Salto Alto, Batom Vermelho e Cigarros escrita por thaisadam


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/120968/chapter/1

Capítulo 1 - Batom vermelho.

  Os pés pareciam tremular diante do chão. Concentrei o calcanhar próximo aos dedos, esbarrando nos sapatos, para que juntos me trouxessem o equilíbrio. Estiquei o pescoço observando ao redor e buscando luz, mas a que chegava até  mim era débil demais para que meus olhos capturassem o ambiente por completo. Havia somente um vão.
Encolhi os braços envolta do meu próprio corpo, sentindo meu toque na pele desnuda. Os pêlos se eriçaram de frio, mas não havia corrente de ar ali, apenas... O breu hesitante. Caminhei trêmula sobre o chão, desajeitada, forçando a visão, sentindo o medo não muito frequente do escuro. Até que surgiu flutuando bem à minha frente, dois copos chatos de lados opostos, em seu conteúdo pedras de gelo que boiavam em um líquido de cor âmbar. Eram aparados por uma bandeja de prata, refinada, que refletia seus habitantes. A luz se infiltrava no líquido, e amplificava para o exterior as formas distorcidas no vão escuro. Aproximei-me. Havia um envelope pequeno. Em minhas mãos, curiosa, o abri, havia um bilhete.
                                                                  
                                                                  
                           " Um drinque de arte, hipocrisia, vulgaridade,
              Um gole de cores para o cinza, que és a bandeira que carregas,
              A bandeira do reprimido. A bandeira do "certo". Te dou o errado,
              “Junto e costurado um coração de arte, pois tua alma é de artista”

  Peguei um dos copos em uma das mãos assim que soltei o bilhete no chão. O ergui na direção da escuridão, para a platéia inexistente. O sorriso afrouxou nos lábios em conjunto com o olhar de confiança exagerada. O olhar que indicava que eu sabia tudo, mas no fundo (obviamente não neste momento) eu sabia que eu não sabia de nada. Senti meu coração pulsar ligeiramente e a raiva preencher todos os poros do meu corpo. Desviei a direção e a minha visão encontrou um espelho pendurado em uma frágil parede, haviam surgido tão inesperadamente como os demais objetos. Observei meu reflexo com exatidão, minha expressão não havia mudado, no entanto, a minha aparência estava um mínimo conturbada. O batom vermelho estava borrado até a altura das pequenas maçãs do rosto e os olhos estavam imundos com a maquiagem negra, acima das pálpebras.

    O cigarro surgiu em uma das minhas mãos, aceso. Senti o aspecto macio entre os dedos. Levei até os lábios e traguei longamente antes de olhar mais uma vez o meu reflexo. O copo continuava erguido em minha mão e a bandeja se aproximou para que o outro copo aparecesse entre mim e o espelho, esperando o brinde. Sorri abertamente, aquele meu sorrisinho irônico que é detestado por todas as pessoas que eu conheço. O ar saiu de forma brusca de meus pulmões.
Eu tinha a minha inimiga bem à minha frente.

- Um brinde! - o convidado se moveu, entornando parte de seu whisky. - À decência e a moralidade. Um brinde a mim, por estar compartilhando esta ocasião com a minha companheira, minha convidada ilustre, a Honra. Um brinde por eu estar mandando todos vocês irem á merda hoje! - Disse com a minha voz irônica e gargalhei. Minhas gargalhadas repletas de humor e dor ecoavam no vazio. Impactei um copo ao outro, ouvindo o leve tilintar, bebi o líquido e escorregou pela garganta de forma costumeira.
O líquido do outro copo caiu ao ar, derramando ao chão. Mirei o meu reflexo uma última vez, notando o meu cabelo bagunçado. Virei o corpo na direção da luz e caminhei tragando sem intervalos longos o meu cigarro. O som dos meus sapatos surgiu, afastando o surdo som do silêncio, enquanto a liberdade tomava o meu corpo seminu para uma pequena conversação. A fumaça era deixada para trás, junto com as minhas lembranças das palavras certas.

                                                                                                         * * *

  A dor na coluna vertebral se tornou aguda ao direcioná-la em uma postura reta. Minhas mãos espalmaram a escrivaninha gasta, rabiscada de dizeres estúpidos de ansiedade. Tateei sobre os papéis equilíbrio para me levantar. No cinzeiro, dezenas de restos de cigarros, ao redor, copos vazios e mentiras. Ao firmar os pés no chão, ao primeiro passo senti-os formigar levemente recordando do desconforto que o salto alto trazia depois de certas horas de uso. Acendi um cigarro com o simpático isqueiro cor de rosa, traguei em silêncio, fixando meu olhar pelo vidro transparente da janela. A corrente de ar trazia sentimento de repreensão, no entanto, os meus pensamentos não puritanos permaneciam andando de um lado para o outro dentro da minha cabeça. A repreensão já não me atingia.

