Meus sapatos estavam desamarrados, notei enquanto andava pelo corredor, lotado de corpos, na escola olhando vagamente para o chão.

Ignorei o fato, até porque somente 12% das pessoas de sapato desamarrado tropeçam tão facilmente nele.

Mas logo percebi que dos 12%, 1% eram só acidentes, enquanto 99% eram aquelas pessoas desajeitadas e sem atenção que não percebem exatamente o que acontece ao redor sem ter alguém gritando no seu ouvido para lhe informar.

E, sem muita novidade, eu era uma delas...

Agachei-me, mudando de ideia sobre deixar aquela armadilha-para-pessoas-avoadas, pronta para me surpreender a qualquer instante.

Antes de dar o ultimo nó, olhei a pessoa que estava, neste exato momento, virando o corredor lotado a alguns passos a minha frente. Meu coração deu um pulo quando olhei seu rosto.

Paralisei por alguns segundos.

Sieghart estava rodeado de pessoas, andando e rindo tão graciosamente, que alguns olhares ao seu redor eram de admiração. Era difícil de acreditar no que Sieghart havia me dito ontem, que era tudo só “encenação”.

De repente, aquele grupo de pessoas era o centro das atenções daquele longo corredor. Todos saiam de perto para abrir caminho.

Pisquei várias vezes, voltando a mim. Levantei-me em um pulo rápido e virei em um movimento desajeitado. Eu precisava correr até o final do corredor e virar, antes que alguém daquela multidão notasse minha presença. Antes que ele notasse minha presença.

Eu já estava fora da vista deles quando parei na frente do banheiro, abrindo a porta e me enfiando de qualquer jeito lá dentro.

Não sabia exatamente o motivo do desespero de minha ação, mas... muitas daquelas pessoas que estavam naquele grupo me faziam muito mal. Falavam, tanto na cara como nas costas, coisas horríveis de mim... Acho que eu não queria saber o que Sieghart faria se estivesse presente em uma dessas situações. Será que ele riria junto com os “amigos” ou... , o que parecia muito improvável, me defenderia...?

Ao lembrar-me de seu rosto meu coração pulou. Por algum motivo minhas bochechas ficaram estranhamente quentes e uma alegria repentina pareceu deixar minha mente mais feliz.

– Ah não... – murmurei para mim mesma, mal acreditando no que estava acontecendo. – Não pode ser...

Uma lembrança de minha mãe, guardada rigidamente em minha cabeça, tomou passagem pelos meus pensamentos, forçando-me a lembrar da regra número um do que eu nunca, jamais, deveria fazer enquanto eu vivesse.

– Mamãe, o que você sente pelo papai? – perguntei, sentada em seu colo.

Eu não tinha mais que 8 anos, mas sabia: O amor era a melhor sensação do mundo. Meu desejo de amar e ser amada por alguém eram imensos.

– Bom, minha filha... só tenho uma coisa a dizer: É um sentimento realmente lindo.

– Sério? – sorri, com um brilho preenchendo alegremente meu olhar. Deixei minha curiosidade tomar conta de mim. – Como é que é o amor, mamãe?

Mamãe riu de minha pergunta direta. Afagou meus cabelos e me abraçou mais forte contra si, olhando para as nuvens brancas que rodavam o céu naquele dia iluminado e sereno.

– Quando você pensa naquela pessoa, o mundo parece se iluminar, ficar mais feliz. Você faz tudo com mais disposição e tem vontade de sorrir a toda hora. Seu único desejo é ficar o mais perto possível da pessoa amada e se algo acontece de errado, só o simples fato de você poder olhar o rosto daquela pessoa novamente, faz você se alegrar de novo. – ela riu, suspirando alegremente.

Notei seu coração acelerar repentinamente, sentido suas batidas fortes ecoarem em meu ouvido que era abraçado delicadamente contra seu peito.

Mamãe estava bastante feliz e sorridente. Como eu queria me sentir assim como ela dia...

Ficamos caladas por alguns segundos, ainda nos abraçando. Eu tentava imaginar como seria a pessoa que faria um dia eu me sentir assim... Prestei atenção nas batidas aceleradas do coração de mamãe, contando mentalmente cada uma.

