Série - Pacto escrita por LadySpohr


Capítulo 2
A Casa Vazia


Notas iniciais do capítulo

Hehehe, esse na verdade é um LIVRO, que um dia pretendo publicar, então, vamu lá!



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Era um fim de tarde como outra qualquer, exceto, que talvez, o céu estivesse mais brilhante que o costumeiro, havia estrelas, que piscavam como joias, num firmamento frio do inverno de Dourados. O típico frio de cortar a pele.

Eram seis horas da tarde. Um fim de dia com claridade inexistente. Poderia ser considerado muito mais noite que fim de tarde.

  • Boa tarde! - meu pai, Oliver, entrou na cozinha, carregando sua maleta carregada de provas, certamente.

Ele é professor de História, ótimo no que faz.

Minha mãe, Ana, correu servir seu lanche vespertino, dando um beijo de boas vindas. Qualquer filho acharia careta, mas eu não sou qualquer filha, e portanto acho fofo.

Não é a mesma opinião do meu irmão mais novo, que entrou na cozinha no exato momento do beijo e fez uma careta de “Eca!” e sem cumprimentar ninguém, foi direto pra geladeira.

- Boa tarde também, Jefferson - mamãe o olhou severamente por cima da cabeça do papai – E tudo que há na geladeira está na mesa.

  • Então faça o favor de se sentar e agir como um rapaz educado – completou meu pai, com seu olhar azul perigoso por trás das lentes dos óculos.

Aha, se ferrou bonitão.

Não me entenda mal, eu gosto do meu irmão, e muito. Mas ele às vezes é um típico mala-sem-alça-pé-no-saco. Ainda mais depois de um treino de futebol.

  • Boa tarde pai, boa tarde mãe – ele revirou os olhos que herdou do lado materno e sentou do meu lado – Quer boa tarde também? - ele fez um bico mau-humorado com o lábio de baixo.

Bufei.

  • Quando você estiver com um humor melhor talvez eu aceite seu boa tarde, por hoje eu dispenso – revirei meus olhos e enfiei o nariz no meu copo de café.

  • Muito bem, já que agora todos estão na mesa... - mamãe encarou Jefferson ao dizer essa parte - ...podemos recomeçar a discussão iniciada ontem.

Dessa vez fiz coro ao gemido do meu irmão. Poxa vida.

  • Meu Deus, que crianças mais sensíveis – riu papai, arrancando pedaços do pão em sua mão e molhando no café. Certo, pra isso é eca. - Não entendo você, Elisa, é sua festa de dezenove anos!

  • Pai, a gente faz festa desse calibre quando se vai completar quinze anos, não dezenove. E de qualquer maneira não gosto de muito requinte, é só mais um ano que vou fazer, por favor. Jeffe não teve festa de arromba quando fez dezessete...

  • Isso mesmo – meu irmão balançou a cabeça, enfim agindo como um irmão que quer salvar a irmã mais velha de um bolo gigante e vestido rodado com muito tule – Eu não fiz questão, e Lisa também não faz.

Minha mãe parecia ter comido um limão.

  • Você devia cuidar das suas notas em vez de palpitar sobre festas de aniversário, rapazinho – ela disse, com voz controlada.

Hem?

Eu e papai trocamos olhares. Mamãe tinha corrigido cálculos demais, só podia ser – ela é professora também, de Matemática. Jeffe era o melhor aluno da sua turma. Do que ela estava falando?

Como de costume, meu pai farejou alguma pista. Eis a vantagem de ser historiador.

  • Por acaso há algo que eu não esteja sabendo, Ana? - perguntou, com seu melhor jeito de professor desconfiado de uma justificativa de falta – Jefferson só tira média acima de oito.

Era impressão minha ou meu irmão estava passando mal? A pele dele estava verde, e ele parecia prestes a vomitar. Mamãe estalou os olhos castanhos, numa nítida expressão de quem se vê pego no pulo. Então ela olhou meu irmão, obviamente arrependida. Ele suspirou, deixou a xícara de café de lado, e balançou a cabeça na direção dela.

