Fate - Imaginary Web escrita por Stormy Raven


Capítulo 2
Ato I




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-Dia 1-

Ela Era Ela e Só

         Sim, aquela garotinha atraía atenção aonde quer que fosse. Já tinha dezoito anos, mas sua aparência era tão delicada que as pessoas juravam que ela tivesse apenas treze ou no máximo quinze. Suas vestes em estilo gótico, negras e ‘discretas’ na medida do possível, também chamavam atenção em demasia em contraste com as casuais roupas dos transeuntes. Os medianos cabelos, dourados, brilhantes e lisíssimos completavam o visual exótico da pequena boneca pálida.

         “Hunf, deveriam ao menos disfarçar esses olhares. Pessoas comuns me enojam...”

         O grande livro que a pequena carregava também atraía olhares devido à grande espessura e pela rica decoração dourada que o envolvia. As luzes noturnas faziam-no brilhar como ouro, mesmo estando semi-coberto pelos braços da garota.

         “Espero que não haja ninguém acordado no hotel. Mesmo sendo um local seguro, não quero arriscar... Tudo deve ser perfeito.”

         Perambulando pelas ruas, a loira em certo momento adentrou um beco mais escuro e deserto, logo em seguida abrindo uma porta de madeira de uma das construções do local. Uma vez dentro a escuridão dominou seus olhos, mas já conhecia o lugar bem o suficiente para não esbarrar em nenhum móvel ou parede. Caminhando com segurança logo alcançou o que desejava: a escada que a levaria até o segundo andar, mas o súbito acender das luzes a deixou tonta e, por um momento, com a guarda baixa.

         - Isso é hora, senhorita Spielz?

         A garotinha, rapidamente se acostumando com a claridade, virou a cabeça, irritada, e continuou a subir:

         - Perdão, senhor Cruz, mas tinha negócios a resolver. Além disso, minha vida pessoal de nada interessa ao senhor.

         Apesar de Spielz chamar o homem de “senhor”, este tinha pouco mais de 20 anos, estando ainda na flor da juventude. Possuía curtos cabelos negros, muito bem arrumados, e trajava uma roupa social discreta. O rosto era limpo, apesar da eterna barba por fazer – o que lhe conferia um charme a mais.

         - Não é necessário ser agressiva, senhorita Spielz. Mas é perigoso andar em um horário como esse sem companhia, se é que me entende bem.

         - Esse problema será sanado rapidamente, se o senhor me der licença.

         A loira já estava quase no topo da escada, praticamente ignorando o dono do hotel. Este, apesar de tudo, não perdera a calma ou algo do tipo: estava acostumado com o comportamento dela, apesar do pouco tempo em que conviviam, e sabia muito bem para que ela viera até Lisboa...

         - Só peço que não faça muito barulho. Tenho poucos hóspedes, mas não abuse. Você chama atenção demais para uma “profissional”...

         Spielz continuou seu caminho sem se importar com as palavras de Cruz até chegar na última porta do corredor, aberta ao menor toque. O interior aconchegante e humilde a convidou para um banho quente e uma longa noite de sono, mas ainda havia muito o que ser feito antes do amanhecer. Acendendo algumas velas, colocou o livro aberto em um pequeno banco de madeira. As inscrições vermelhas na página marcada brilhavam sob a luz tremulante das velas. A garota traçou cuidadosamente o círculo mágico que iria utilizar no encantamento com um pó parecido com vidro moído armazenado em um recipiente transparente que antes estava escondido em uma mala de aparência antiga, previamente já no quarto. Era um círculo de dupla borda, repleto de inscrições no interior destas; dentro do círculo estava traçado uma grande estrela de seis pontas, e em seu centro mais três círculos com inscrições estranhas em alguma língua antiga.

         “Círculo mágico delimitado perfeitamente. Falta apenas o catalisador e o encantamento. Eu não poderia ter escolhido melhor noite para isso.”

         Lá fora, uma escuridão quase sobrenatural dominava Lisboa, apesar da eficiente iluminação pública. A lua estava encoberta por pesada camada de nuvens negras, possivelmente sinalizando tempestade próxima. Spielz sabia muito bem que a escuridão no exterior não era apenas natural: havia ‘algo mais’ obscurecendo a metrópole, algo que tornava o ar pesado e despertava uma sensação de perigo iminente o tempo todo; algo que “encobria” a urbe como um todo, a escondendo de forças exteriores desconhecidas.

         “O Grande Graal já está ativo. Me pergunto como não detectaram tanta energia no subsolo dessa cidade por todo esse tempo. É obsceno o poder que Lisboa tem...”

