fechados, a cada cerca de cinco passos ela caía. Após andar algumas quadras, as ruas continuavam desertas, mas Tyler conseguia escutar vozes dentro das casas, ou seria apenas sua imaginação? Aquela cortina não existia naquela janela há dois segundos? Por que as pessoas estavam se escondendo?

Eles estavam na calçada quando um carro passou, bem, naquele tempo era o mais próximo de carro que existia, mas para os jovens aquilo mais parecia com uma carruagem preta puxada por dois cavalos ou algo do tipo. A carruagem parou ao lado deles, a janelinha dela se abriu e um homem que segurava um pano branco por cima do nariz e boca começou a falar em inglês:

— Are you sick? (Vocês estão doentes?) – Bem, pelo menos conheciam a língua.

— No, we are lost (Não, estamos perdidos) – Tyler respondeu. O homem deu uma boa olhada para cada um deles como se esperasse uma tosse ou um espirro, mas por fim abriu a porta e os deixou entrar. Eles se acomodaram no pequeno cubículo, o homem gritou para o cocheiro e a carruagem começou a se mover.

— Well, what is your history? Are you doctors or what? By the way, I’m Christian Wilston, my father is the chief of the hospital, we are on our way to there. (Bem, qual é a sua história? Vocês são médicos ou o que? Aliás, eu sou Christian Wilston, meu pai é o chefe do hospital, nós estamos indo para lá.) – Christian disse. Ele parecia ter uns vinte, vinte e dois anos.

— Well, sir, like my friend say, we are lost, we have been out for a few weeks, we have no ideia from where we are and the date. We are also hungry, but we aren’t doctors. My mother made this clothes for us before we left. (Bem, senhor, como meu amigo disse, nós estamos perdidos, estivemos fora por algumas semanas, não temos ideia de onde estamos e a data. Também estamos com fome, não somos médicos. Minha mãe nos fez essas roupas antes de partimos.) – Filipe disse calmamente.

— I see. I’m sorry for you, we are on Fort Riley, Kansas, today is six of December of 1918. The healthy people are hiding, the doctors are working without stop, and the disease still increase. (Eu entendo. Sinto muito por vocês, nós estamos em Fort Riley, Kansas, hoje é seis de dezembro de 1918. As pessoas saudáveis estão escondidas, os médicos estão trabalhando sem parar e a doença continua a aumentar.) – Christian disse tentando aparentar um ar de indiferença para com os jovens. Filipe, Rosa e Isabelle já entenderam a desgraça da vez, faltava apenas Tyler.

— Ok, sir, thank you. (Ok, senhor, obrigado). – Tyler respondeu. O resto do percurso foi em completo silêncio. Quando a carruagem parou e todos desceram, Christian se virou para eles.

— Almost forgot. The hospital is a mess, so if you want to help, please go to the mortuary, you can sleep there later. Ask the nurses for food, say that you know me, ok? Goodbye. (Quase esqueci. O hospital está uma bagunça, então se quiserem ajudar, por favor vão para o necrotério, podem dormir lá mais tarde. Peçam comida para as enfermeiras, digam que me conhecem, ok? Adeus.) – E saiu andando. Somente após ele cruzar a entrada, foi que começaram a falar.

— I can’t understand. (Eu não consigo entender) – Tyler disse.

— Spanish Flu (Gripe espanhola) – Filipe murmurou. Todos permaneceram num silêncio que durou cerca de três minutos. Nenhum queria entrar no hospital, mexer com cadáveres e muito menos dormir entre eles. Mas a fome e o sono os consumiam. E assim foram. Ao passar pelas portas, era uma imensa correria, um caos por se dizer. Várias pessoas no chão, médicos e enfermeiras correndo de um lado para o outro. Milagrosamente Isabelle conseguiu perguntar uma enfermeira sobre comida, ela respondeu que cada paciente tem direito a uma bandeja e que podiam pegá-la no segundo andar. Eles subiram se esquivando de todas as pessoas que passavam pelos lados, enfrentaram uma longa fila, mas conseguiram as bandejas. Apenas uma massa pastosa e um pouco de feijão, comeram rápido e não sabiam o que fazer em seguida, queriam muito dormir, mas não acreditavam se conseguiriam ao certo, esses médicos estão aí com muito menos horas de sono do que eles e não estão reclamando de nada. Decidiram ir ao necrotério para ajudar em algo. O fato de eles estarem de roupas cinzas chamava muita atenção, vários doentes vinham atrás deles para pedir ajuda, apenas respondiam o mais educado possível que não eram médicos e que tinham que ir ao necrotério. Foi um longo caminho seguindo as placas, as pessoas vomitavam tanto que o chão estava sempre nojento e devia ter cuidado onde pisar. Pior ainda era quando vomitavam sangue. Havia cadáveres pelos corredores. Ao chegarem, viram uma sala grande cheia de macas aque estava muito lotada. Em uma maca haviam três, às vezes quatro corpos, estes também estavam espalhados por todo o chão. Todos tinham a mesma semelhança: magreza excessiva e sinais claros de desidratação. E, para piorar, a cada minuto, novos corpos chegavam.

