O Anjo Perdido escrita por VanNessinha Mikaelson


Capítulo 3
Capítulo 3. Revelação I




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Capítulo 3 – Revelação I

Samuel passou boa parte do início da noite na companhia de seus pais. Inventara todo o tipo de mentiras sobre o dia que vivera. Contara-lhes que os colegas relutaram, em um primeiro momento, a se aproximar dele; mas que um tempo depois cerca de três períodos de aula –, tudo ficara bem. E Felipe e Heloísa julgavam que o filho estava curado. A medicina o ajudara a ter uma vida normal.

Agora no quarto, o garoto tentava dormir. O sono, porém, não se fazia presente. Pela primeira vez em muito tempo, Wolkmmer se sentia inquieto. E ficou ainda mais em alerta ao vislumbrar uma estranha sombra no cômodo. Quando ia acender a luz, alguém lhe disse:

– Não precisa ligá-la. Sou eu.

O obscuro espectro se transformou no físico da mulher que o auxiliara na tarde anterior. Mais tranqüilo, o jovem sentou na cama.

– Por que não me avisou que viria? – perguntou, recuperando-se do susto.

– Eu o comuniquei quanto a isso. Só não disse quando seria.

– É, tem razão. Será que agora conseguiremos ter um diálogo decente?

– Creio que sim. Como se sente?

– Bem. Um pouco confuso com as várias informações que me passou à tarde, mas estou legal. E como está você?

– Bem – ela sentou ao lado dele. – Posso ficar aqui?

– Claro! Nem convidei você a se acomodar, me desculpe.

– Tudo bem, garoto.

– Mas, e então, por que veio? Não foi só para me observar, não é?

– Até que não seria uma má idéia – comentou, olhando-o nos olhos tão claros como o céu. – Mas não, de fato não. Vim para conversarmos sobre você. Sobre quem é, rapaz.

– Está bem. Mas quem sabe não marcamos um encontro para amanhã? Podemos combinar para depois dos meus períodos na escola. O que acha?

– Ótimo, melhor ainda! Assim terei um tempo maior para explicar tudo com mais clareza.

            – Combinado. Quer me recomendar alguma coisa: atitude, maneira de agir e de ser ou algo assim?

– Não me atreverei a tanto. É um excelente ser do jeito que é; sugiro que continue a agir dessa forma e só peço que confie em mim.

– Já ganhou a minha confiança – ele se levantou e acendeu a luz. Após, a abraçou forte e disse: – Obrigado por tudo.

– De nada – falou, de modo lacônico, pois não esperava tal reação por parte dele. Ela, porém, pôs-se a observar as costas do menino, através da camisa que vestia.

– Levante a roupa – pediu.

Samuel, surpreso, a obedeceu. A moça, por sua vez, agora podia ver com maior nitidez as marcas, que eram graves hematomas.

– O que é isso? – questionou, preocupada.

– Ah, foi meu pai. Ele me empurrou e eu bati no armário que tem aqui – contou-lhe, apontando para o móvel. – Mas está tudo bem. Diga-me uma coisa, como conseguiu ver o machucado, se a camisa o cobria?

– Tenho uma visão muito aguçada, exatamente por ser quem sou. Consigo, desse modo, acudir com maior eficiência ou, em outros casos, trazer problemas às pessoas. Venha, deite-se aqui – solicitou, apontando para a cama.

Após pressionar por três vezes o local ferido, a mulher utilizou o mesmo líquido que usara antes, a fim de restabelecer os machucados dele.

– Pronto – comentou. – Cuide-se agora, certo?

– Por que me ajuda dessa maneira? – perguntou.

– Entenderá tudo amanhã, como combinamos. Preciso ir agora. Podemos nos encontrar em frente ao colégio onde estuda, ao meio dia?

– Sim, sem dúvida.

– Estarei lá, então. Até logo, rapaz.

A garota se foi e deixou inúmeras dúvidas na cabeça dele. Mas como pretendia dormir para que o tempo passasse mais rápido – pois estava curioso ao extremo para descobrir a verdade –, Wolkmmer foi à cozinha e fez um chá para se acalmar. Assim que o bebeu, caiu em sono profundo.