  • Tudo bem, mãe, uma hora eu ia ter que contar.

  • Seja lá o que for é melhor que comece logo – meu pai falou agora parecendo um professor paciente, na espera de que um aluno explicasse porque estava colando na prova.

  • Olha, eu devo sair ou ficar? - indaguei, adivinhando pelo clima tenso que vinha bomba, então queria mesmo saber se ficava e via ela explodir, ou podia correr pro abrigo mais próximo. Pra meu espanto, Jeffe foi quem falou:

  • Fique, Lisa. A única coisa que tenho pra dizer é que minhas notas foram para o brejo nesse bimestre pai, e é por isso que não sou mais o melhor aluno da classe.

Papai pareceu levar um choque elétrico por uns segundos, então piscou os olhos e encolheu os ombros:

- Bom, suponho que você possa se recuperar, não é nada demais.

Meu irmão é quem tinha levado o choque agora.

  • Bom, não vou dizer que não estou surpreso, achei que você ia me botar de castigo... - ele pegou sua xícara de café de volta, parecendo mais animado.

Meu pai o olhou através das lentes com expressão de aviso.

  • Se continuar com as notas baixas certamente eu vou colocar, rapaz.

Jefferson liberou o urso dentro de si.

  • O quê? Por que quando Lisa tira notas baixas ela não fica de castigo?

  • Ei! - gritei, liberando pedaços de pão no ar por estar de boca cheia – Eu estou na faculdade, é difícil pra cassete, é História, porra! Você é bom em tudo!

  • Exatamente, filho. Sim, você ficará de castigo caso não melhore na escola – reforçou minha mãe, pondo doce num pãozinho – Você é o mais novo, faça jus aos mimos.

Jeffe espremeu os olhos e levantou da mesa.

  • Já terminei. Vou me arrumar pra aula de Francês.

  • É, vá mesmo, e volte com seu bom humor na mochila! - quase gritou meu pai, quando os passos duros do meu irmão fizeram os degraus da escada rangerem dolorosamente.

Isso é que dá ter irmão leonino, adoram uma saída dramática.

- Então voltamos ao assunto principal... - mamãe e papai me olhavam com ansiedade.

Os encarei, vendo que agora não teria saída, afinal meu irmão se mandara.

  • Ahh, eu vou subir, acho que esqueci de pegar alguns livros da biblioteca lá em cima! - larguei meu pão com mortadela pela metade e rapei o pé da cozinha, deixando meus pais sem tempo de me impedirem.

Essa festa de aniversário ainda ia me dar muita dor de cabeça. Entrei no meu quarto e me olhei mais uma vez no espelho. Tudo ok. Meu cabelo castanho estava preso num rabo de cavalo. Meus olhos azul-escuro, como os do meu pai, tinham rímel e lápis o suficiente. Graças a Deus nada de uniforme. Enfim liberdade, podia usar o que quisesse na facul.

Meu quarto é bem comum, não há nada assustador dentro dele.

Minha cama é de solteiro, com uma colcha roxa por cima, tem um tapetinho de pele ao lado, onde meus chinelos de descanso sempre ficam me esperando depois de um dia estressante de aula. Minha penteadeira fica próxima das janelas de correr da minha varanda, na penteadeira tem um espelho bem grande e um bando de cosméticos empilhados na bancada. Meu guarda-roupa ocupa grande parte da parede do lado direito da minha cama. E não, eu não tenho um banheiro só pra mim, por favor.

E por último, minha mesa com o computador. Ficava ao lado do meu guarda-roupa, um pouco apertado, mas dando pro gasto.

Claro que eu tinha subido com a desculpa de pegar livros esquecidos, mas quando entrei vi que tinha esquecido mesmo de uma coisa em cima da cama: meu celular. Que apitava feito um doido.