         De dentro da mesma mala antiga a garota retirou uma grande e vermelha maçã coberta por algo pegajoso. Posicionou a fruta no centro do círculo mágico com cuidado para não pisar dentro deste ou em uma das linhas traçadas. Abrindo a janela do quarto, Spielz lançou um demorado olhar para o terrível céu, como se procurasse algo... Ou alguém. Certificando-se de que estava segura e oculta, pegou o livro aberto e voltou-se para o círculo mágico, concentrando-se de olhos fechados. Mesmo com a janela aberta não havia uma mínima brisa adentrando o recinto, tal a estagnação do ar.

         Seguiram-se quinze minutos de silencioso transe por parte da pequena. Suor escorria por seu rosto, refletindo o intenso esforço da concentração. Esforço esse que em breve seria recompensado: o círculo mágico começara a brilhar franticamente, alternando a iluminação do quarto de modo confuso. Spielz baixou o olhar para o livro, lendo-o, e recitou em tom firme e cerimonioso:

         Teu corpo servirá apenas a mim

         Teu destino será tua arma

         Submeta-te ao chamado do Cálice Sagrado!

         Se vai atender a este chamado e a esta razão,

Então responda, nobre espírito guardião!

         Eu faço um juramento aqui:

Serei eu a obter todas as virtudes do Céu,

         Sou eu a amaldiçoada por todo o mal de todos os Infernos.

         Do Sétimo Céu atendido por três palavras de poder

         Saído dos anéis da restrição, venha a mim

         Ó portador do arco!

        

         O corpo de Spielz tremia incontrolavelmente, enquanto uma claridade cegante vinda do círculo mágico a impedia de abrir os olhos. Após o som de um violento baque a claridade cessou e a garota deixou-se cair de joelhos, exausta. Mesmo com toda a preparação pela qual passara, não era possível invocar um espírito daquele porte e sair incólume. Nessas horas ela detestava seu próprio corpo, frágil e delicado demais para aguentar o esforço que uma magia de larga escala exigia de um ser humano.

         “Aparentemente, a invocação foi concluída com sucesso. Preciso me recompor, não posso demonstrar fraqueza frente a meu servo.”

         - Não acreditei quando ouvi seu chamado. – disse o ser invocado (seria ele? Seria mesmo Guilherme Tell?). – E faz o favor de abrir esses olhos, garota! É você minha mestra, é?!

         Estava ouvindo errado ou uma voz de menino lhe dirigiu a palavra agora? Abriu os olhos azuis, espantadíssima, para ver na sua frente, tal qual seus ouvidos comunicaram ao cérebro, um garoto de olhos claros.

         E cabelo castanho-escuro.

         “Não pode ser.”

         E roupas modernas: um jeans surrado, uma camiseta preta e tênis All Star nos pés.

         “Tudo estava perfeito!”

         Spielz invocara um garoto comum?

         “Eu me recuso a acreditar!”

         - Ei... Diga alguma coisa... – ele continuava encarando-a de suas alturas, com o rosto visivelmente desconfiado de todo aquele silêncio.

         Conseguindo ficar de pé, Spielz examinou-o de cima a baixo, atordoada. Seus olhos só não se arregalavam mais pois era humanamente impossível... Subitamente a maga quebrou o silêncio, lembrando-se de sua posição: era uma das sete pessoas escolhidas pelo Graal, e deveria portar-se como tal!

         - Sim, sou sua mestra. Evangeline Spielzeugengel é meu nome.

         - Prazer, sou Archer, seu servo.

         “Ele é mesmo um Archer? O que aconteceu de errado? Onde está Guilherme Tell? Quem é esse sujeito?”

         O verdadeiro objetivo de Evangeline era invocar o grande Guilherme Tell como servo Archer. Eva estava crente de que o famoso herói suíço seria o servo mais indicado para seu estilo, já que ela não planejava entrar em combate direto com os outros servos tão cedo, exigindo um combatente que se aproveitasse de distância e que fosse discreto. Discrição, aliás, era seu maior desejo: queria evitar ao máximo o contato com certo supervisor, minimizando as chances de algum ato seu ou de seu servo virem à público. Assassin seria outra escolha, mas a maga preferira ter mais certeza quanto à personalidade de seu futuro companheiro de combate.

         - Então, mestra, qual é sua primeira ordem? Devo ficar de prontidão, descansar, limpar a bagunça do quarto?

         A pequena ainda estava em estado de choque, mas tentava não demonstrar exteriormente – falhando nisso, aliás, já que seus olhos não mentiam como sua face. O garoto olhava o cômodo com desdém, relaxado. Qualquer um que o visse diria que ele era apenas um garoto comum que não se importava muito com o modo de se vestir.

         - Eu queria discrição, mas... Mas...

         - Como, mestra?

         - Quem é você?!?