No dia seguinte, o menino acordou com maior disposição ainda! Tinha a nítida impressão de que alguém vigiara seu sono por toda à noite. Mas mesmo que estivesse bem, perdurava o jeito quieto e observador, porque eram características marcantes e imutáveis na personalidade dele.

Samuel foi deixado na escola pelo pai. E passou toda a manhã pensando no que a misteriosa mulher iria lhe falar. Apesar de tentar demonstrar serenidade, estava bastante ansioso. Agora, porém, havia uma novidade em sua vida – três colegas de escola que se aproximaram dele , Eduarda, Henrique e Vinícius – este último o conheceu ao presenciar o estranho episódio no qual o demônio que possuíra o irmão de Duda agrediu, no recreio de ontem, o mais novo aluno do colégio com palavras ásperas. Eles conversaram com Wolkmmer durante quase todo o intervalo entre os períodos; e em meio às explicações passadas pelos professores de matemática, de português e de química, a atenção de Vinícius era sempre chamada, porque ele, ainda que não conhecesse muito bem o novo colega, tinha enorme curiosidade em saber detalhes da confusa vida dele, e por conta disso não permanecia quieto um instante sequer.

Assim que a aula de matemática terminou, os jovens foram em direção ao portão de saída da escola. Samuel lhes disse que se quisessem poderiam permanecer ali. Mas ele tinha um encontro marcado com alguém.

– Recém chegou no colégio e já está marcando encontros, que presença! – comentou Vinícius, brincando.

Quem dera, colega, quem dera. Mas combinei de conversar com uma garota – explicou.

– Com quem? – perguntou.

– Vini, quer parar de ser tão curioso, que coisa! – falou Eduarda.

– Tudo bem, menina, tudo bem – respondeu Wolkmmer. – Não há problema algum em contar a vocês. É uma mulher que diz saber como me ajudar.

– É a que nos auxiliou ontem? – questionou Henrique.

– É isso aí.

Todos ficaram em silêncio, enquanto a misteriosa criatura se aproximava. Era um claro sinal de respeito com uma figura tão imponente.

– Podem continuar o assunto – comentou, enquanto acendia um cigarro. – Tenho de falar com o garoto aqui – apontou para Samuel. – Mas posso esperá-los; não pretendo interromper ninguém.

Ele apresentou os amigos a ela, que cumprimentou um por um; e todos ficaram cerca de quinze minutos conversando em frente à escola.

Quando os colegas foram embora, o rapaz a convidou para almoçar. A mulher aceitou prontamente. E depois disse:

– Precisamos ir a um local isolado para que possamos conversar sobre tudo. Irei expor o tema enquanto almoçamos, mas caso haja alguma dúvida de sua parte, necessitamos de um lugar quieto. Tudo bem?

– Tudo sim.

Em poucos minutos de caminhada eles chegaram a um restaurante que Samuel gostava muito; o garçom foi chamado, assim que se sentaram à mesa. O jovem pediu arroz, feijão e carne; enquanto que ela, maravilhada com as opções de sorvete existentes no local, solicitou diversos sabores.

– Esse é o seu almoço? – questionou, intrigado.

– Hoje sim. Há muito que não como doces.

– Mas se alimente com comidas salgadas também; é muito bom – recomendou.

– Sei disso. Só prefiro matar a vontade de comer doce ao invés de me alimentar com o de sempre: sal em excesso.

– Entendo. Quando quiser, pode falar – comentou.

O garçom trouxe tudo quanto foi pedido por eles. Ao iniciarem a refeição, a moça tornou a falar:

– Bem, ajudei você e seu colega ontem, pelo simples motivo de que Euronymous não deveria ter vindo aqui perturbar você. Nenhum dos que enfrentou em todos os anos anteriores deveriam ter estado no planeta Terra. Peço desculpas por todos os transtornos que isso causou ao longo de sua vida. Mas não é apenas disso que vim falar; vim, isso sim, explicar quem é, por que se encontra nesse planeta e como poderei auxiliar você.

Samuel escutava tudo com atenção, ainda que relutasse em acreditar nas coisas que lhe eram ditas.

– Posso prosseguir?