O peguei, e antes de guardar na mochila, com impaciência, vi que era mensagem do meu, bom, namorado, o Alan. Mas a gente tinha brigado no sábado, então ele podia me mandar quantas mensagens idiotas quisesse, eu não ia dar a mínima pra um possessivo histérico. Sério, ele me fez ficar verde de ódio. Surtou porque dei um abraço e um beijo no Átila – é, ele tem nome de bárbaro, a mãe dele é professora de História também, ela e meu pai se formaram juntos – meu melhor amigo desde...sempre. Ele não tem direito de dizer quem devo ou não agarrar.

Alexandra, minha melhor amiga também desde sempre, concorda comigo, em número e grau. Mesmo que eu nunca tenha entendido essa porcaria dentro dos limites matemáticos.

Olhei no meu relógio de pulso do Frajola – sim, eu adoro o Frajola – faltavam dez minutos pra ela e Átila passarem na minha casa. Oh, eu raramente pego ônibus, é pra isso que servem amigos que tem carro próprio.

Desci as escadas, com o celular ainda gritando em desespero. Meus pais já tinham saído da cozinha, então tive um tempo do assunto festa-de-aniversário-da-Elisabete.

Abri um dos armários de comida e peguei um pacote de bolacha, enfiando num dos bolsos da mochila já cheia. O celular tocou Nelly Furtado e depois de parar por uns segundos tocou AC/DC. Dei um sorriso. Meus amigos tinham chegado.

  • Tchau, pai, tchau mãe! - gritei alto, pra onde quer que eles estivessem, pudessem me ouvir.

  • Tchau, filha! - o grito do meu pai respondeu um tanto abafado. Deviam estar no andar de cima – Até mais tarde!

  • Até! - berrei, indo na direção da sala e abrindo a porta da frente.

O Audi preto da Alexandra estava parado ao lado do meio fio. Dei uma corridinha e a porta de trás estava aberta antes que eu chegasse até lá.

Pulei direto ao lado de Átila. Alexandra, na direção falava com alguém no celular – nada aconselhável - num tom de irritação e que ergueu uma mão pedindo obviamente pra mim esperar se quisesse falar com ela. Como sempre, minha melhor amiga demonstrava sua grande capacidade de parecer ter saído de uma passarela a qualquer hora do dia. Alê estava metida numa saia plissada, com meias três quartos vermelha, sapatos de salto pretos com tiras de couro branca e com uma camisa de alfaiataria, e com o pescoço adornado por um fio de pérolas negras. Verdadeiras, Alê tinha dinheiro pra isso.

Mas Átila estava ali, com sua camisa pólo e sua calça jeans. Parecendo o cara bonitinho e inteligente de sempre, mas um inteligente super descolado, não conheço mais nenhum nerd que além de ser um gênio também é um esportista adorado. É isso que ocorre com Átila no time de futsal.

  • Olá, estranha – ele cumprimentou tirando uma mexa da franja do rosto – Como foram suas férias?

  • Problemáticas – respondi, enquanto o carro deslizava pela rua – Meus pais insistem em me dar uma festa de arromba de aniversário.

Eis uma palavra que desperta extrema atenção da Alexandra: festa.

  • Festa? - ela mirou seus olhos escuros em mim pelo retrovisor, ansiosos, se desconcentrando do telefonema – Você disse festa?

Bom, admito, ela tem um lado burguesinha. Ninguém é perfeito.

Franzi a cara.

  • Volte pra sua ligação e pra direção! Não vai ter festa nenhuma.

  • Mas você disse... - ela revirou os olhos e voltou ao telefone sem completar a sentença.

Átila deu um sorrisinho.

  • Qual é o problema nisso? É seu aniversário de dezenove anos, aproveite!

  • Qual é? Eu tenho pavor dessas coisas espalhafatosas, por mim nem comemoraria nada, porque,por favor, eu estou ficando mais velha, não tem muita alegria nisso – meu amigo caiu no riso. Eu adorava a risada dele, era alto-astral, inabalável.

  • Vai com calma menina, dezenove anos nunca vai ser considerado sinal de velhice – ele ria solto – Vamos lá, pelo menos pense com carinho. Aposto que Alê vai adorar dar palpite na organização...