-Intermezzo-

I Am The Black Void

         O Castelo de São Jorge: uma construção magnífica no coração de Lisboa. Construído no topo da mais alta colina do centro histórico, oferece uma vista sem igual da cidade e do estuário do rio Tejo. É um dos pontos turísticos mais marcantes de toda a cidade, alvo de visitantes de todas as partes do mundo.

         “Pobres de espírito aqueles que dependem de tolas soluções simplistas. Sinto-me envergonhado por me enquadrar em tão patética definição...”

         Um homem negro, alto e de olhos ferozes esgueirava-se pelas sombras, tomando o cuidado de ser o mais silencioso e furtivo que podia. Seu objetivo: infiltrar-se no Castelo de São Jorge para destruir um artefato místico.

         “Mas é necessário. O mundo não precisa de tão sangrento realizador de milagres. Farei o possível e o impossível para dar um fim a tudo isso, ou meu nome não é Vladislav Arsenal!”

         Um artefato com o poder de conceder qualquer desejo a quem fosse poderoso e digno o suficiente para conquistá-lo. Um artefato que exigia sangue e poder em abundância, para só depois prover com sua graça...

         “Tragédias não devem se repetir nem ser repetidas. Apenas os tolos aprendem com seus próprios erros; os sábios aprendem com os erros dos outros. Fuyuki já mostrou que é impossível controlar um poder magnânimo como esse. Serei eu o purificador deste mundo, retornando o tudo para o nada!”

         Aos poucos, o céu começara a iluminar-se em mais um nascer do sol, banindo as sombras da noite por mais um ciclo de doze horas.

         Mas algumas sombras não se ausentavam jamais.

-Dia 1-

Mestres

- Bom dia sol!

         Cabelos loiros, longos, ondulados, soltos e muito desarrumados. Afastando as cortinas, olhou para o céu com alegria.

         - Bom dia pássaros!

         Pele branca, marcada com algumas sardas. Jogando a camisola de lado, dirigiu-se ao banheiro do quarto, assobiando alegremente. Quase tropeçou na pequena cadelinha estirada no meio do aposento, ainda dormindo.

         - Desculpe, Cissa – sussurrou, e adentrou o banheiro. O som do chuveiro se fez presente, cessando cinco minutos depois. De toalha amarrada na cintura e água gotejando dos cabelos, a garota se apressou ao olhar para o relógio em cima da mesinha de canto, ao lado da cama.

         - Não posso me atrasar, ou o tio Jean vai ficar bravo!

         Mesmo já tendo vinte e sete anos de idade, Anabela ainda agia grande parte do tempo como uma adolescente, e isso incluía problemas com pontualidade – sobretudo no período da manhã. Ainda morava com seus pais mas não se importava com isso – o relacionamento familiar era agradável, sobretudo depois de ter arranjado um bom emprego em um abrigo de animais relativamente perto de casa. Sem muitas preocupações na vida – excetuando-se a área afetiva – Anabela era uma pessoa alegre, bondosa e cheia de energia.

         Já vestida com roupas casuais – blusa, calça e sapatos brancos – desceu as escadas em sua interminável disputa contra o tempo. Normalmente atrasar-se não era um problema, mas esse sábado era especial. Adentrando a copa, Ana percebeu que correra em vão, já que a pessoa que a ‘esperava’ ainda não havia nem terminado o café da manhã...

         - Olá tio Jean! Bom dia, pai.

         Os dois homens se viraram, de bom humor, e o que estava sentado mais distante respondeu:

         - Finalmente, Anabela. Pensei em te acordar, mas acabei me entretendo com o jornal.

         - Tudo bem, pai, eu acordei, não foi?

         - Sempre cheia de energia. Você não muda, Anabela.

         - Ora tio, eu emagreci cinco quilos desde a última vez que você veio!

         Simulando raiva a loira se sentou à mesa e mordiscou uma torrada, para logo depois acompanhar as risadas dos dois mais velhos. A última vez que seu tio os visitara foi há três anos, em uma rápida passagem que ninguém da família aproveitara de fato. Jean Amarante era um ator medianamente famoso no meio teatral e sua carreira estava aos poucos decolando, tendo como efeito negativo a extrema falta de tempo para com a família.

         - Não só emagreceu como amadureceu. Você se tornou uma bela mulher, Aninha.

         Pousando a xícara de café na mesa, o outro não perdoou...

         - Não se engane, Jean. Ela continua desastrada e chorona.

         - Pai!

         - E solteira...

         Dessa vez Anabela não acompanhou as risadas, que logo cessaram. Um silêncio constrangedor ameaçou abater-se sobre os três, mas a garota foi perspicaz em evitá-lo:

         - O que tem de tão importante no jornal, pai?

         - Dizem que estranhas luzes foram vistas no centro histórico. Há pessoas dizendo que avistaram OVNIs, outras dando explicações científicas...