– Sim – falou. – Continue, por favor.

– Prometi trazer respostas concretas e objetivas, se lembra? E já as tenho, depois de muito investigar. O corpo que habita, anjo Castiel, é o de Samuel Wolkmmer, que dorme seguro no interior do campo energético existente a sua volta. Mas não é quem pensa ser, rapaz. Agora sabe bem quem é; alguma pergunta?

O jovem largou os talheres por alguns instantes; olhava para a mulher, que estava do outro lado da mesa. Ele a encarava com a expressão serena, como de costume. Internamente, porém, sabia que a verdade tinha sido descoberta. Por mais que não quisesse acreditar, Wolkmmer sabia, e sempre soube, que não tinha absolutamente nada a ver consigo.

Pare de me olhar desse modo, por favor – pediu, alarmada por vê-lo tão calado. – Diga algo, garoto.

– Bem, não sei por onde devo começar... Não...

– O que foi? – perguntou, preocupada. – Alguém já contou isso a você?

– Não, fique tranqüila. Só sinto que me revelou algo que, de um modo estranho, eu já sabia. Apenas não quero crer...

– Escute, é fundamental que se mantenha o mais calmo possível. Ajudarei você a desvendar por que está aqui.

– Mas... Será que isso tudo é verdade? – a expressão era de dúvida, devido ao impacto que a fala dela provocara nele.

– Ora menino, me diga se tudo que houve em sua vida até hoje foi coincidência, ou não? O que aconteceu com a criança na primeira clínica na qual seus pais o colocaram foi obra do destino? O modo como o que a possuía foi queimado e consumido pelas forças existentes aí dentro... – ela apontou para o peito do jovem e prosseguiu: – ... Tratava-se de uma obra do acaso? E que dizer da outra garota na segunda clínica? Coincidência, também? O demônio que tentou atacar você na primeira instituição em que foi largado por Felipe e por Heloísa foi aniquilado pelo poder que possui; quanto ao segundo, Euronymous, o perseguiu ontem, já que foi tomado por uma revolta incomum até mesmo para nós porque ao lutar contra ele anos antes –, você o feriu gravemente no olho esquerdo. E que dizer do rapaz da terceira clínica? ... Acabou por morrer; não suportou suas forças e, juntamente com a entidade, sucumbiu em uma violenta explosão. Se considerarmos que tinha, respectivamente, nove, doze, catorze e dezesseis anos, nas internações pelas quais passou, talvez cheguemos a conclusão de que, quando era pequeno e até mesmo agora, não possuiria condições físicas e nem psíquicas para manifestar tais poderes; e no entanto as têm. Concorda?

– Sei – falava confuso; tentava organizar as palavras. – Tudo que diz é certo. Mas... Como me acostumar? Como viver dessa forma?

– É simples. Fique mais uma ou duas semanas por aí. Conviva com aqueles que dizem ser seus pais; e se prepare para vir comigo, se desejar.

– Como assim? – perguntou. Perturbava-lhe sair da cidade de que tanto gostava.

– Menino, ouça bem, não há escolha; ainda que eu não pretenda forçar nada, tem de vir comigo. Necessita largar sua vida, sua família terrestre; nós precisamos, assim, salvar o garoto Samuel e reconduzi-lo para casa enquanto há tempo.

O jovem estava aturdido. Não sabia se confiava na mulher  de negro ou não. Ele parou, por alguns instantes, de falar; e iniciou, ali mesmo, uma curta meditação. Ela, ao notar que o rapaz procurava se centrar, terminou de comer o sorvete que solicitara e foi à rua para fumar um cigarro. Assim que acabou a meditação, Samuel foi atrás dela e a questionou:

Por que saiu de lá?

– Como percebi que procurava se acalmar, eu resolvi fazer o mais sensato: respeitei sua decisão.

Aquilo era novo para ele. Nunca ninguém lhe dissera que faria isso. E ela fez. Wolkmmer estava sensibilizado com o modo como era tratado. Mas uma pergunta relevante não fora colocada à garota ainda... – Quem era ela? –  E foi exatamente essa a questão feita.

– Comentei, no beco, que não poderia falar nada, se lembra? Pois então, essa regra não pode ser quebrada.

