Sobre Inícios e Fins escrita por Mayumi Sato


Capítulo 1
Sobre inícios...


Notas iniciais do capítulo

Essa história supostamente deveria ser uma one-shot, mas acabou ficando mais longa do que eu previa, então eu a dividi em duas partes. É mais uma harukyon, embora com um tanto de koiharu. Eu espero, sinceramente, que vocês gostem dela e que a comentem. Ah, ela não é uma continuação de "A despedida", entendido? Ok. Boa leitura!^^



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Era mais uma manhã, em minha vida, ou melhor, jornada, como estudante. Acordei com minha irmã me chamando para ir tomar o café, me apressando com aquela irritante pureza infantil, que forma um escudo mais resistente do que o aço, enquanto encostava Shamisen na minha cara. Não sei o motivo de um método tão rude para me acordar. Talvez ele seja o príncipe e eu, a Bela Adormecida, na imaginação dela. Há também a possibilidade de tudo isso ser uma complexa metáfora sobre o despertar do homem, ou a prova completa da falta de noções higiênicas da minha irmã. Despertei apressado, tomei um banho rápido e frio, vesti meu uniforme e engoli meu café-da-manhã, como Sócrates engolindo a cicuta. Eu devia ter pressa, afinal, toda jornada de verdade envolve uma peregrinação. Eu tinha a minha. Apesar de ter me tornado um estudante universitário, eu ainda tinha que ir a pé para a faculdade. Não havia aquela ladeira que havia me atormentado, no passado... havia outra, maior! A vantagem seria o fato de que, dessa vez, nem Taniguchi, nem minha irmã, me acompanhariam.

Enquanto subia o que aparentava ser o equivalente a um terço do monte Fuji, pensei, contemplativo, sobre a minha chegada a universidade. Eu, agora, era um estudante universitário. Isso era impressionante. Logicamente, um dia eu me tornaria um, mas o que me impressionava é que eu não me sentia uma pessoa diferente. Eu era exatamente a mesma pessoa que havia sido no colegial, e um tanto parecido com o que era no fundamental. A diferença essencial entre minha vida universitária e minha vida colegial seria o fim de minha escravidão. Nada mais de subordinação em relação à brigada SOS. Isso porque não existiria brigada SOS. Formamos-nos, conseqüentemente o clube acabou. Não sei a exata reação de Haruhi. Imaginei que no dia que o clube acabasse, o universo acabaria, e suas explosões tocariam alguma coisa do Wagner. Enfim, esperei pelo pior, que não veio. Haruhi parecia bastante tranqüila, no último dia de aula. Ela estava mais tranqüila do que Asahina-san, que não parava de chorar – considerando seu passado, sempre havia a possibilidade que fosse de alegria- e do que Taniguchi, que, subitamente, declarou-se para ela, já que os dois nunca mais iriam se ver. Ela, como o esperado, aceitou. Depois de trinta e seis segundos, o dispensou, o que foi seu novo recorde, creio eu.

Pensei que, se ela não estava se manifestando diretamente, ela iria expressar-se através de espaços restritos, e já dormia preparado para acordar em um mundo macabro, com aqueles olhos de ébano me encarando como se pertencessem a um personagem de "Higurashi no Naku Koro Ni". Entretanto, os únicos olhos que eu via, ao acordar, eram os de Shamisen, e com o tempo, acostumei-me a isso. Aparentemente, a teoria de Koizumi estava certa. Droga. Por mais que Nagato e Asahina-san tivessem suas próprias teorias e eu preferisse muito mais confiar em uma das duas do que nele, eu não conseguia encontrar uma teoria falível dele.

Aparentemente, a brigada não tinha mais função. Por quê? Porque Suzumiya Haruhi havia amadurecido. Foi isso que ele me disse, ao entrar em meu quarto, uma noite. Quando escutei batidas na janela, pensei que fosse um ladrão, mas infelizmente era ele. Sem sequer explicar-me porque ele não poderia falar sobre aquilo, durante o dia, em um espaço mais comum, ele começou a explicar o porquê de sua teoria. Parecia lamentar o fato de não ter um jogo de tabuleiro para usar para as suas metáforas.

- Suzumiya-san amadureceu, logo, não somos mais necessários. O único motivo pelo qual continuamos a existir, seria pelo fato dela desejar nossa existência, e não pela necessidade de deter os espaços restritos.

- Como você pode dizer que ela amadureceu se ela ainda quer encontrar espers? Você está me dizendo que ela superou a maturidade de uma criança de cinco anos ou algo assim?

Ele deu uma pequena risada. Desejei, silenciosamente, que ele ficasse quieto, pois seria uma cena grotesca se meus pais chegassem no meu quarto, no meio da madrugada, e me encontrassem com um cara que entrou pela janela.

- Os espaços restritos são frutos dos sentimentos contidos da Suzumiya-san. Quando ela tinha raiva, tristeza ou melancolia que se acumulavam, sem que ela pudesse controlar, ela criava espaços restritos.

-  Isso quer dizer que ela não sente mais isso? Em que ponto a Haruhi ainda está perto dos seres humanos?

Ele deu outra risada e fiz meu pedido por silêncio, através de uma careta de desagrado.

- Ela ainda sente esses sentimentos, mas aprendeu a administrá-los. Eles não são mais uma onda selvagem. Eles se misturaram a racionalidade da Suzumiya-san. De uma maneira mais simples, pode-se dizer que ela aprendeu a conviver com suas perdas, mesmo que ainda sinta dor ou raiva, por diversos motivos. O equilíbrio leva ao fim dos espaços restritos.

- Se não há mais espaços restritos, não há mais necessidade de tantas pessoas intervindo na vida de Haruhi, correto? Além disso, você agora é definitivamente inútil.

- Sua resposta está parcialmente correta. – disse ele, sem se ofender, com seu habitual sorriso – A falta de espaços restritos resultou em um encontro entre a minha corporação, a agência de Asahina-san e uma representante da entidade de dados integrados.

- Uma alienígena?

- Uma interface baseada em carbono, assim como a Nagato-san. A Kimidori-san foi responsável por esse papel. Prosseguindo com o que eu dizia, as três facções decidiram que o fim dos espaços restritos foi algo positivo, mas possuem seus próprios motivos para se manter vigiando a Suzumiya-san. Mesmo parando de criar os espaços restritos, ela não deixa de ser o que é. Seus poderes ainda atingem a forma original de nosso mundo, embora de forma mais direta. Nós não tivemos apenas problemas com espaços restritos, lembra-se?

Era evidente que eu me lembrava. Além do espaço restrito, houve o loop temporal, o gato filosófico, e uma série de problemas causados por Haruhi – e dentre estes, havia diversos que não haviam sido provocados pelos poderes dela, mas pela própria Suzumiya.

- Lembro. – respondi, tentando ser breve.

- O que você disse a respeito da minha “inutilidade” também não está totalmente correto. É verdade que perdi meus poderes, nos espaços restritos, mas existe outro espaço em que nossos poderes agora atuam. Acreditamos que a explicação para essa mudança de poderes, seria para evitar o paradoxo.