         - E você acredita em todo esse sensacionalismo?

         - É claro que não, filha. Mas é engraçado ver todas essas explicações estapafúrdias para o que talvez seja apenas um poste em mal funcionamento ou os faróis do carro de algum baderneiro. Tem até relato de bruxaria aqui...

         Ana quase engasgou com o café que levara à boca, rindo. Seu pai sorriu e continuou a folhear o jornal despreocupadamente. Apenas Jean baixou os olhos por um momento, com ar nostálgico. A loira notou o jeito cabisbaixo do tio e o chamou de volta à realidade:

         - Tio Jean, o que foi?

         O olhar dele era saudosista:

         - Só uma coisa de que me lembrei. Não se preocupe, é sobre o trabalho.

         - Nunca vi tantos japoneses nessa cidade. Você gosta dessas coisas, né, Ana?

         - Por que fala isso, pai? Depende do tipo de ‘coisas’...

         - Olha aqui no jornal: uns tais de Ya-zu-ra-gui estão de férias pela Europa. Conhece essa banda?

         - Yasuragi? Não, mas tenho uma amiga que é muito fã.

         - Aqui diz que dois deles estão em Portugal.

         - Hm. – Anabela apenas meneou a cabeça, terminando de ingerir o café da manhã. Sabia que se continuasse a responder, seu pai continuaria a lhe contar o jornal inteiro, notícia por notícia. Além disso, estava atrasada demais para ficar sabendo de tudo o que ocorrera no país...

         - Tem essa lutadora famosa também, ela é tão novinha...

         - Vamos, tio Jean?

         O homem de dourados cabelos se levantou, concordando com um sorriso - não comia muito pela manhã, já estando satisfeito – e pegou o antiquado chapéu que repousava no encosto de sua cadeira. Anabela subiu novamente até o quarto para pegar sua bolsa e ‘se despedir’ de Cissa, a cadelinha de estimação. O animalzinho ainda estava sonolento, mal erguendo a cabeça quando a dona a chamou. Depois de acariciar o animal, Ana se olhou no espelho e ajeitou o rebelde cabelo, que teimava a contrariar os desejos da garota.

         “Se fosse liso ou totalmente encaracolado... Detesto esse meio-termo!”

         Descendo para o primeiro andar e passando novamente pelo pai Ana o abraçou e rapidamente saiu da casa. Jean a esperava pacientemente na calçada, aproveitando o agradável sol da manhã.

         - Para onde agora, tio?

         - O que acha de irmos até o Castelo primeiro, antes da feira de livros? Melhor aproveitar para passear enquanto estamos de mãos vazias.

         - Concordo. Como vou tirar fotos com as mãos cheias?

         - Também sinto que vou ter problemas em carregar o que vou comprar. Fiz até uma listinha pra não esquecer nada!

         Prosseguiram para o ponto de ônibus mais próximo, mal sabendo que essa escolha afetaria a vida de ambos de um modo irreversível.

-Intermezzo-

Estou Aqui Por Você

         “Será que ele está gostando?”

         Por mais que tentassem, os dois japoneses acabavam chamando atenção em demasia. Os óculos escuros ajudavam a ocultar suas verdadeiras identidades, mas cedo ou tarde alguém os reconheceria...

         “Eu poderia tê-lo levado para comer algo primeiro... Como posso agradá-lo aqui?”

         Parque Eduardo VII, centro de Lisboa. Estava a acontecer a grande Feira de Livros de Lisboa, evento grandioso que a cada ano atrai mais e mais público graças aos preços quase simbólicos e à grande variedade de livros. Turistas de incontáveis origens aproveitam o evento e a capital se enche de pessoas para a alegria não só dos livreiros, mas também do comércio em geral.

         “Já sei! Vou comprar algo e fazer uma surpresa no hotel! Tenho certeza de que Kazuya vai gostar.”

         - Interessado em algo, rapaz?

         - Hmm...

         Um dos dois japoneses, pensativo, pousou o olhar em um livro parcialmente oculto em uma caixa atrás do vendedor. Não havia nada de especial na capa, apenas sua cor: carmesim. O rapaz, sem conseguir desviar o olhar, apontou para o livro e perguntou:

         - Aquele ali, quanto é?

         - Oh, este? Ele veio por engano – o vendedor pegou o livro, examinando-o – No momento de carregar o caminhão alguém deve tê-lo achado em algum canto do depósito e resolveram colocá-lo junto com os outros. Ah, esse pessoal destreinado que cuida mal da mercadoria...

         - Quer dizer que eu não posso... Comprá-lo?