Concluí em silêncio que esse era o som do amor.

T-tum, T-tum, T-tum.

– Não pode ser...

Minha mão estava colocada desesperadamente sobre meu peito, sentindo cada batida forte e acelerada que ele produzia.

A imagem do rosto de Sieghart invadiu novamente minha cabeça e meus olhos se arregalaram para o ritmo constante e veloz que meu coração de repente começou a soar.

– E-eu não posso...

– S-Seu pai...- olhei as lágrimas se formando dolorosamente nos olhos de minha mãe - Nos traiu... – mamãe desabou no chão violentamente, chorando de dor.

Aproximei-me dela em um movimento só, tão preocupada e triste como jamais havia ficado em minha vida.

Antes de conseguir a abraçar, fui envolvida rapidamente em um só segundo pelos seus braços.

– Ele nos traiu, fi-filha... – sua voz transmitia tanta dor e agonia que minhas lágrimas não conseguiram se segurar.

Eu tinha 11 quando isso aconteceu.

– Por u-uma mulher qualquer... – abracei-a mais forte, sentindo seu desespero e tristeza aumentar a cada segundo.

– Não se preocupe, mãe. Tudo vai ficar... – não continuei, notando que o choro estava começando a transparecer em minha voz. Se mamãe soubesse que eu chorava, com certeza ficaria mais triste ainda.

– O amor... não presta... – murmurou ela de um jeito tão doloroso que pude sentir a ira em sua voz. – Por favor, minha fi-filha... Não come-meta o mesmo erro... Por favor... Dói, dói muito...

– Mas mãe...

– Nunca, está me ouvindo? NUNCA se apaixone... – ela me abraçou mais forte. Seu choro ficou intenso – Tu-tudo acaba em trai-ição e sofrimen-mento.

– Tudo acaba em traição e sofrimento... - repeti angustiadamente para mim mesma, dentro daquele banheiro escuro e vazio.

– O amor... não leva a nada! Somente acaba com sua vida...

– Somente acaba com minha vida... – minhas mãos formaram um punho sobre meu peito, o apertando forte, alertando-o da realidade.

– Não confie em ninguém. Eles só querem se divertir com você...

– Se divertir comigo... – senti uma lágrima brotar em meus olhos. Eles começaram a arder de repente. Eu conhecia bem essa sensação. – Não posso... confiar em ninguém...

– Não deixe, ouviu Elesis? NÃO os deixe roubar seu coração. Por favor... não os deixe lhe ferir... por favor...

– Me ferir... – coloquei as mãos em meus olhos, limpando todos os vestígios de lágrimas que saíram sem permissão de lá. Endireitei meu corpo, ficando determinadamente ereta – Não vou deixar, mamãe. – falei furiosamente para mim mesma. – Não se preocupe.

**

– Ei, eu fiz alguma coisa errada? – ignorei o garoto que não parava de me chamar. – Eu não vou parar de lhe perturbar até você me dizer o porquê de está tão zangada comigo.

Silêncio. Eu arrumava alguns papeis dos scripts, grampeando em ordem crescente do número de páginas. Ainda havia uma pilha enorme para eu grampear. Sieghart me cutucou a cima do ombro.

– Porque está tão zangada comigo? Porque está tão zangada comigo? Porque está tão zangada comigo? Porque está tão zangada comigo? Porque está tão zangada comigo?...

Tentei me concentrar, colocando toda a minha atenção nos papeis a minha frente. Cada toque de Sieghart parecia transportar uma carga elétrica para meu corpo e isso não era bom... Eu realmente não podia gostar dele. Não podia mesmo! Não é do meu gênio ignorar as pessoas ao meu redor e principalmente ignorar a única pessoa que falava comigo perante tantas outras que só me tratavam mal.

– Então você vai jogar sujo, é...? – ele cruzou os braços, sorrindo. – Tudo bem então...

Sieghart se afastou. Senti uma pontada de dor quando ele desistiu de “me irritar”, mas eu sabia que isso era o melhor para mim.