- Paradoxo?

- Digamos que uma pessoa do futuro, recebe uma missão.

- Você realmente achou que eu não identificaria que você está falando da Asahina-san?

Ele me ignorou. Aquilo era comum, naquele grupo.

- Ela deve matar uma pessoa, antes que essa tenha seu primeiro filho. Essa pessoa é seu pai. Essa situação forma o paradoxo.

- Por quê?

- Se ela matar o pai dela antes que ela tenha nascido, ela não deveria nascer, mas se ela não nasceu, quem matou seu pai?

- Espere. Isso está muito confuso.

- Exatamente. A fim de evitar o paradoxo, a racionalidade de Suzumiya-san buscou, inconscientemente, uma forma de equilíbrio. O paradoxo seria: Suzumiya-san deseja espers, por isso, nós existimos, mas se nós existimos, mas não podemos aplicar nossos poderes, não somos espers, portanto não deveríamos existir. Entende?

- Se ao menos houvesse gabarito...

- O que quero lhe dizer é que meus poderes atuam em outro plano, portanto, não há paradoxo. Eu continuo sendo um espers e as leis da física não foram quebradas.

- Que plano seria esse?

- Ah. Você não percebeu?

Han?

- Você está sonhando.

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Cheguei à universidade e para o meu enorme choque, deparei-me com uma garota vestida de buny-gail, no portão, distribuindo panfletos. O que me espantava ainda mais era a expectativa com a qual, ela olhava para mim. Pare imediatamente! Não venha na minha direção! Não me faça participar de suas atividades ilícitas, quando eu acabei de entrar na universidade! Eu não irei me envolver com isso novamente, mesmo porque eu não tenho obrigação de fazer isso! O mundo está em equilíbrio e a minha saúde mental também!

- Kyon!

Ótimo. Você pretende fazer com que meu apelido se estenda a minha vida adulta?  Será que é uma sina? Quando eu estiver trabalhando em uma empresa, meus funcionários me chamarão de “Kyon-sama”? Você poderia, ao menos, me chamar pelo meu nome, já que quer me pedir algo que não sou obrigado a fazer.

Eu não pude dizer nada daquilo, pois Haruhi estava com um radiante sorriso e uma roupa de buny-gail. Vendo-a assim, era inacreditável pensar que ela tivesse amadurecido. Era como se eu estivesse vendo a mesma Haruhi de três anos atrás, com um cenário diferente.

- Ajude-me a distribuir os panfletos.

Você percebe que eu não tenho qualquer razão para fazer isso, não é?

- É óbvio que tem! Como vice da brigada, você tem obrigação de acatar as ordens de sua chefe! Senão, como seus subordinados poderiam mirar-se em você!?!

Eu sou o vice? Desde quando? Eu nem sequer sabia que ainda fazia parte da brigada, mas além de permanecer nela, eu, aparentemente, havia ganhado uma promoção.

“ Por que o Koizumi não ganhava esse tipo de tratamento? Espere um pouco. Analisando melhor a semântica da sua construção, eu devo deduzir que você nos considerava subordinados do Koizumi? Eu não sabia disso!”

- Recuso meu posto, humildemente. Os meus princípios revolucionários não permitem que eu participe de um grupo que defende o autoritarismo...

- Fique quieto e distribua rápido, esses papéis! Rápido, entendeu?

Ela praticamente despejou a maior quantidade dos papéis em mim, e distribuiu os poucos que tinha em mãos, alegremente. Eu nunca imaginei que minha primeira promoção seria assim. É impressionante como os princípios revolucionários, quando demonstrados de modo pacífico, normalmente, não surtem muito efeito. Antes de distribuir aqueles panfletos, aproveitei-me da distração de Haruhi, para ler o que havia neles.

Era um panfleto convidando pessoas que tinham interesse em coisas misteriosas, conheciam coisas misteriosas ou que eram coisas misteriosas, a participarem da brigada SOS, um clube universitário com tradição. Riam o quanto quiser.

Era impressionante ver que Suzumiya Haruhi pretendia manter a brigada. Achei que após o colegial, ela não veria mais graça nisso, e tentaria fazer outra coisa. Dominar o mundo, por exemplo. Entretanto, lá estava ela, distribuindo panfletos, enquanto alguns alunos a olhavam admirados. Demorei algum tempo para perceber que os que olhavam admirados eram homens, e que “admirados” era um termo leve para referir-se ao que eles estavam provavelmente sentindo por Haruhi. O que posso dizer sobre isso, sem usar uma linguagem agressiva é que eles não estavam sequer olhando para os panfletos que ela distribuía. Finalmente, um deles aproximou-se dela, puxando assunto. Nesse ponto, tive que intervir, praticamente por uma necessidade física.

- Ei. Haruhi.

- O que é, Kyon? Veja! Essa pessoa diz que há um caso de maldição na família dele, que se estende a sete gerações! Você entende? Até o número é cabalístico! Mesmo que seja mentira, a brigada SOS tem a obrigação de investigar esse tipo de fenômeno. Eu estava marcando um dia para nos encontrarmos e falarmos sobre o assunto.

Malditos universitários. Eles não eram como os colegiais, que apenas ficavam olhando a distância, impressionados. Ele já havia até elaborado uma abordagem específica para a Haruhi!

- Não interessa. Isso é visivelmente uma farsa. Pessoas como você são sempre seqüestradas, sabia?

- Qual é o problema? Sem riscos, não há lucros.

- Eu aposto que essa frase é mais dita por traficantes, do que por empresários.

- Do que você está falando!?! Eu...!

- Ei, sobre o nosso encontro...

- Fique quieto! Eu estou discutindo um problema importante, aqui!

E assim, o cara desistiu. Não era exatamente a cena que eu imaginava, mas funcionou. Entretanto, ainda havia alguns de indivíduos como aquele, por perto, portanto, tomei uma decisão.

- Vamos dividir o trabalho. Eu entrego panfletos para os caras, e você para as garotas.

- Por que isso? Vai diminuir nossa produtividade.

“Pare de falar como uma pessoa plenamente integrada ao sistema capitalista”

- Se você continuar entregando panfletos, vestida nessas roupas, pessoas do sexo masculino se aproximarão da brigada por motivos frívolos.

 - Como você consegue enxergar um desfecho assim para algo tão profissional? Seu depravado. Eu devia ter imaginado que você tinha esse tipo de natureza, desde que você encarava os peitos da Mikuru-chan...

Eu estou certo de que eu era discreto!

Apesar de discordar com o insulto de Haruhi, passei a distribuir os panfletos, do lado dela. Devido à freqüência com que fatos desagradáveis aconteciam toda vez que ela se chateava, acostumei-me a tentar cuidar dela. Ela era uma excêntrica, evidentemente. Contudo, ainda era uma garota. Se não houvesse alguém para intervir, ela se chatearia e acabaria com o mundo ou faria filmes horríveis. Não era como se eu não gostasse de Haruhi. Seria impossível dizer algo assim, depois dos três anos em que convivemos. Na verdade, ela ainda era a garota com quem eu mais havia conversado, excetuando, possivelmente, a minha irmã. Eu não gostava de minha condição precária naquela brigada, mas eu certamente não tinha nenhum rancor particular por Suzumiya Haruhi.