         O vendedor olhou bem para o oriental, depois para o livro em suas mãos, e novamente para o oriental. Por fim, foi franco em sua resposta:

         - Olha, não o temos no catálogo, e terei de falar com meu chefe sobre isso. Considere-o seu, mas não posso lhe dar um valor agora. Poderia passar aqui mais tarde, perto das sete da tarde?

         O rosto do jovem japonês iluminou-se:

         - Sim! Claro que sim! Mais tarde eu volto.

         - Hey Satoshi, vamos. Há outras editoras para olhar.

         O outro japonês chegou perto, mas o vendedor já havia guardado o livro carmesim que tanto atraíra Satoshi. O que aquele tomo despertara nele, afinal? Olhá-lo pela primeira vez causou uma onda de choque em seu corpo, e agora o pulso esquerdo começava a latejar... Sem falar que não conseguira desviar os olhos do livro por nenhum instante.

         - Ok...

         E misturaram-se novamente na multidão.

-Dia 1-

Criando Laços

         - Eu tinha esquecido de como essa vista é linda!

         Anabela e Jean estavam agora no famoso Castelo de São Jorge, um dos marcos de Lisboa. O lugar estava estranhamente vazio, em contraste com o resto da cidade – o que conferia a atmosfera de um ‘contos-de-fadas’ levemente mórbido.

         - Há quanto tempo não vem aqui, Ana?

         - Faz mais de um ano, com certeza. Não tenho muito tempo livre, e quando tenho acabo me enfurnando no quarto para ler. A distância de casa também não ajuda.

         - Deveria sair mais, Aninha. Aproveitar sua juventude. Você teve a sorte de nascer em Lisboa, uma cidade bonita, grande e repleta de oportunidades. Não devia ficar no quarto durante o fim de semana, deveria brilhar aqui fora.

         - ...

         Apoiada com os cotovelos nas pedras da muralha, a garota suspirou enquanto refletia sobre as palavras do tio. Ela não tinha a mesma opinião sobre Lisboa que ele, mas resolveu ficar quieta. Não é que não gostasse da cidade, era de fato um lugar maravilhoso; as pessoas dali é que a incomodavam.

         Anabela tinha uma característica marcante em sua personalidade: era uma pessoa deveras sonhadora. Estava sempre a devanear, perdida em seus próprios mundos... Passava a maior parte do fim-de-semana lendo, alimentando assim sua própria imaginação. A maior parte da família a tratava como ‘ovelha negra’ devido a essa característica – os Amarante, apesar de seguirem majoritariamente carreiras envolvidas de algum modo com o mundo artístico, eram apegados demais à ‘lógica da realidade’. Apenas a mãe de Ana, a escritora Lisete Amarante, compreendia a filha. Ao invés de condená-la, Lisete encorajava a filha – sob os protestos dos outros familiares – a prosseguir na vida sonhando – sem se esquecer da realidade, obviamente.

         - ‘Nunca pare de sonhar’. É tão difícil...

         - O que disse, Ana?

         - As pessoas aqui fora não me entendem, tio. Não me aceitam. Não posso brilhar para quem vive de olhos fechados.

         Jean  olhou para a sobrinha, preocupado. Entendia muito bem o que ela estava dizendo a ele: passara pela mesma situação, mas por uma razão diferente. Teve de lutar muito para conquistar seu ‘lugar ao sol’.

         - Coragem, Aninha. Já passei por algo parecido. Sei como se sente.

         Um breve sorriso escapou dos lábios da moça. Jean continuou:

         - Já pensou em começar a dar aulas? Aproveitar o que aprendeu na faculdade? Lidar com crianças pode ser uma experiência muito gratificante.

         A loira voltou-se para o tio, sorrindo novamente. Jean era uma das únicas pessoas em que ela confiava totalmente; não escondia absolutamente nada dele.

         - Já pensei nisso sim, mas não quero abandonar meu emprego. Adoro aquele lugar, ali faço o que mais gosto. Não sei se conseguiria impor respeito...

         - É claro que conseguiria. Você é carismática e sabe quando ouvir. Não estou te forçando a nada, mas é que me preocupo com seu futuro.

         - Desculpem-me, mas peço que se retirem.

         Jean e Anabela, surpresos, não haviam percebido a aproximação de outra pessoa. Um homem de olhos ferozes encarava-os, sério. Jean deu um passo à frente:

         - Perdão?

         - Sinto lhes informar que o Castelo está fechado ao público hoje. Um erro na portaria acabou permitindo a presença de visitantes por um curto período de tempo. Peço que se retirem sem demora.

         Os dois Amarantes se olharam, confusos: era estranho que o Castelo estivesse fechado em pleno sábado, um dos dias de maior público. Por outro lado, não haviam visto muitas pessoas enquanto andavam pelo interior do monumento...

         - Perdão, não sabíamos disso.