Puxei todas as folhas soltas para mais perto, colocando-as em um monte mal feito, que eu ainda ia aperfeiçoar. Primeiro eu teria que organizá-las pelo número de páginas, colocaria todas as folhas da página 1 em um monte e assim por diante, para logo depois eu conseguir achá-las com mais facilidade.

Estavam todas misturadas e eu me concentrei em tentar achar só as da folha 1 primeiro. Abri um espaço para colocar um pequeno monte de três folhas na mesa e...

– Ruivi... opa, quero dizer, Elesis... – pulei, assustada, arregalando meus olhos para o som repentino.

A voz era evidentemente de Sieghart, mas... não era a voz normal, de alguém que fala naturalmente durante o dia... A voz estava amplificada... Estava altamente amplificada, fazendo com que todo teatro – que era realmente enorme – escutasse. Uma sensação ruim em minha mente me dizia que aquela amplificação estava ligada aos aparelhos sonoros da escola...

– Não sei, de verdade, o que eu fiz para você, mas...

Virei-me da mesa, cravando meu olhar mortal no garoto moreno em cima do palco. Uma guitarra cor cereja estava pendurada em seu corpo. Notei que havia mais alguém no palco além dele, era um outro garoto, que estava sentado, sorrindo, na bateria. Reconheci-o de longe, era o garoto que ia fazer o guarda-roupa falante. Ele sabia tocar bateria?

Percebi logo outro se posicionando no teclado. Ele iria fazer o pai da Bela. Caramba, ele sabia tocar teclado?

– Como você não está falando comigo e nem dando a mínima atenção para mim, espera aí, agora você está – Sieghart sorriu com um ar de vitória, olhei-o incredulamente.

Meu rosto avermelhou-se de tanta vergonha. Desejei profundamente que aquele som não estivesse repercutindo além daquele espaço de poucas pessoas do teatro.

– Decidi fazer uma surpresinha de última hora para você. Espero que aceite isso como desculpas pelo que eu fiz, mas não sei que fiz. Ah, e esse é o Ryan. Eu não sabia, mas quando ele me viu pegando a guitarra falou que sabia tocar bateria. Aí eu consegui um baterista sem querer – ele riu – O que está no teclado se chama Ronan. Ele é iniciante, mas tivemos muita sorte de ele saber tocar a música que eu queria para você. Espero que goste do nosso som. Acabamos de nos conhecer e não tivemos muito tempo para treinar então...

Os garotos acenaram para mim na “apresentação”.

Senti uma adrenalina repentina invadir meu corpo. Eu estava nervosa por ele? Na verdade, eu estava nervosa pelo o que me esperava. Uma sensação ruim sobre aquela “surpresinha” invadiu meu corpo. Seria aquilo uma vingança para me mostrar que ninguém pode ignorá-lo sem pagar as consequências?

Aliviou-me um pouco o fato dos dois garotos não estarem incluídos na enorme lista de pessoas que eu havia pegado falando pelas minhas costas.

Juntei as sobrancelhas, cruzando os braços. Não precisava ser telepata para ler o que minha expressão queria dizer: “Pare com isso agora, se você quiser sobreviver à minha fúria”.

Sieghart piscou para mim, se divertindo com meu constrangimento, ajeitou o microfone que pendia de seu ouvido até a boca e começou a tocar, testando a guitarra. O som saiu tão alto, que eu parecia estar em um show de rock.

(Coloquem a música, por favor.)

Ryan bateu quatro vezes na bateria e Sieghart começou a introdução.

“So she said? What's the problem baby?

What's the problem I don't know

Well maybe I'm in love (love)

Think about it every time I think about it

Can't stop thinking about it”

(Então ela disse: qual o problema amor?

Qual o problema eu não sei

Bem, talvez eu esteja apaixonado

Penso nisso toda vez que eu penso nisso

Não consigo parar de pensar nisso)

“How much longer will it take to cure this

Just to cure it cause I can't ignore it

If it's love (love)

Makes me wanna turn around and face me

But I don't know nothing about Love”

(Quanto mais vai demorar para curar isso

Só para curar porque eu não posso ignorar

Se for amor (amor)

Me faz querer virar e me encarar

Mas eu não sei nada sobre amor)

“Come on, come on

Turn a little faster

Come on, come on

The world will follow after

Come on, come on

Because everybody's after Love”

(Vamos lá, vamos lá

Vire um pouco mais rápido

Vamos lá, vamos lá

O mundo vai seguir depois

Vamos lá, vamos lá

Porque todo mundo está procurando amor)

Sieghart me olhou profundamente, sem tirar o sorriso do rosto. Meu Deus! Onde eu posso esconder meu rosto? Corei violentamente.