Subitamente, ela me empurrou com o cotovelo. Aquela mulher agressiva! O que ela queria agora?

- É ridículo ter você me vigiando, aqui. Afaste-se! Eu irei distribuir apenas para as garotas, então não há problema, certo?

Ela estava me escutando? Ela realmente estava me escutando? Isso me deixava um tanto feliz.

- Eu preciso ser seletiva para encontrar um novo mascote moe! Esse é um papel-chave na brigada!

Ao menos finja que não tomou sua decisão, baseando-se apenas na sua lógica incompreensível. Isso é frustrante.

Junto a Haruhi, distribuí os panfletos, sem importar-me com o fato que chegaria atrasado a minha aula e que provavelmente acabaria como um escravo, novamente. Quando eu estava perto de Haruhi, era como se todos os problemas do mundo fossem insignificantes, mesmo que a razão disso fosse porque os problemas que ela geralmente provocavam eram muito maiores. Estar perto dela era empolgante, ainda que fosse o tipo de empolgação que futuramente pode provocar um infarto. Enfim, Haruhi era Haruhi. Éramos como cargas opostas. Por mais diferentes que fôssemos, uma inexplicável força, talvez o hábito, talvez a minha pura covardia em desmanchar relacionamentos antigos, ou minha estranha tendência masoquista, impedia que nos separassem. Eu não estava eufórico em perceber que continuaria com Haruhi. Apenas aceitava isso como um fato natural, como as pessoas aceitam a gravidade. O que era aquele conformismo? Sigh. As minhas forças para me debater na rede pareciam ter esgotado. Mesmo assim, o sorriso de Haruhi não saía de meus olhos que conseguiam ignorar até mesmo o uniforme de buny-gail.

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Assim que terminei de assistir às aulas, saí para procurar por Suzumiya Haruhi, pela faculdade. Por que eu estava procurando por ela? Uma faculdade certamente não cederia uma sala a um clube com atividades suspeitas como a nossa brigada. No colégio, ela ainda podia burlar algumas regras, pois o presidente do conselho estudantil era um esper, mas ela não conseguiria o mesmo feito na universidade. Logo, eu estava procurando Haruhi, pois não fazia ideia de onde ela estaria e ao deixá-la solta, eu me sentia como o doutor Frankestein, após libertar o seu monstro.

A minha estamina não era alta. Se eu fosse um personagem de videogame e fosse morto, o jogo não teria a opção de continuação, e meu corpo levitaria na tela eternamente. Não sei, portanto, o que me animou a continuar a procurar por Haruhi, por toda a universidade, quando eu não conseguia uma única pista de onde ela pudesse estar. Por que ela não podia ter desaparecido antes que eu a reencontrasse? Por que justamente no momento em que eu queria vê-la, ela não aparecia? Aquela tsundere!

- Com licença, você viu uma garota do primeiro ano, com cabelos pretos e curtos?

- Ah...

- Ela estava usando uma roupa de bunny-gail, antes do início das aulas.

Todos se interessavam pela minha busca, depois que eu revelava essa segunda parte. Após uma longa jornada, uma garota finalmente soube me responder onde ela estava.

- A Suzumiya-san está na sala do clube dela.

- Sala?

Ela conseguiu uma sala? Como? Que tipo de crime terrivel ela havia cometido para obter o que queria? Eu realmente não gostaria de ajudá-la a enterrar um corpo...

- Não se preocupe. A Suzumiya-san tem autorização do diretor. Os líderes dos clubes foram se cumprimentar em uma reunião oficial e ela estava presente.

Eu acredito que ela tenha invadido o local. Acredito tanto nisso, quanto acredito que morrerei se saltar de um avião.

A garota não parecia estar mentindo e decidi fazer as perguntas a própria Haruhi. Após descobrir a sala em que ela estava, dirigi-me ao local, imediamente, gastando o resto de energia que eu possuia, em uma única e impulsiva entrada triunfal.

- Haruhi!

Apesar do meu estado alterado e da minha camiseta estar completamente coberta de suor, ela não pareceu estranhar meu comportamento. Ei. Você poderia ao menos ficar um pouco chocada? Eu não gostaria que você achasse o meu comportamento atual, natural vindo de mim.

- Ah, é apenas você.

- Ignorarei esse "apenas". Escute. O que você está fazendo aqui?

- Não é óbvio? - perguntou ela , cruzando as pernas e os braços, explicando algo que era óbvio apenas para ela - Eu estou esperando os candidatos a membros da brigada.

- Esperando? Você não vai seqüestrá-los, como fez da primeira vez?- perguntei, enquanto tentava ligar o ventilador da sala, que, por alguma razão, aparentava não estar funcionando.

- É diferente. Estávamos no ensino médio. Éramos um bando de desocupados. Na universidade, as pessoas estão mais comprometidas, portanto, eu quero selecionar membros, dentre aqueles que estiverem interessados.

- Não diga algo que parece tão maduro, quando você nem sequer conseguiu negar que raptou os membros anteriores.

Haruhi, subitamente, inclinou-se um pouco para frente e me olhou de uma forma estranha. Era um tanto desconfortável ser encarado assim, embora eu já devesse estar acostumado.

- O que é? Você está tentando transmitir energia para mim, novamente? Devo realmente avisar que esse método não funciona.

- Eu apenas reparei que você parece sujo. Eu não transmito minha energia desnecessariamente.

Ela parecia séria. Eu não sei que expressão meu rosto adquiriu. Certamente alguma frustrada. Ela somente havia percebido meu estado, agora? Depois de todo esse diálogo? Ela ao menos podia fingir que se importava comigo. Eu estava severamente arrependido de ter procurado tanto por ela. Eu nem sequer tinha um motivo para procurar por ela, em primeiro lugar!

- Desculpe-me por não estar apresentável, senhora das trevas.

- Por que você tem que revidar a qualquer comentário com sarcasmo!?! Que irritante! Nós não podemos nos apresentar aos futuros membros da brigada com você, nesse estado. Vamos embora.

- Sério?

Talvez não tenha sido tão ruim a minha camiseta ter sujado. Eu pensava nisso, mas quando a vi sair, tive um súbito, violento e provavelmente masoquista impulsivo, e agarrei o braço dela. Quando ela voltou-se para mim, visivelmente assombrada, eu declarei:

- Vamos para casa, juntos.

Não é como se eu esperasse uma cena típica de shoujos, em que eu e Haruhi andaríamos lado-a-lado, enquanto ela tentaria pegar minha mão, mas ficaria nervosa e coraria, forçando-me a tomar uma iniciativa. Eu queria voltar para casa com Haruhi, pois os níveis de violência no Japão subiram desde a crise econômia de 98 e também porque, por alguma razão, aqueles olhos castanhos e brilhantes, pareciam-me preenchidos por algum sentimento triste e eu senti que não poderia deixá-la sozinha.