         - Eu é que peço desculpas em nome dos funcionários. Não sei o que houve, mas os jornais da manhã não publicaram nosso aviso. Sinto muito.

         “Os inocentes não devem se envolver nas mesquinhas tramas do mundo dos magos. Há algo estranho nesses dois, não sendo afetados pelo encantamento de afastamento. Seriam eles... Inimigos?”

         - Tudo bem, sairemos agora.

         Jean e Anabela, não inteiramente convencidos, começaram a dirigir-se à saída – que estava longe, aliás. No meio do caminho, já no interior de um longo corredor de pedra, Jean parou por um momento e virou na direção contrária, dizendo:

         - Anabela, siga em frente e me espere na portaria. Preciso ir ao banheiro.

         Sem esperar resposta o ator saiu apressado, deixando uma confusa Anabela estática no corredor escuro.

         - Mas há banheiros na portaria...

         Seguindo pelo corredor a garota decidiu andar em um ritmo mais lento, ‘aproveitando’ o castelo e seus detalhes. Passou a tocar as paredes, prestar atenção à decoração e aos enfeites dos salões por onde passava... Começou a imaginar o quanto o castelo tinha de história. Cavaleiros haviam marchado por aqueles mesmos lugares séculos atrás. Quanta luta, quanto sangue já havia corrido por aqueles aposentos?

Ao chegar até um pátio aberto percebeu uma curiosa portinhola de madeira que passaria despercebida não fosse o vento fazendo-a se mover e ranger. Estava aberta?

         “Aquele homem não disse o porquê de estarem fechados. Será algum tipo de manutenção? Estranho, não me lembro dessa porta quando passamos por aqui antes. Aliás, foi por aqui que passamos?”

         Curiosa, Ana se aproximou, divisando o interior escuro por trás da portinha. Ainda pensando em cavaleiros e donzelas, decidiu entrar e saciar sua curiosidade. As costas de sua mão esquerda arderam, mas ela não deu atenção, pensando tratar-se de um inseto qualquer.

         Uma forte brisa balançou as folhas das árvores no pátio quando a garota passou pela porta.

         O interior consistia em um mínimo e escuro corredor sem nada de especial. Anabela percebeu que logo à frente havia uma escada, e teria caído por ela se a luz vinda de fora não tivesse iluminado o chão. Suportes para tochas estavam presos nas laterais, denunciando que aquela área não compartilhava de iluminação artificial moderna.

         “Acho que aqui não é aberto ao público. Talvez um depósito ou algo assim.”

         A loira olhou para onde a escada levava, mas só conseguia ver um fraco resíduo luminoso, bem distante. Não percebeu quando seu corpo deu o primeiro passo, e desceu a escada se apoiando nas paredes de pedra. No meio do percurso o “túnel” ficou mais estreito, transmitindo mais segurança.

         “Está tão escuro... Estou descendo há quanto tempo? Estranho como perdemos a noção do tempo quando mergulhamos nas trevas.”

         Finalmente chegando ao fundo, Ana olhou para trás por um momento e não viu absolutamente nada. A porta fora fechada novamente, talvez pelo vento. Mas a garota nem se preocupou com o fato: estava mais interessada em sua exploração, e seguiu em frente.

         Ao fim da escadaria um portal em arco dava acesso a outro corredor, dessa vez iluminado. Uma tocha estava acesa, presa na parede; Anabela a pegou com cuidado. Não queria arriscar se perder no subsolo do castelo, então achou melhor levar consigo uma fonte de luz ‘confiável’. O que ela não havia percebido é que faltava uma tocha na parede, do lado oposto à que ela pegou. Aliás, quem havia acendido aquelas tochas?

         Prosseguindo pelo corredor a garota logo avistou outra porta de madeira, dessa vez fechada. Estacou frente a ela, em dúvida: seria correto continuar com isso? Jean possivelmente já havia voltado e talvez a estivesse esperando na portaria, preocupado. Deveria voltar e deixar a exploração para depois... Mas algo dentro de si dizia justamente o contrário. Anabela sentia que deveria continuar! Alguma força oculta a atraía, ou era apenas o desejo de uma aventura? O único som que conseguia ouvir era o do tremular das chamas de sua tocha, e alguns distantes pingos de água típicos do subsolo. Respirando fundo, Ana agarrou a argola de ferro que servia de maçaneta – sua mão esquerda doeu com o movimento – e puxou a porta sem muita dificuldade.

         Antes não o tivesse feito.

         Assim que entrou no novo recinto se agachou e jogou a tocha no chão, tampando a boca com uma das mãos. Estava agora em um grande salão muito semelhante à nave de uma Igreja mas, no lugar dos bancos, haviam sarcófagos de pedra. Anabela se escondera instintivamente atrás de um desses sarcófagos ao ver outra pessoa no salão, bem perto de onde ela estava – vira apenas o contorno do corpo, sem identificar detalhes.