“So I said? I'm a snowball running?

Running down into the spring

That's coming all this love

Melting under blue skies

Belting out sunlight

Shimmering love”

(Então eu disse? Eu sou uma bola de neve correndo?

Correndo de encontro com a primavera

Que vem todo esse amor

Derretendo debaixo do céu azul

Amarrando a luz do sol

Amor cintilante)

“Well baby I surrender

To the strawberry ice cream

Never ever end of all this love

Well I didn't mean to do it

But there's no escaping your love”

(Bom, amor eu me rendo

Ao sorvete de morango

Nunca terá fim todo esse amor

Bom, eu não tive a intenção de fazer isso

Mas não tem como escapar do seu amor)

“These lines of lightning mean

We're never alone, never alone

No! No!”

(Essas linhas de relâmpagos significam que nós

Nunca estamos sozinhos, nunca sozinhos

Não! Não!)

“Come on, come on

Move a little closer

Come on, come on

I want to hear you whisper

Come on, come on

Settle down inside my Love”

(Vamos lá, Vamos lá

Venha mais para cá

Vamos lá, Vamos lá

Eu quero escutar você sussurrando

Vamos lá, Vamos lá

Se acalme por dentro, meu amor)

“Come on, come on

Jump a little higher

Come on, come on

If you feel a little lighter

Come on, come on

We were? Once upon a time? In Love”

(Vamos lá, Vamos lá

Pule um pouco mais alto

Vamos lá, Vamos lá

Se você se sentir um pouco mais leve

Vamos lá, Vamos lá

Estávamos? Era uma vez? Apaixonado)

Sieghart pulou do palco, andando lentamente para minha direção. Ele não tirava os olhos dos meus.

“We're accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally in love

Accidentally”

(Nós estamos acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente apaixonados

Acidentalmente)

Seu sorriso ficou maior quando ele chegou perto o suficiente para me deixar mais vermelha do que já estava. Virei o rosto.

Ele começou a dançar na minha frente, fazendo a atenção da multidão ao redor voltar-se a nós. Com seu sorriso divertido de sempre.

“I'm in love, I'm in love

I'm in love, I'm in love

I'm in love, I'm in love

Accidentally”

(Estou apaixonado, estou apaixonado

Estou apaixonado, estou apaixonado

Estou apaixonado, estou apaixonado

Acidentalmente)

Espera aí! MULTIDÃO? Olhei todas aquelas pessoas ao nosso redor. A vergonha atingiu meu corpo tão violentamente que meu rosto ficou ainda mais vermelho, se possível.

Alguns cantavam juntos e dançavam animadamente, já outros nos olhavam incrédulos.

“I'm in love, I'm in love

I'm in love, I'm in love

I'm in love, I'm in love

Accidentally”

(Estou apaixonado, estou apaixonado,

Estou apaixonado, estou apaixonado,

Estou apaixonado, estou apaixonado,

Acidentalmente)

“Come on, come on

Spin a little tighter

Come on, come on

And the world's a little brighter

Come on, come on

Just get yourself inside her love

I'm in Love”

(Vamos lá, vamos lá

Gire um pouco mais apertado

Vamos lá, vamos lá

E o mundo está mais feliz

Vamos lá, vamos lá

Só se ponha no amor dela

Eu estou apaixonado)

– Em um dia, você conquistou meu coração, ruivinha... – murmurou ele em minha franja, deixando o som da guitarra repercutir no ambiente. Ele já havia tirado o microfone quando falou.

Fiquei sem palavras. Meu desejo era que ninguém estivesse lá além de nós. O que eu ia fazer agora?

Eu não posso... Não posso gostar dele...! Eu não posso!