Argh. Seria hábito por conta da quantidade de espaços restritos que tentei evitar? Eu realmente não queria vê-la triste, mesmo que me sentisse um idiota toda vez que a via sorrir.

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-...Você está errada! Ele acordou e foi ver os filhos dele! É visível que o pião está prestes a parar, na última parte do filme!

- Mas nós não vimos o pião parar claramente, o que é um indício que a esposa dele estava certa e que ele estava mesmo preso em um sonho! Além disso, o pião não é grande prova, pois ele era o totem da esposa dele! Os totens não podem ser compartilhados!

- Eles não podem ser compartilhados, para que você não seja enganado por outras pessoas, no sonho!

- Não é! É para que a pessoa não confunda o sonho com a realidade!

- Que sentido há nisso!?! Mesmo os atores contratados na cena das crianças...!

- Kyon!

- O que é!? Não interrompa meu raciocínio. Eu mesmo estou ficando confuso!

- Nós já chegamos a minha casa.

Ah.

Ela já ia entrando, quando eu a detive novamente.

- Haruhi.

- O quê? Que olhar suspeito. Você é um daqueles que assaltam as pessoas quando elas chegam em suas casas?

Eu gostaria de perguntar quem eram esses, mas algo mais importante estava em minha mente.

- Você está chateada com algo?

- É evidente que não. - ela respondeu mais rápido do que eu esperava e com uma expressão mais impaciente do que eu previa - Eu sou a chefe da brigada SOS. Eu não tenho tempo ou necessidade de apegar-me a dramas pessoais, enquanto há tanto a ser feito.

Ela fala como a líder de uma revolução.

Haruhi sempre manteve certa distância de mim. Não apenas de mim. Ela era isolada das pessoas de modo geral e eu não deveria estranhar tal comportamento vindo dela. O problema é que aquela Haruhi que estava sempre trancada em seu próprio mundo, abriu uma pequena fresta para mim. Uma fresta que parecia grande para os outros, mas que progressivamente me parecia cada vez menor. Eu convivia com ela há muito tempo e ela era a garota que me conhecia melhor, mas o espaço que eu parecia ocupar na vida dela era muito menor do que ela ocupava na minha. Mesmo o Koizumi e a Nagato pareciam compreendê-la melhor do que eu. Será que era tão difícil entendê-la sem possuir uma ampla base de conhecimentos filosóficos?

Haruhi não prestou atenção em meu monológo silencioso, entrando em casa rapidamente. Suspirei pesadamente. De que forma meu primeiro ano na universidade estava se diferenciando do meu primeiro ano no colegial? Eu não ficaria surpreso se três indivíduos aparentemente comuns se apresentassem para mim como uma viajante do tempo, um esper e uma entidade orgânica baseada na forma dos compostos de carbono.

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No dia seguinte, terminada a aula, eu estava entrando na sala da brigada, quando vi aquele sorriso que faria qualquer um ser preso por homicídio violento.

- Olá, Kyon-kun.

Nagato também estava na sala, sentada próxima a janela, com a serenidade de alguém que já havia alcançado o nivarna. Ela cumprimentou-me com um breve aceno de cabeça. Asahina-san, que também estava presente, estava vestida com um cosplay de maid e já preparava chá, quando me viu e correu em minha direção de um modo incrivelmente adorável.

- Kyon-kun, boa tarde! Eu já irei servir o chá!

Diante daquele reencontro com os meus colegas do ensino médio, apenas um pensamento me vinha a mente.

"Isso é um flashback?"

- A Suzumiya-san ainda não chegou. Você gostaria de sentar-se comigo para jogar xadrez?

Era estranho ver a Haruhi ausente. Sempre que ela se atrasava, trazia, quando chegava, um de seus projetos excêntricos, junto com um sorriso que drenava totalmente minha energia. Sigh. Eu deveria estar preparado.

Sentei-me com Koizumi e comecei a partida, enquanto Asahina-san servia-me com um pouco de chá. Obviamente a partida era apenas um pretexto para que Koizumi conversasse comigo sobre assuntos incômodos, fingindo dizê-los por pura casualidade.

- A Suzumiya-san ainda não selecionou os novos membros, não é?

- Se ela usasse critérios mais racionais para escolhê-los, ela provavelmente já teria uma equipe completa. Afinal, vocês possuem infiltrados na universidade, não é?

Asahina-san quase derrubou o chá sobre minha mão, o que foi um considerável susto para nós dois considerando-se que ele estava perceptivelmente quente. Ela felizmente conseguiu evitar que isto ocorresse. Eu não gostaria que o último uso de minhas mãos tivesse sido jogar xadrez com o Koizumi. Ela me olhou com uma expressão de uma esposa que acabou de ser agredida pelo marido, mas isso não mudou o fato que eu tinha certeza de que havia viajantes do tempo trabalhando naquela universidade. Nem mesmo um rosto bonitinho e um cosplay de maid me fazem desprezar a realidade. Argh. Como o meu espirito é amargo.

Nagato, diferente dela, não se importou com o meu comentário e, na verdade, em seus olhos havia uma suave aprovação, como se ela elogiasse meu conhecimento que nossa brigada estava sendo constantemente vigiada por estranhos. Koizumi, como sempre, complementou ainda mais o que eu já sabia, mesmo que eu não tivesse feito nenhuma pergunta sobre isso.

- Sim. Pode-se dizer que há vários dos nossos com grandes expectativas de ser convocado pela Suzumiya-san, mas, sendo franco, a melhor expectativa seria manter a equipe original. Como conseguimos evitar que Suzumiya-san fizesse espaços restritos, os membros de minha coorporação acreditam em nosso potencial para mantê-la em um equilíbrio adequado. A entidade também pensa de modo parecido, não é, Nagato-san?

- Mudanças possuem maior tendência ao caos do que uma forma de vida padronizada. Isso ocorre, pois os seres baseados em carbono necessitam de uma regularidade autoimposta para se regrarem, durante seu período de atividade na Terra. Mudanças tornam os seres baseados em carbonos instáveis. A entidade teme que a forma Suzumiya Haruhi não consiga expor todo seu potencial autoevolutivo, caso esteja em instabilidade, portanto, almeja-se manter as formas tradicionais como método de controle passivo.

Koizumi ouvia Nagato atentamente, com a mão no queixo, parecendo reflexivo, quando ela terminou, ele ergueu o rosto e sorriu para ela:

- Compreendo.

- Sério!?

- Basicamente, a Nagato-san está dizendo que concorda comigo.

Eu sinto um grande controle de informações por trás dessa frase.

- Mesmo que você duvide de mim, não há qualquer malefício em manter a equipe original, não é? Então, nos auxilie.