— Qué diabos haceremos? (Que diabos vamos fazer?) – Rosa perguntou.

— Ok, ok, hold on, let’s think. (Ok, ok, calma, vamos pensar) – Tyler disse e começou a andar pelos mínimos espaços que restavam na sala. – We can’t bury them, they could be used to figure out the cure, we can’t burn, and we can’t take them to other room. So? (Não podemos enterrá-los, eles podem ser usados para descobrir a cura, não podemos queimá-los, e não podemos leva-los para outro quarto, então?)

— So? (Então?)– Filipe disse.

— So let’s go step by step, they have something to identify? Like a card? Maybe someone will come here to look for this person. Isabelle, go check the cards, put them visible, and let’s try something alphabetically. When someone comes with new bodies, Rosa put them in the middle of the room, say that we are organizing. Meanwhile, Filipe and I are going to reorganizing the stretchers. One, two, three, GOO! (Então vamos passo a passo, eles têm algo para identificar? Como um cartão? Talvez alguém venha procurar por essa pessoa. Isabelle, vá checar os cartões, os coloque visíveis, e vamos tentar algo em ordem alfabética. Quando alguém vier com novos corpos, Rosa coloque-os no meio do quarto, diga que estamos organizando. Enquanto isso, Filipe e eu vamos reorganizar as macas. Um, dois, três, VÃO!) - Todos correram para seus determinados postos, o cheiro de formol predominava e era sempre horrível olhar e tocar um cadáver, lembrar que essa pessoa já teve uma vida e, mesmo que não fosse sua culpa, estava aqui agora. Pior ainda era pensar que um dia eles seriam cadáveres exatamente assim, ou ainda que esses cadáveres provavelmente já estariam decompostos no tempo atual em que eles vivem. Filipe e Tyler colocaram as macas nas paredes e em fileiras, organizaram os corpos com ajuda de Isabelle e Rosa, de maneira que eles estivessem sentados, cabendo cinco corpos por maca, e estavam em ordem alfabética. Não havia mais nenhum cadáver jogado no chão, e isso foi um grande alívio para todos. Os médicos que chegavam já entendiam o sistema e colocavam o paciente alinhado em seu determinado local. O grupo já podia sair dali. Quantas horas haviam passado? Duas, três? Carregando corpos de um canto para o outro. Era deprimente. Mas o medo maior vinha de sair, ver as pessoas antes do estágio final, lutando por algo que já era certo perderem – suas vidas - com os corpos se desgastando. Os olhos eram a pior parte, aqueles olhos que imploravam por ajuda, ou que apenas choravam sem cessar, mas o que podiam fazer? Deveria haver algo.

Assim que voltaram aos corredores, toda a desgraça e correria voltou, Tyler empurrou os três na primeira sala vazia que viu, uma espécie de armário de limpeza

— What could we do? What do you know about this disease? (O que podemos fazer? O que vocês sabem sobre essa doença?) – Ele disse.

— Only that killed millions of people, ended in 1919, covered a lot of countries. I don’t know how they figure out the cure, but I am sure that there is nothing that we could do to help. We can’t do the same that the doctors are doing cause it’s not working. We are like shit, worse than this, we take hell to wherever we go, that’s it, it’s like we were born to suffer. We can only go away and sleep, we will go back if we sleep, and I know that you are just as tired as I am. Just sit and sleep. (Apenas que matou milhões, acabou em 1919, passou por vários países. Eu não sei como descobriram a cura, mas tenho certeza que não há nada que possamos fazer para ajudar. Nós não podemos fazer o mesmo que os médicos porque não está funcionando. Somos como merda, pior que isso, nós levamos inferno para onde formos, é isso, é como se tivesse nascidos para sofrer. Nós podemos apenas fugir e dormir, voltamos se dormirmos, e eu sei que vocês estão tão cansados quanto eu. Apenas sentem e durmam.) – Filipe disse e simplesmente se sentou no chão. O armário que estavam era muito pequeno, já era apertado com eles em pé, mas o cansaço superou todos e no final estavam num emaranhado de pernas e cabeças inconscientes.