  Dei um último trago antes de apagar o cigarro no cinzeiro e me encaminhar para o banho. O meu preparo para outra sessão de hipocrisia não é tão requintado, mas os efeitos que causam são reconfortantes, por assim dizer. A hora marcada para o fim da tolerância excedia no real limite de minha personalidade, mas eu relevava mais do que deveria, por muito motivos, que não tinha absolutamente nada a ver com bons modos. Apenas em alguns momentos a gentileza parecia sair dos meus poros. Sorri.
A nudez trazia a sensação de liberdade, imposição, rebeldia, que massageava a minha ânsia de querer, ser, fazer... Tudo. Estendia o poder à minha frente, de braços abertos para uma sessão revigorante de sexo. Mas ao final do dia, eu era apenas eu. Com meu cigarro aceso e os saltos altos nos pés.

  A água era gélida, fria e sem piedade ao encontrar a minha pele, escorria entre o corpo inteiro, fazendo o sono ser uma lembrança distante. Pressionei minhas mãos contra o rosto, tentando afugentar o tédio e a insatisfação do nada que ocorria a cada segundo. Um suspiro cansado, impaciente proferiu de minha boca para o banheiro. Eu queria gritar, até arder meus pulmões. Eu queria algo com que me distrair.
  Esse pensamento me deixou aberta a sugestões, deixei a minha arrogância de lado por um pequeno tempo, até encontrar algo que me preenchesse com a sensação de novidade, ansiedade, tesão. Não queria depositar as minhas esperanças em um homem, mas... Eles são os melhores nisso.

   Ao me olhar no espelho, me deparei com meu próprio rosto cru, esperando para ser modelado. As olheiras projetavam em meu rosto uma aparência não muito saudável, os lábios eram brancos e sem forma, pois se integravam muito intensamente a cor do rosto completo. Os cabelos estavam muito juntos, grudados. Acomodavam-se atrás das orelhas e seu volume quase não era percebido, estavam molhados e suas gotas escorriam pelos meus seios.

  A maquiagem se alongou com seu pequeno pincel rente aos cílios, os cílios dobraram de tamanho, e ao fim o batom vermelho aos lábios. Cor, vida. Arrogância.
Algum tempo mais tarde, os cabelos estavam secos, o vestido grudado em meu corpo e o salto alto nos pés. O cigarro estava nas mãos, junto à bolsa, tranquei as janelas da quitinete, e fechei a porta com cuidado antes de sair à rua.

                                                                                                      * * *

O hotel classe A, ficava no centro do Rio de Janeiro. A estrutura era gigantesca e requintada, e a sua altura parecia quase alcançar o céu. O encarei com certo desgosto antes de entrar. Me encaminhei diretamente para a área dos funcionários.
Os meus instrumentos de trabalho me acompanhavam todos os malditos dias, friccionando tudo, com minha mais engenhosa força. Eram meus amigos de confiança, confesso.

  Os toillets nunca permaneciam limpos por mais de um dia, não pelo fato do estabelecimento ser movimentado, mas sim pelos maus modos dos burgueses que se consideravam educados. O dinheiro convencia qualquer um, de qualquer coisa. Em um mundo capitalista, para você ter seu próprio nome em palavras suas, você precisa de uma pitada de real. Não que seja de todo ruim, ás vezes pode ser engraçado. Rir dos outros é sempre melhor que rir de si mesmo.

Ao fim do expediente, a dor nos braços latejava. O meu rosto suava, mas a maquiagem parecia impecável quando olhei meu reflexo no vidro de um carro estacionado em frente ao hotel. Os seguranças estavam postados em frente à porta grande e elegante, com os típicos sorrisinhos nos lábios, cochichando uns com os outros. Dei uma última olhada e parei encostada em uma parede qualquer. Peguei um cigarro e o acendi com o isqueiro, traguei lentamente, elevando o pescoço para trás, em uma sensação de êxtase. Encostei um dos saltos altos na parede, levantando um pouco a perna. Soltei a fumaça entre um sorriso de extrema autoconfiança, que ocorriam de forma corriqueira, e vinham da forma mais estranha e ligeira quanto iam.
  Observei a rua sem realmente percebê-la, as luzes estavam fracas, e o ar era fantasmagórico, porém nada tinha a ver com a hora da noite. Eram só as pessoas que não estavam ali. Tudo é o peso que as pessoas dão ao lugar, não o lugar em si.

  Ao fim do último trago, apareceu uma figura andando calmamente na rua. Não aparentava medo ou receio por ser a única viva alma naquele caminho, mas tranquilidade e suavidade. Os passos se aproximaram e o homem propagou o seu corpo perante todos que ali estavam. Acenou com a cabeça para os outros homens, que o cumprimentaram de volta. Quando me cumprimentou, hesitou um instante de segundo olhando firmemente para os meus olhos, que marotos os encararam de volta. Nos meus lábios, o sorriso irônico e sacana que parecia atrair de fato, muitas pessoas. Inclusive um homem qualquer como ele.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Salto Alto, Batom Vermelho e Cigarros" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.