Na verdade, passar mais quatro anos convivendo com o cinismo filosófico de Koizumi e jogando jogos de tabuleiro, a princípio me pareceu um malefício, mas, na verdade, eu era realmente apegado àquela brigada por razões que não consigo imaginar. Um cotidiano sem aqueles momentos chatos me pareceria terrivelmente monótono. Uma pessoa acostumada a ver filmes coloridos, dificilmente voltará a assisti-los em preto-e-branco, mesmo que a qualidade do segundo seja superior a do primeiro. É uma questão de hábito e eu acredito seriamente no poder do hábito. Todavia, havia uma questão mais importante do que o sentimentalismo:

- Como vocês poderiam permanecer na brigada? Vocês nem sequer entraram nessa faculdade!

- Ah, isso não é um problema. Nosso clube terá bastante liberdade aqui. Eu não posso entrar em detalhes, mas a coorporação possui grande influência nessa faculdade, de modo que detalhes burocráticos podem ser facilmente ignorados por nós.

" Cinco entre seis pessoas são espers"  - pensei com amarga ironia ao perceber que a coorporação de Koizumi não era muito diferente de uma máfia.

- Então foi por isso que Haruhi conseguiu fundar esse clube sem sentido?- perguntei, tentando ignorar internamente que Koizumi praticamente governava uma universidade em que nem estudava.

- Exatamente.

Bebi o chá de Asahina-san como se bebesse água, após uma longa corrida pelo deserto. Apesar de sentir minha língua percorrer o inferno a cada gole, afinal, o romantismo não diminui a temperatura da água, a minha alma se sentia em paz. Eu continuaria a viver minha vida colegial, sendo que não precisaria me preocupar com a formação de espaços restritos. Não me parecia uma má idéia.

Eu nem cogitei na hipótese de que seria Suzumiya Haruhi e não a reitoria, que iria reclamar da presença dos antigos membros da brigada.

Ela chegou a sala com cerca de vinte minutos de atraso, com a expressão melancólica utilizada por Napoleão, após a batalha do Warteloo, mas quando viu os membros presentes na sala, seu rosto mudou inteiramente. Gostaria de dizer que o rosto de Haruhi se iluminou e que ela começou a chorar emocionada, enquanto todos davam um grande abraço coletivo, mas essa é a realidade e a protagonista é Haruhi. Não esperem finais felizes. Ou melhor, não esperem nada. Ela é totalmente imprevisível.

- O que vocês estão fazendo aqui!?! - ela perguntou, de forma totalmente agressiva. Foi um choque vê-la daquela forma, considerando-se que eu raramente via seu olhar preenchido de tamanha raiva - Mikuru-chan, por que você está vestida assim!?!

A belíssima face de Asahina-san rapidamente perdeu toda a sua cor. Ela parecia uma das vítimas de conde Drácula.

- B-Bem, e-eu pensei que...

- Tire isso, imediatamente! Esse é um cosplay da personagem mascote da brigada! Você não tem o direito de usá-lo!

Eu gostaria de presumir que aquilo fosse uma piada estranha, mas não poderia ser isso. Haruhi era sempre séria.

- Koizumi-kun, Nagato, Mikuru-chan, eu realmente não sei o que vocês estão fazendo aqui! Vocês não fazem parte desta brigada! Saiam!

Aquilo era consideravelmente cruel. Haruhi estava conseguindo me fazer ter pena de Koizumi! Ela estava rejeitando pessoas que haviam a servido por anos, sem que houvesse nenhuma razão suficientemente convincente. Uma pessoa assim definitivamente não deveria liderar o setor industrial japonês.

Nagato foi a primeira a reagir, saindo da sala imediatamente, sem parecer importar-se com a tensão envolvida naquela situação. Na verdade, era como se Haruhi houvesse acabado de alertá-la que ela havia entrado na sala errada. Asahina-san, por sua vez, parecia completamente confusa quanto ao que deveria fazer. Ela olhava para a porta, para mim e para Haruhi, esperando que um desses elementos lhe desse a resposta. Eu não faria isso. Normalmente, eu teria socorrido Asahina-san imediatamente, posicionando-me contra a posição arrogante e insensata de Haruhi, não por ser um aliado da justiça, mas pela minha simples aversão ao sofrimento daquela bishoujo. Dessa vez, no entanto, eu não poderia fazer isso. Como eu poderia me opor a Haruhi tirar pessoas do clube que ela mesma criou? Eu não tinha autoridade para isso. Além disso, ela não estava sendo excessivamente agressiva. Não estávamos chocados por Haruhi estar irritada. Estávamos chocados, pois ela estava expulsando membros da brigada que lhe pareciam valiosos, até poucos meses atrás.

Aquele silêncio terrivelmente constrangedor, surpreendentemente, foi quebrado pela intervenção de Koizumi.

- Eu gostaria de entrar na brigada. - ele disse, sorrindo cordialmente, apesar do olhar repleto de intenções assassinas de Haruhi.

- Não seja tolo! Você nem sequer está nessa universidade! Como diabos você poderia entrar no clube!?!

O que ela diz realmente faz sentido. Ela não conta com o sistema similar ao da maçonaria em que Koizumi é um dos participantes.

- Eu me esforçarei.

- Esforçar-se inutilmente é pior do que não fazer nada! Desista. Vocês não são mais membros do clube. Mikuru-chan, o que você ainda está fazendo com essas roupas!?!

Haruhi avançava em direção a ela de modo predatório, o que fez Asahina-san produzir um som agudo de desespero, no entanto, o ataque por alguma razão não foi deferido. Achei que no instante seguido ao ímpeto de Suzumiya Haruhi, eu veria uma bela garota ter suas vestes arrancadas, e que iria fugir com Koizumi imediatamente para o corredor. Por que Haruhi se deteve? Eu nem sequer sabia que ela possuía capacidade de se deter! Ela sempre foi similar a uma série de explosivos que não param sua destruição em massa, após a explosão da primeira dinamite. Ainda assim, ela parou e disse, com seu semblante sério, mas sereno:

- Troque de roupa. Eu e Kyon esperaremos lá fora.

Nós realmente temos que sair? E por que o Koizumi não foi convidado também? – não tive coragem nem tempo de perguntar isso a Haruhi, pois ela me puxou pela gravata violentamente negando totalmente meu direito de escolha. Koizumi saiu nos acompanhando. Achei que ele se ajoelharia e juraria lealdade a Haruhi, mas seus atos foram bem diferentes do que previ. Ele a segurou pelos ombros, e a encarou seriamente. Foi a primeira vez que vi Koizumi olhar para ela daquela forma.

- Eu continuarei vindo, todos os dias, até que você me aceite de volta.

Koizumi, misteriosamente, parecia um marido arrependido de ter traído a esposa. A reação de Haruhi foi...

- Você é idiota!?!

Koizumi, desista. Sério. Se seu melhor plano é vencê-la através de sua teimosia, devo dizer que você é péssimo em fazer planos. Não é a toa que você perde grande parte dos nossos jogos. Se você passar um desafio assim, ela não somente o vencerá, como o transmitirá as futuras gerações, caso morra antes de você. Em resumo, não espere retornar mais a essa brigada. Concentre-se em sua vida universitária e abra um clube de jogadores de Othello.