         “Por que fiz isso? No máximo ele ficaria bravo por eu estar em um local apenas para funcionários. Por que me escondi? Que medo é esse?”

         O coração dela batia desordenado e um medo profundo apoderou-se de seu corpo, deixando-a paralisada por alguns momentos. Ana não entendia por que se sentia daquele modo... Ouviu passos se aproximando e parando, e prendeu a respiração instintivamente. Apenas relaxou quando percebeu os mesmo passos se afastando. Ficou sentada ali, ainda com a mão cobrindo a boca, por quase cinco minutos. Finalmente tomando coragem, Ana se apoiou no esquife e lentamente olhou por cima deste: o grande salão consistia em um ‘esqueleto’ de igreja, repleto de colunas em suas laterais. Havia uma claridade azul muito esquisita emanando da direção onde seria o altar. A pessoa que ela vira de relance não estava mais visível – as colunas atrapalhavam sua visão de todo o lugar.

         Anabela levantou-se, tentando não fazer barulho. Procurou a tocha e a viu jogada a poucos metros, apagada; mesmo assim a pegou novamente. Saiu de trás do esquife e conservou-se encostada em uma das colunas, se arrastando lentamente na pedra fria. Ao conseguir enxergar o local do altar viu novamente a outra pessoa, mas seus olhos foram atraídos para algo maior: acima do “altar” havia um imenso vitral de onde emanava a tal claridade azulada que a tudo iluminava. O vitral era imenso, predominantemente em diferentes nuances de azul, e em seu centro havia a representação de um cálice dourado, extremamente brilhante. Ana não sabia como havia luz passando por ele já que estava a vários metros no subsolo, mas ficou admirada com a beleza da peça, logo imaginando mil e um devaneios e teorias. O medo diminuíra, dando lugar à excitação.

         A loira continuou a olhar para o vitral até que sua vista se canssou com o brilho, procurando a outra pessoa logo em seguida. Viu ‘ele’ se movimentando de um lado a outro, frenético, balançando a cabeça e coçando o queixo. Ana percebeu que de tempos em tempos ‘ele’ parava frente a uma porta – e só aí notou que haviam inúmeras portas naquele lugar, todas iguais à que ela tinha usado para entrar ali. Por sorte ainda conseguia ver a entrada que usara, aberta, perto de onde estava. Ela não queria chegar mais perto ‘dele’, satisfeita em acompanhar seus movimentos da distância que estava. Aonde todas as portas levariam? O subsolo do Castelo era todo daquele jeito? Haviam mais ‘igrejas’ como aquelas? A colina aonde estava situado o castelo era grande o bastante para abrigar muitos salões como aquele...

         “Eu não devia demorar tanto, mas não consigo sair daqui. Eu tenho que ver mais! Eu tenho que... Que...”

         Assustada, Anabela cobriu novamente a boca: a ardência nas costas da mão esquerda havia piorado tanto que, sem perceber, ela havia se machucado ao se coçar sem parar. Pequenas gotas de sangue pingavam de sua mão esquerda, acompanhando o coro de infiltrações do subsolo. Como não percebera antes?

         “Droga! Terei de subir e lavar isso rápido. Logo agora...”

         O som de uma porta batendo violentamente interrompeu seu pensamento. Uma agradável brisa sinalizou o erro cometido pela garota: deixara a porta aberta!

         Anabela ouviu passos apressados em sua direção e nem mesmo quis espiar novamente por trás da coluna: correu na direção contrária, para onde seria a ‘porta’ em uma igreja comum, oposta ao altar. Não olhou para trás nem por um momento, apenas ouvindo os passos cada vez mais perto.

         “Preciso me esconder em algum lugar! Se eu voltar ele me pega ainda subindo a escada!”

         Desesperada – e sem compreender o desespero – Ana correu, aproveitando-se das sombras que as colunas criavam para tentar enganar o perseguidor, mas... Para onde iria, em meio àquela penumbra azulada? Poderia correr em volta do salão e usar algum dos sarcófagos como cobertura, para só depois de um tempo voltar por onde veio. Sim, tentaria enganar ‘ele’ e voaria até a portaria, onde seu tio estava esperan...

         O chão frio e um ardor na testa foi tudo o que sentiu, interrompendo seu raciocínio.

         Tropeçara. Tropeçara como a ingênua donzela de um de seus livros preferidos. Só podia ser um pesadelo...

         Tentando se erguer, Ana olhou para trás ligeiramente, tentando ver no que tropeçara.

         E viu um corpo.