Como posso, então, ir embora com você, se nem sei quem é? – o tom de voz dele não era agressivo, apenas temia ser enganado.

– Justo... Muito justo – comentou, acendendo outro cigarro. – Mas chegamos a um problema... Não é que eu não queira dizer quem sou eu, é que não posso... Nós seremos perseguidos de maneira bem mais hostil e implacável se eu revelar a minha identidade...

– Mas não me disse, lá no beco, que esse é seu corpo físico? Como agora não pode revelar quem é, se todos a vêem e a identificam?

– Garoto esperto, Castiel... – chamou-o pelo nome angelical, o que o fez a olhar nos olhos. – O que posso dizer é que isso se explica porque não assumi todas as características que englobam a minha pessoa. Tenho vinte e cinco centímetros a mais do que os um e setenta que mostro aqui; meu cabelo é bem preto; e não costumo estar de óculos, pois me irritam ao extremo. E raramente sou vista com uma espada na mão; com um tridente, sim. Por isso mudei algumas coisas em mim, a fim de que não seja facilmente identificada pelos de minha espécie.

– Espere, é um demônio? – surpreendeu-se ao atentar para tal detalhe.

– Sim, sou, claro. Não tinha percebido antes?

– Confesso que não. Mas... Agora entendo menos ainda...

– O que foi, garoto?

– Por que quer cooperar comigo? Se me diz que sou um anjo, e que o menino que deveria estar aqui agora dorme, por que serei auxiliado por um demônio, e não por um ser celestial?

– Essa é uma explicação que tem de saber. Mas não a darei aqui na rua. Vamos entrar para pagar tudo que gastamos e procurar um canto isolado. Dessa forma poderemos conversar com mais calma. De acordo?

Samuel fez um gesto afirmativo com a cabeça. Eles retornaram ao restaurante para pagar o valor relativo ao almoço; a mulher, entretanto, não deixou o jovem desembolsar nem um real sequer; ela fez questão de cobrir todo o gasto com a refeição.

Assim que saíram do local, entraram no carro dela. A moça pediu a ele que se sentasse no banco ao lado e pôs-se a dirigir.

– Onde guarda o veículo quando não se encontra na Terra? – perguntou, a fim de iniciar um diálogo entre eles.

– Em uma casa que tem uma garagem nos fundos – explicou. – Por quê?

– Só queria saber como faz para manter uma vida dupla – comentou, interessado na rotina seguida por ela.

– Como assim? – questionou.

– É. Porque se é uma demônia, e se vem para cá constantemente, necessita de muitos aparatos para viver, ao mesmo tempo, nos planos espiritual e físico. Ou estou equivocado?

– Não está, não. Tem toda razão. Mas não permaneço por muito tempo no planeta encarnado. Só quando há uma missão importante a cumprir; aí sim me atenho mais a este lugar.

– Uma missão como a minha?

– É isso mesmo... Castiel, ou Samuel? Como prefere que chame você?

– Sabe... Não sei... – o garoto fez uma pausa e sorriu. A indecisão o dominava. – Mas ... Enquanto não me recordo de ter sido esse tal Castiel, melhor que me chame pelo nome que me foi dado por aqui.

– Como quiser – respondeu. Os dois conversaram sobre outras coisas menos relevantes antes de chegar ao local no qual deveriam parar.

Depois de um longo tempo, eles pararam em uma garagem de um casarão no outro lado da cidade. Ambos desceram do V-8 e o jovem perguntou:

– É pura coincidência, ou a casa escolhida fica no lado oposto da residência em que eu moro por algum motivo?

– Há um motivo, sim. É para que não sejamos vistos por seus pais. Como sei onde eles trabalham e onde vocês residem, ficou bem fácil achar uma casa grande para que pudéssemos conversar com maior privacidade e para que eu colocasse em prática minhas outras ações.

– Então já me observa há tempos?

– Sim – admitiu. – Porém não consegui chegar em você antes, me desculpe. Precisei estudar muito bem o terreno; não sou do tipo impulsiva.