- Eu já esperava uma reação assim, Suzumiya-san.  No entanto, eu não desistirei. – ele comentou, sorrindo novamente. Que indivíduo incompreensível.

- Eu já disse que todo esforço desnecessário é...!

- Eu não saberei se é um esforço desnecessário, se não tentar. - Koizumi estava desafiando Haruhi. Fred x Jason.

- Faça o que quiser! – ela bufou, abrindo a porta da sala, onde Mikuru se despia, abruptamente – Ei! Mikuru-chan! Você está levando tempo demais! Apresse-se!

- Kyan! – felizmente ou infelizmente, dependendo do ponto de vista, Mikuru estava praticamente vestida, faltando a ela, somente tirar o acessório de maid da cabeça. Entretanto, ela não pôde evitar levar um susto e eu não a julgava por isso. Haruhi, impaciente, arrancou o acessório da cabeça dela, o que fez o rosto de Asahina-san adquirir os traços adoráveis e tristes de um filhote abandonado na chuva. – S-Suzumiya-san!

- Vão embora!

No fim, Nagato foi a mais sensata ao sair imediatamente.

Finalmente, Asahina-san e Koizumi se retiraram e somente eu e Haruhi ficamos na sala do clube, com a roupa de maid ainda jogada sobre a mesa, perto de um jogo de Othello. Haruhi parecia melancólica. Eu podia dizer isso, sem sequer precisar ver a expressão em seu rosto. Eu sempre a observava e podia dizer que aquelas costas a minha frente, imploravam-me, silenciosamente, que eu não fizesse perguntas. Involuntariamente, permaneci calado.

Ela sentou-se em uma mesa próxima a janela, que, presumivelmente, teria um computador, em breve, e deitou sua cabeça.

- Haruhi. – eu me aproximei, mesmo que por dentro estivesse assustado – Ei, Haruhi.

Ela ergueu o rosto. Não totalmente. Apenas o suficiente para que eu visse seus olhos. Droga. Eu havia esquecido como ela ficava linda, quando estava deprimida.

- O que é? – ela perguntou. Eu sentia rancor em sua voz, embora não soubesse exatamente do que ela me culpava.

- Por que você expulsou os membros do grupo, daquela forma? Não era necessário fazer isso. 

- Defendendo a sua querida Mikuru-chan, novamente, não é? – ela disse, com um sorriso de escárnio, que me fez cambalear um pouco para trás – Isso é bastante cansativo. Ela já está na universidade. Não precisa de um príncipe encantado que venha sempre protegê-la.

- Não é isso.

Eu não me considero um príncipe ou algo assim.

- Se você está apaixonado por ela, declare-se de uma vez! Não há nada de divertido no amor neoplatônico! Não tente usar a minha imaculada brigada para os seus propósitos sujos!

- Haruhi!

Em um impulso agressivo, eu soquei violentamente a mesa em que Haruhi estava. Os meus sentimentos coléricos rapidamente resfriaram, após serem convertidos em uma ação, mas quando me acalmei e percebi o olhar dela, fiquei completamente paralisado.

O olhar intensamente castanho dela adquiriu um brilho misteriosamente triste, mesmo que ela me encarasse com censura. Aquele olhar era de tal modo intenso, que não consegui falar algo ou me mover. Eu devia parecer um idiota, naquele momento.

- Você quer sair dessa brigada também? É isso? – ela me perguntou isso com densa seriedade em sua voz. Ela não parecia estar me ameaçando. Aquela era realmente uma pergunta. Eu me senti imediatamente assustado, pois de todos os acontecimentos, apenas um veio a minha compreensão: eu estava prestes a ser afastado de Haruhi.

Suzumiya Haruhi. O que aquela garota representava para mim para me fazer tremer com a simples possibilidade de ser rejeitado por ela? Eu não aceitaria uma resposta clichê, naquele momento. Na verdade, eu nem queria uma resposta. Eu apenas deveria admitir que não queria sair daquela brigada. Era uma vontade minha, que não tinha nada haver com a proteção do mundo, do universo ou da Asahina-san. Eu não me importava com o modo como a minha presença interferiria na metafísica, eu apenas não queria me afastar dela.

Eu sempre tive uma vida entediante e o mundo que Haruhi me oferecia era certamente cansativo, mas me atraía. Eu devo admitir que me diverti bastante com as atividades estranhas dela e que fiz amigos e experiências importantes. Eu sempre reclamei muito, mas não acredito que esse seja um motivo justo o suficiente para fazê-la me evitar. Eu reclamava, mas, no fim, sempre a apoiava. Talvez o meu coração preenchido de bondade não a apoiasse, mas fisicamente eu a apoiava O meu corpo deve ter algumas lesões que provem isso. Por estas razões, eu não permitiria que ela fizesse comigo o mesmo que havia feito com os outros membros da brigada.

- Nós estamos na mesma faculdade. Não há qualquer razão prática para você me expulsar. A minha expulsão seria somente a prova de que você não é uma líder apta a controlar seus membros. – respondi, dando de ombros, embora não estivesse tão confiante se minhas palavras causariam o efeito que eu desejava em Haruhi.

- Cale a boca!

Eu esperava uma resposta mais original e completa.

Ela se levantou, pegou sua bolsa e saiu da sala, sem sequer trancar a porta. Embora ela parecesse irritada, senti que não faria mal se eu a seguisse e fiz isso. Andamos em silêncio por um longo tempo. Eu sabia que ela havia percebido minha presença, pois seus ombros erguidos provavam que ela estava impaciente com a minha atitude e que em breve teria uma explosão de cólera. De repente, ela parou e eu me preparei para suas palavras e possivelmente para algumas luxações, quando ela me disse, em tom calmo, mas com um olhar arrogante:

- Por que você está me seguindo? Realmente me incomoda quando uma sombra maior cobre a minha.

- Você não quer estar à sombra de ninguém, não é?

- Como assim? – ela perguntou, com as mãos na cintura, olhando para mim como se observasse algo digno de vômito – Você é idiota?

Esqueça, esqueça.

- Eu estou te acompanhando até sua casa. Só isso.

- Por quê?

- Porque ir com uma garota para casa é uma valorizada experiência estudantil.

- Há outras garotas. – ela respondeu, rapidamente, virando o rosto.

- Eu acabei de entrar na faculdade e não conheço nenhuma.

- Você conheceria se não ficasse perseguindo a sua chefe de brigada!

Não chame meu gesto cavalheiresco e maduro de perseguição, mulher insensível!

- Eu posso conhecer outras garotas, mesmo que eu persiga você. – eu disse, sorrindo, tentando transmitir uma confiança que não tinha. – É sério. Então, você pode parar de dar esse sorriso de deboche? Ele me dá vontade de chorar.