—_____________________________________________

Era horrível não saber que horas são. Todos já haviam perdido completamente a noção de tempo e espaço. Filipe já não possuía a de tempo desde antes, mas mesmo assim era intrigante não saber quantas horas se havia dormido. Isabelle levantou primeiro, voltaram àquela masmorra cinza miserável, para que? Para sofrer mais? Qual é o sentido da vida? Por que é cinza e não preto? Estava cansada de perguntas que nunca eram respondidas. Estava cansada de tudo, mas pelo menos hoje era dia livre, “Dois sim, um não”. Ela não quis acordar os outros, comeu uma pasta branca na sala de refeições, fez a higiene matinal no banheiro e quando voltou ao quarto, ao observar as beliches, viu como se houvesse uma sombra embaixo da beliche de Tyler, ao se aproximar e deitar no chão, viu que era um livro. Era um livro feito à mão, a capa era azul e estava grampeado três vezes. O título era: Good Boys. Ela viu que havia outro livro embaixo da cama de Filipe, outro na de Rosa e outro na sua. Ao pegá-lo não conseguiu segurar o grito de emoção que acordou todos os outros. Tyler caiu do beliche com o susto e tentou entender a situação. Isabelle segurava nas mãos o livro intitulado Os Magos de Lev Grossman, era o seu livro favorito. Na verdade, era o seu próprio exemplar, as páginas um pouco gastas, seu nome assinado na contracapa, era perfeito.

— Good morning! There is some white paste to eat, and this is my favorite book in the world, look under your beds. (Bom dia! Tem pasta branca para comer, e este é o meu livro favorito no mundo, olhem embaixo de suas camas.) – Isabelle disse sorridente e se sentou para ler. Rosa não era muito fã de livros, mas mesmo assim encontrou o seu exemplar do pequeno princípe que leu tantas vezes que perdeu a conta quando era criança. Filipe encontrou O Grande Gatsby de Fitzgerald, havia lido em três idiomas, mas aí estava o primeiro em português exatamente igual ao seu. Tyler começou a chorar, não era um choro de Felicidade, apenas de tristeza. Aquele era o livro que havia feito junto com Michael quando tinha uns seis anos. Apesar de só ter vinte páginas, sempre foi seu livro favorito e, ao mesmo tempo, uma lembrança boa que lembrava uma lembrança ruim. Era somente a história de dois bons irmãos que viviam aventuras todos os dias, Michael sempre fora ótimo em histórias, ele inventou várias para contar a Tyler quando o colocava para dormir, eram tantas e tão boas que Tyler pediu para que ele fizesse um livro e assim foi feito. Ele se debruçou sobre aquelas páginas, assim como todos os outros. Mas enquanto Isabelle e Filipe leram seus respectivos livros uma vez, Rosa já havia lido, relido, comido a refeição e ido ao banheiro, Tyler leu o dele cerca de dez vezes. Quando ele ia para a décima primeira, Rosa tirou o livro de sua mão.

— Give me back. (Me devolve)

— No, go eat and take a shower. (Não, vá comer e tomar banho)– Ela falou ríspida.

— Give. To. Me. Now. (Me. Devolva. Agora) - Ele se levantou com o cenho franzido de raiva.

— You already know it all, your brother won’t come back, you have to accept it. NOW, GO TAKE THE DAMN SHOWER AND EAT BEFORE I THROW THIS BOOK ON YOUR THROAT. (Você já sabe disso, seu irmão não vai voltar, tem que aceitar. AGORA, VÁ TOMAR A DROGA DE UM BANHO E COMA ANTES QUE EU JOGUE ESSE LIVRO NA SUA GARGANTA) – Rosa começou a gritar, mas Tyler obedeceu e fez o que ela mandou. Filipe fez o mesmo. Isabelle e Rosa ficaram conversando um tempo sobre seus livros e como aqueles seriam os seus exemplares, mas quando os garotos voltaram, todos foram para a parede de escalada. Subiram e desceram várias vezes, Isabelle desistiu na terceira vez e foi tocar piano, era tão bom relaxar, fechava os olhos e tocava as notas que já conhecia. Ela se sentia viva de novo. Era simplesmente bom. Rosa foi pintar depois de um tempo, mas os garotos se cansaram da parede e foram fazer escalagem entre os beliches, pulando de um para o outro, eles eram parafusados na parede mesmo. Porém depois de uma hora, todos se cansaram e se reuniram no chão para contar histórias de suas vidas antigas. Sempre é bom esquecer, mesmo que seja por um tempo da vida que um dia lhes pertenceu, mas as lembranças sempre voltavam, o medo do que viria no dia seguinte e claro, a saudade de casa. Comeram outra vez a mesma pasta, todos estavam tão magros, bochechas chupadas, ossos ressaltados, eles mesmos pareciam cadáveres. Entre histórias e mais histórias, adormeceram ali mesmo, no chão, porém com as cabeças em travesseiros. O que podiam fazer? Eram cobaias, somente. Apenas esperavam por um dia melhor.


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Notas finais do capítulo

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