         Arregalando os olhos e deixando escapar um grito de susto Anabela virou o corpo e caiu novamente, sentada, se afastando do defunto. Percebeu que o chão estava molhado e, ao olhar para as próprias mãos, viu-as cobertas de sangue. Gritou mais uma vez, reagindo instantaneamente...

         “É um pesadelo?”

         - Você!

         O perseguidor finalmente a alcançara, mas não se aproximou muito, matendo-se à uma distância de dez metros. A claridade azul era um pouco mais fraca nos fundos, mas a loira caíra justamente entre as duas fileiras centrais de sarcófagos, no ‘corredor’ que se formava no centro da igreja e levava até o altar – o único local inteiramente iluminado por se situar à frente do vitral. Anabela reconheceu o sujeito: era o mesmo homem que avisara ela e Jean na muralha, alguns minutos atrás: muito alto, negro, com olhos agressivos e voz firme.

         - Minhas suspeitas estavam certas... És uma maga à procura do cálice? Sinto lhe dizer que o artefato não se encontra neste recinto. Sua morte será em vão. Farás companhia a este guarda incapaz que tombou sem reagir.

         “O que ele está dizendo? Morte? Eu vou morrer?”

         Anabela conseguia ouvir as batidas de seu coração e o esforço dos pulmões, exigindo mais e mais oxigênio.

         “Mas por quê? O que fiz de errado?

Viu em câmera lenta o homem apontar para ela e murmurar alguma coisa, e fechou os olhos, ouvindo um estranho som de ‘disparo’ e maderia se quebrando.

         Madeira?

         - Mas como...?

         Instintivamente o corpo de Ana protegera-a no último momento com a tocha que ainda segurava. A tocha despedaçara-se, sobrando apenas um mínimo pedaço em sua mão. Não pensou duas vezes: aproveitando a brecha, a garota se arrastou para trás, tentando se levantar. Mas suas pernas não obedeciam direito, apenas tremiam compulsivamente.

         - Poderia ter me aniquilado agora, maga. Ou será apenas uma aprendiz buscando conquistar poder facilmente? Não adianta, apenas os escolhidos pelo Cálice têm o direito de lutar pelas graças que ele concede.

         Anabela não estava entendendo absolutamente nada do que o estranho falava, tentava pensar em algum modo de sair daquela situação complicada, mas... O homem já tentara matá-la uma vez por simplesmente estar ali, e o corpo estendido em que tropeçara fora também obra dele. Ora, lutar pela própria vida é algo natural de um ser vivo, e ela não desistiria tão facilmente!

         - Por...Quê?

         Sua voz saíra tremida demais e muito baixa, mas o silêncio dominante do salão trabalhou a seu favor:

         - Por quê? Porque é minha missão limpar o mundo das impurezas criadas pela estupidez humana. Vim até aqui para destruir o Cálice, mas entendo agora que este não se manifesta até que haja apenas um mestre sobrevivente. Invocarei um servo e eliminarei a todos que estiverem em meu caminho, destruindo o artefato amaldiçoado para todo o sempre! – e apontou novamente para ela, falando ainda mais alto:

         - E você, ingênua despreparada, será a segunda vítima. Sou contra envolver inocentes em minhas batalhas, mas sua simples presença aqui já a torna culpada!

         Lágrimas transbordaram dos olhos da pequena loira, que entendera apenas que seu fim havia chegado. Várias cenas se alternavam em rápida sucessão em sua mente, mas não eram cenas de sua vida: Anabela apenas via nobres e cavaleiros, fadas e donzelas, magos e bruxas... Eram personagens dos livros que lera, personagens que amava como se fossem reais. Seriam eles seus últimos companheiros na vida?

         - Receba de mim, Vladislav Arsenal, a punição por teus atos insensatos, ingênua humana!

         Em uma última reação instintiva do corpo Anabela gritou novamente, protegendo a cabeça com as mãos e se encolhendo toda:

         “Nobres...”

         - Socorro!

         ...E cavaleiros.”

         Foi quando, repentinamente, uma intensa luz iluminou toda a igreja, fazendo Vladis recuar. Dentro da luz havia um ser, um humano, portando uma espada; ele estava entre Ana e seu executor, de frente à este. As pálpebras de Ana entreabriram... Cansadas, pesadas... E trataram de averiguar o que era o som não-natural ao seu redor. Tudo o que o seu campo de visão conseguiu enxergar foram pés usando uma espécie de coturno em frente à ela. A loira levantou os olhos, lentamente, vendo que estava diante de um homem, do qual ela não conseguia enxergar o rosto escondido sob um capuz. O ser virou a cabeça de lado, olhando-a com o canto dos olhos, e perguntou, firme:

         - Diga-me, donzela que se encontra em perigo, é você minha mestra?

         A resposta de Anabela foi automática:

         - Salve-me!


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