- Bem, - ela disse, sem tirar aquele sorriso do rosto – talvez você realmente consiga fazer isso. – a ironia dela parecia escorrer de todos os poros de seu corpo – mas e quanto a mim?

- Como assim?

- Como eu irei conhecer outros garotos, se você ficar me perseguindo?

-...

- Foi brincadeira. Eu não pretendo sair com ninguém, agora. Homens seriam egoístas, iriam querer atenção e eu não posso abandonar a brigada.

Após ela dizer, isso ela já estava abrindo o portão de sua casa, quando um abominável impulso apossou-se de mim, e antes mesmo que eu pudesse me desesperar com o que fazia, chutei o portão da casa dela e disse, seriamente:

- Não faça mais esse tipo de brincadeira.

Ela não parecia ter gostado do meu gesto.

- Quem você pensa que é para chutar o meu...?!

- Eu estou falando sério.

- Por quê? – ela perguntou, com os braços cruzados, e seus olhos em posição de ataque. Apenas uma resposta veio a minha mente.

- Porque isso é idiota.

Sem coragem de encará-la, eu saí de lá, apressado, temendo que ela me atirasse algo na cabeça.

______________________________________________________________________

Cheguei a minha casa, tomei um banho frio e bebi leite. Eu precisava alcançar um estado de paz interior para esquecer as minhas ações anteriores. Achei que aquele sentimento terrivelmente apertado em meu peito fosse decorrência do cansaço do dia ou de carência de cálcio, mas mesmo após os meus procedimentos que normalmente me curariam facilmente, eu ainda sentia que havia uma rave dentro do meu coração. Fui jogar videogame com a minha irmã, tentando ignorar as memórias daquela tarde, mas aquele sentimento incômodo continuava em seu árduo trabalho de me deixar totalmente inquieto. Será que eu conseguiria dormir?

A campainha tocou e quando fui atender, percebi que os visitantes inesperados eram Nagato, Koizumi e Asahina-san.

- Koizumi, prepare-se para sua segunda expulsão.

- Você tem um senso de humor tão estranho. – ele comentou, sorrindo, enquanto invadia a minha casa. A propriedade privada não vale nada mesmo em um sistema capitalista como o nosso?

- Kyon-kun, realmente nos perdoe por vir visitá-lo tão tarde, mas tínhamos assuntos muito importantes a tratar com você.

Asahina-san não é um problema que você venha a minha casa de noite, mas seria mais divertido se você não estivesse acompanhada por esses dois e o tema de nossa conversa não fosse a Haruhi.

- Ah, tudo bem. Você veio com esses dois?

- N-Não! – ela disse, balançando os braços, parecendo agitada. Não é como se você tivesse trazido bandidos a minha casa. Você pode se acalmar um pouco. – N-Nós apenas nos encontramos coincidentemente!

Eu realmente adorava a expressão assustada incrivelmente linda de Asahina-san, mas, infelizmente, eu não colocava muita credibilidade nas coincidências daquele grupo, portanto, olhei para Nagato que me parecia confiável e fiz a pergunta com o meu olhar.

- Equivalência de interesses.

- O que você quer dizer é que de fato foi uma coincidência?

- Não inteiramente. Uma coincidência seria um fato que ocorre sem valores de potencial agregação sendo considerado pela sua baixa possibilidade algo feito pelo acaso, enquanto nosso encontro foi propiciado devido aos nossos interesses comuns que levariam ao mesmo destino por razões logicamente justificáveis. O potencial desta ocorrência era relativamente considerável, portanto, apenas uma interferência antinatural poderia evitá-la.

- Eu não entendi muito bem, mas... o que você quer dizer é que vocês não se reuniram de propósito para me dizer algo?

- Correto.

- Isso me deixa mais tranqüilo.

Eu não gosto da idéia de Koizumi e Asahina-san encontrando-se secretamente ainda que Nagato esteja no meio.

Quando dei por mim, aqueles três já estavam sentados e eu estava servindo chá a eles. A hierarquia da brigada realmente modifica algo nas relações sociais. Por alguma razão, eu era incapaz de deixar de servi-los, mesmo estando na minha própria casa. Bem, ao invés de reclamar eu deveria ser grato ao fato que Koizumi escolheu um cenário mais comum para o nosso diálogo. Que viessem os pedidos e informações deles. Eu estava no meu próprio território!

- Como você já deve ter previsto, nós viemos aqui para falar sobre a Suzumiya-san. Assim como a Nagato-san disse, nosso encontro não foi combinado, mas provavelmente iríamos nos encontrar de qualquer modo, pois temos um assunto em comum.

- Eu estou ouvindo, então não pare de falar de repente, para tentar dar um efeito dramático.

- Embora não saiba precisamente as razões que guiaram as duas senhoritas à sua casa, acredito que elas vieram aqui para falar com você, a respeito da entrada de novos membros na brigada.

Asahina-san teve um sobressalto, como se alguém subitamente tivesse colocado uma faca contra suas costas, e olhou para Koizumi parecendo prestes a chorar. Nagato apenas permaneceu tomando seu chá. Pensando bem, na primeira vez que fui à casa de Nagato ela serviu bastante chá. Quem sabe ela goste disso? Mesmo uma organóide alienígena pode ter suas preferências pessoais, além disso, apesar da expressão inalterável dela, eu tenho certeza que Nagato possui vários sentimentos em relação à brigada. Achei que ela seria sincera se eu a indagasse, mas isso não foi necessário. Em um raro evento, ela falou por conta própria:

- Sim. As suposições dele podem ser confirmadas. Eu vim aqui para lhe requisitar que consiga fazer com que Suzumiya Haruhi aceite outros agentes similares a mim, dentro de seu clube. Eu trouxe fichas com dados sobre estes, para auxiliar a sua tarefa.

- Tarefa? – perguntei um tanto desconfortável. Eu não queria um dever assim.

- E-Eu também gostaria, Kyon-kun... – disse a Asahina-san, abaixando sua cabeça, constrangida -... que você escolhesse um dos nossos agentes. N-Na verdade, assim como a Nagato-san eu também trouxe fichas.

Asahina-san, enquanto me entregava os documentos de alguns viajantes do tempo, parecia estar me entregando uma carta de amor. Sigh. Você não deveria desperdiçar esse olhar amável em uma situação tão desagradável, Asahina-san.

Por motivos que ignoro, eu aparentemente havia sido escolhido para selecionar os novos membros que entrariam na brigada. Pelo visto, os antigos membros de minha brigada queriam que eu os ajudasse a manter pessoas a espionando. Eu me sentia como alguém convidado a participar da máfia. Além disso, eu tinha uma dúvida.

- Por que eu devo fazer isso? A Haruhi quer conhecer aliens, espers e viajantes do tempo, não é? Então, o ímã mágico que a rodeia não seria capaz de fazê-la escolher pessoas como vocês mesmo que eu não interferisse?

Houve um momento de silêncio. Asahina-san olhou para mim, como se estivesse apavorada. Nagato não teve qualquer reação. Koizumi sorria. Parecia que eu observava uma fotografia.