Eles entraram na sala do casarão. A mulher falou a Samuel que poderia ficar a vontade, enquanto ia à cozinha para servir água a ambos; o calor era insuportável em pleno outubro, por isso a ingestão de líquido se fazia necessária até mesmo para um demônio. Assim que retornou trazendo os copos, tornou a falar:

– Então, questões sobre você, ou não? – perguntou, disposta a lhe esclarecer tudo que fosse necessário.

– Sim. Muitas. E a primeira e mais importante é: como não me lembro de quem sou ou fui?

– Por algum motivo limparam a sua memória. Mas já sei como retomá-la. Se for interessante para você, podemos iniciar o processo hoje mesmo.

– Quem me jogou na Terra?

– Boa questão. Comecei a investigar isso há um mês. A hipótese mais provável é a de que anjos o atiraram aqui. Mas ainda não tenho a mínima idéia. Creio, porém, que com o passar dos dias e dos meses você se recordará disso. Basta apenas que eu consiga iniciar o processo de recuperação da sua memória.

– E quanto tempo nós levaremos para recuperá-la?

– Tudo dependerá de como irá reagir ao procedimento. Preciso, porém, de que me prometa uma coisa antes.

– O que?

– Que fingirá ser Samuel Wolkmmer. Necessito de que continue a ter sua vida, ao menos por agora. E nem serei eu a ditar quando não a levará mais dessa maneira. Você saberá, conforme eu for mexendo em sua cabeça, quando deverá abandonar o corpo físico do jovem. Entende?

– Sim, compreendo bem. Posso fazer apenas mais uma pergunta?

– Sem dúvida sorriu, a expressão amigável, o que o confortava bastante.

– O menino sairá prejudicado com todo esse processo?

– Não. Monitorarei o garoto, não se preocupe. À medida que forem separadas as memórias de vocês, tudo se organizará. Infelizmente ele ficará com as lembranças terrenas; você, por outro lado, voltará a ter certeza de que é o Anjo Castiel. Algo mais a dizer?

Wolkmmer se mostrava incrédulo. Queria começar o procedimento mais pela simples vontade de provar à mulher que cometera um bárbaro engano do que pela crença em tudo que ele mesmo perguntava. O jovem fingia crer em uma história absurda como aquela, para ver o que iria ocorrer ao final dela.

– Não. Estou pronto – falou. – Pode começar.

A demônia se aproximou do garoto e lhe pediu para fechar os olhos e meditar. Em seguida, passou um líquido na cabeça dele e pôs as mãos na testa do rapaz. Longos minutos se passaram até que tudo estivesse concluído. O ritual fora feito com símbolos angelicais, pois, para reaver as memórias de um ser como Castiel, não era possível, obviamente, utilizar símbolos demoníacos. Como o estado de meditação no qual entrara era profundo demais, parecia que dormia. Ela, então, o deitou, gentilmente, no sofá da sala e esperou ali mesmo. Após uma hora de completo silêncio, ele abriu os olhos e a escutou perguntar:

– Tudo bem, Samuel?

– O que... Não sei... – esfregou os olhos, confuso. – Ele dorme, moça. Meu nome é Castiel. Mas... O que faço aqui?

– Graças a Deus... Ou... A qualquer coisa desse tipo – brincou.

O rapaz a observou demoradamente; sabia que a conhecia. E começou, a partir disso, a organizar suas memórias. Ela era quem o ajudava a reaver as lembranças; era quem auxiliaria Samuel a acordar; era a única que o colocava para pensar e agir, de fato, como um ser celestial. Acima de tudo, porém, o Arauto tinha uma longínqua lembrança a respeito dela. Mas como não era algo muito claro, preferiu não pensar no assunto.

            – Como se sente, Castiel? – tornou a falar, o retirando de tais reflexões.

– Bem. Um pouco confuso, mas tudo em ordem. Como vim parar no físico deste inocente filho de Deus?

– Só sei que o atiraram aí. Mas o resto... Confesso que não descobri ainda. Agora que despertei sua consciência angelical, tudo ficará mais fácil.

– Bem, lembro-me de tudo que vivi no corpo dele desde dois mil e onze. Recordo-me, inclusive, do almoço que você e eu tivemos hoje, da conversa de poucas horas atrás, do que me pediu para prometer... Só não sei muito sobre mim.