- É apenas uma garantia. – disse Asahina-san, sorrindo, mas por alguma razão, senti insegurança em sua voz.

- Nós estamos indo. – declarou Nagato, levantando-se subitamente. Asahina-san, ao vê-la de pé, rapidamente ajeitou-se e também se preparou para sair.

- K-Koizumi-kun, você não vem, também? – perguntou Asahina-san.

- Não, obrigado. – ele respondeu sorrindo.

- E-Eu gostaria que você me acompanhasse até a minha casa...

Não! Asahina-san! Não deve ser a ele que você deve fazer esse tipo de pedido! Por alguma razão, sinto que seria muito mais perigoso se você fosse com ele, do que se fosse desacompanhada!

- Não, obrigado. – ele rejeitou, cordialmente, fazendo com que ela saísse com um adorável sorriso constrangido, de minha casa. Haruhi fez bem ao escolher Koizumi como um esper. Uma pessoa que conseguia dispensar com tanta facilidade o pedido de uma adorável beldade como Asahina-san, não deveria pertencer ao gênero humano.

- Eu fico bastante impressionado com a forma como você consegue rejeitar um pedido como aquele. – comentei, com sinceridade, enquanto levava as xícaras para a pia.

- A Asahina-san não estava querendo que nós dois conversássemos a sós. No entanto, o truque que ela aplica em você, não tem o mesmo efeito em mim.

- Truque?

- Eu gostaria de falar do assunto que nos é relevante.

- Se você quer dizer para mim que quer que eu escolha alguns membros da sua agência e que trouxe as fichas deles, eu devo dizer que você tem carência de criatividade.

Ele deu uma breve e seca risada.

- Não se trata disso. Na verdade, tecnicamente esse deveria ser o tema de nosso diálogo, então, eu formalmente pedirei que você aceite um desses.

Eu não estava entendendo nada do que ele dizia e ele sequer havia começado a usar suas metáforas.

- Sabe por que Asahina-san e Nagato-san reagiram daquela maneira, quando você fez aquela pergunta?

- Eu não sou um profeta ou algo assim. Como poderia saber?

- Sempre com esse péssimo humor, quando conversamos. Isso magoa os meus sentimentos.

- Não diga isso, enquanto sorri!

- A Suzumiya-san tende a manter alguns padrões de comportamento, mesmo que ela pareça alguém cujas ações são totalmente aleatórias. No início do ano, ela tinha a mania de mudar o penteado a cada dia da semana, aumentando o número de partes presas do cabelo, não é? Esse seria um desses padrões.

- Como você sabe de uma informação assim se você nem sequer estava no nosso colégio, naquela época, maldito stalker?

- Ah, não se trata de algo assim. Eu apenas tinha muito interesse em trabalhar com a Suzumiya-san e estudei bem os dados que a agência tinha sobre ela.

- Eu não sinto como se isso mudasse algo.

- De qualquer modo, esses padrões dela me levam a concluir que ela provavelmente manterá o mesmo número de membros da brigada, provavelmente para desempenharem os mesmos papéis. Ou seja, uma personagem mascote, um vice-presidente para o clube e uma personagem acessório. Além de você, claro.

Você quer dizer que não há nada interessante a meu respeito, não é?

- A tendência que você previu é a tendência prevista por todos, mas nós não queremos que isso aconteça.

- O que você quer dizer?

- Você pode não saber, mas a minha agência, a de Nagato-san e a de Asahina-san possuem interesses divergentes, embora nossa convivência possa ser pacífica devido a alguns pontos gerais que temos em comum. Por exemplo, em relação às mudanças do espaço em que vivemos, a entidade de dados integrados a apóia. Elas acreditam que isso seja uma expressão do potencial evolutivo de Suzumiya Haruhi e que elas não devem ser interrompidas. A agência de Asahina-san deseja usá-lo a fim de censurar os poderes da Suzumiya-san.

- Censurar?

- Em resumo, eles a enxergam como um problema que deve ser enfrentado com cuidado e desejam que os poderes dela um dia acabem. Eles acreditam que usando você, podem conseguir isso.

- Eu?

- Sim, você. Afinal, você é especial para ela.

Desviei o olhar aborrecido. Eu estava cansado daquela mesma idéia persistente de Koizumi, que ele tentava jogar em mim, desde o ensino médio. Entenda, Koizumi, se eu não a aceitei, durante a adolescência, fase em que qualquer um estaria desesperado para ser especial para uma garota, eu não a aceitarei, agora.

- Mesmo que a sua teimosia o impeça de ver isso, esse é um fato que todos possuem conhecimento. O motivo que levou a Nagato-san, eu e Asahina-san a virmos falar com você, quando entramos no clube, não foi por que queríamos uma boa integração entre o clube. Nós apenas queríamos o apoio daquele que é capaz de influenciar a Suzumiya-san.

- E você, Koizumi? O que a sua agência quer com a Haruhi?

- Manter esse mundo em equilíbrio, deixando-a feliz. Afinal, ela é uma deusa para nós. Nós não queremos a cólera dos deuses, não é? Alegro-me em dizer que os interesses da corporação são mais compatíveis com os meus.

Eu não entendia a forma como o sorriso de Koizumi adquiria algo melancólico, quando ele falava de Haruhi, sem falar propriamente dos poderes dela. Percebendo que eu me manteria calado, ele prosseguiu:

- A idéia original seria ocupar mais cargos do clube com os nossos agentes. Dos cinco membros, dois serem espers ou dois serem viajantes do tempo ou... Bem, acho que já deu para compreender, não é? Uma maioria de membros de uma determinada facção no clube que influencia a Suzumiya-san seria uma vantagem nos interesses de qualquer uma delas.

- Foi isso que vocês vieram me pedir?

- A minha agência quer isso. Eu, no entanto, tenho interesses diferentes.

Peguei um refrigerante na geladeira e pus-me a bebê-lo, pois tive a impressão que Koizumi iniciaria um longo monólogo.

- Eu desejo que o clube permaneça em sua forma original. Desejo permanecer nele. Mesmo que para isso eu tenha que desafiar a Suzumiya-san, a minha agência ou você.

- Quanta dedicação religiosa. – comentei, bebendo mais um gole. O refrigerante estava bastante gelado e isso provocava uma estranha e agradável sensação de leveza em meu corpo, a cada gole.

- Não é exatamente por dedicação a minha missão que desejo permanecer na brigada.

“Tenho a impressão que escutarei um discurso teológico”

- Você sabe...

Eu não sabia e provavelmente não seria interessante saber, mas ele me contaria do mesmo jeito. Bebi mais um gole, dessa vez mais longo.

-... eu estou apaixonado pela Haruhi.

Senti quase todo o líquido que havia bebido, escapar pelas minhas narinas.

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CONTINUA...


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem essa fic! Fico feliz por existirem tantas pessoas que apoiam o casal! Espero que deixem comentários! Eles realmente são um grande incentivo!^^