– Mas o que vem à sua mente quando pensa em você, no tempo em que morava no Céu?

– Não posso forçar os pensamentos; minha cabeça dói. A sensação é horrível – balbuciou, aflito.

– Ótimo. Era isso que eu queria ouvir. Escute, precisamos combinar uma mexida por semana em sua memória. Pode ser?

– Pode sim. Mas não continuaremos a nos ver? Só quando fizermos os procedimentos?

– Não – comentou, surpresa. – Irei visitá-lo todas as noites, para saber como se sente. Não se preocupe; não o deixarei sozinho. Agora venha. Vamos embora; já é tarde e Heloísa e Felipe devem estar preocupados com você.

– Está certo.

Eles se levantaram, saíram da sala e entraram no carro. A mulher tornou a dirigi-lo. Quanto ao garoto, tinha pretendido obter a certeza de quão errada ela estava a respeito dele; porém, agora seus pensamentos eram bem mais claros do que antes; ele sabia, de fato, quem era: Castiel.

Após uma longa viagem em silêncio – cerca de quarenta minutos – ela parou o veículo em frente ao lar dele e rememorou:

– Não se esqueça de que, para os outros, ainda é Samuel Wolkmmer. Certo?

Em um gesto afirmativo com a cabeça, o rapaz lhe assegurara de que tudo estava em perfeita harmonia e de que se lembrava bem qual papel teria de representar. No entanto, o desejo de ser ele mesmo crescia a cada minuto. Mas por tudo que passara na pele de Samuel, Castiel agüentaria firme; a culpa por todas as coisas ruins que causara à vida do garoto era um peso inimaginável.

Por mais que tentasse entender as situações vividas, e que fosse um ser evoluído, habitar um corpo físico durante tanto tempo lhe trazia sensações bastante humanas.

Ao entrar em casa, o jovem foi diretamente para o quarto. Como os pais não se encontravam na residência, ele estava à vontade. Ligou o ventilador e se deitou na cama. E em poucos minutos adormeceu. O processo de reavivar as memórias angelicais foi desgastante ao extremo. Entretanto, acordou uma hora depois; teve o mesmo pesadelo de sempre – o que costumava ter em quatorze anos de vida terrena – aquele que lhe perfuravam os olhos. Agora, porém, uma estranha sensação o fez ficar em alerta. O sangue. Como despertara com os olhos úmidos, temia que estivesse, de fato, sangrando. Mas não. Era só uma errônea impressão; o sonho, apesar de bem conhecido, lhe trazia uma nova sensação todas as vezes que retornava. Ainda que fossem iguais, os pesadelos nunca eram exatamente os mesmos: havia sempre um fato novo quando voltava a dormir.

– Preciso dar um jeito de sair deste corpo – pensou Castiel. – Mas como fazê-lo? Não sinto que meus poderes estejam suficientemente fortes para que eu vá embora deste físico. E como fica minha culpa? Como trarei normalidade à existência dessa família? – perguntava-se ele que, mentalmente, procurava tais respostas. – Sinto-me culpado por ter prejudicado dessa forma tão covarde a vida de Samuel; e por mais que saiba que tal sentimento não é salutar para mim, infelizmente não consigo me desvencilhar dele.

Castiel se lembrava bem agora. Entendia por que os pais internaram o garoto – por causa dos poderes angelicais manifestados de forma desordenada. Com lágrimas nos olhos, o anjo, que tomara a difícil decisão de permanecer por mais um tempo no físico do jovem, iniciou uma oração. Aquela, contudo, não era uma reza qualquer. Castiel orava para Deus com todas as forças de que dispunha, para que o Todo-Poderoso o perdoasse. Não lhe importava o porquê, se caíra, algo devia ter feito para merecer tamanha desonra.

Não muito tempo depois de ter começado a oração, ele sentiu um alívio imenso; era como se alguém lhe tirasse um indefinível peso dos ombros. Foi quando Castiel passou a acreditar, em definitivo, que Deus de fato não o abandonara. A presença do Criador preencheu o vazio em seu peito de maneira inigualável.


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