Tarde demais pro meu sinal de cale a boca com o dedo nos lábios. De novo Alê voltou a tona:

  • Organizar uma festa? - ela olhava pra mim sorridente – Nem tente se opor, seja lá o que for, vou me meter... Ah, sim.... - fazendo uma carranca ela se centrou no celular.

Me virei pro Átila, que espremia os lábios numa tentativa de não dar risada. Joguei nele meu olhar curto e estreito:

  • Isso vai ter volta. Agora vou ter uma guerra ainda pior pra enfrentar.

  • Que vença o melhor – ele piscou pra mim, virando uma página do seu exemplar de “O Senhor dos Anéis e as Duas Torres”. Sério, Átila é viciado no Tolkien. E na Tia J, como ele e eu apelidamos carinhosamente a J.K.Rowling, uma de nossas favoritas, incluindo da Alê. Ela ama a Hermione. Mas peraí, quem não ama ela?! Quem não ama Harry e Rony?!

  • Cale a boca. Me diz, com quem ela tanto fala nesse telefone? - o carro entrou na avenida principal, parando no sinal - Parece um papo bem chato, se conheço a expressão dela.

  • Ah, é a mãe dela, parece que finalmente conseguiram vender A Casa Vazia.

  • Fala sério! - guinchei – Mesmo? Achei que ia virar patrimônio tombado pelo IPHAN.

  • Aparentemente não. Mas Dona Célia está empolgada, ela queria muito que alguém morasse lá. Você sabe, né, a casa tombada seria bom, e não seria. Então ela ligou pra filha pra dar a notícia – ele sorriu pro livro – Como se ela ligasse muito, ela sempre disse que a casa era mau-assombrada...

Meu celular deu um bip. Era mensagem. Bufei, fazendo fios de cabelos esvoaçarem. Átila compreendeu o gesto na hora.

  • Seu namorado psicótico?

Entortei a boca e abri a mochila.

  • É, ele mesmo.

Caixa de entrada: uma mensagem.

De: Alan.

Apaguei sem ler.

  • Ei, isso foi maldoso. O cara só gosta muito de você, conversa com ele – sugeriu meu amigo na sua voz mais sensata.

  • Pode ser, mas não hoje, vocês vão ter que me ajudar a me esconder. Não superei o king-kong de sábado.

  • Pode deixar com a gente, vamos ser sua Capa da Invisibilidade – Alê finalmente tinha saído do telefone – Caramba, minha mãe gosta de falar... - ela revirou os olhos e depois girou-os pra mim com intensidade – Então, quando é sua festa de aniversário? Vou ajudar sua mãe no que for.

Dei um suspiro lento e cansado.

  • Não vai ter festa, Alê, eu não quero. Pode esquecer.

Alexandra deu um sorriso inocente.

  • Tá bom, se é assim...

Do meu lado, Átila mordeu o lábio inferior. Pra não rir.

  • Já disse, não quero nada de festa Alexandra... - reforcei, encarando o perfil perfeitamente neutro da minha amiga. Se eu bem conhecia a garota, ela estava só fingindo concordar pra me dar um susto depois, como era de seu feitio.

  • Está bem, sem festa – o sorriso era muito suave. Eu sabia, ela ia aprontar – Em falar em festa, os novos donos da ex-Casa Vazia vão dar uma recepção, vocês sabem, a casa é uma verdadeira atração, parece que eles vão reformá-la, e finalmente espantar os fantasmas de lá. Não é uma boa?

Átila ergueu os olhos do Tolkien com cara de quem tinha visto um extraterrestre.

  • Desde quando você se importa com reformas de casas antigas? Você parecia estar achando o assunto bem chato enquanto falava no celular...

  • É porque mamãe repete mil vezes a mesma coisa, por isso, mas eu vou nesta recepção, e vocês vão vir comigo, tenho certeza que a casa vai ficar linda como foi em 1920 - ela piscou pra nós dois.

  • Mas eu não... - comecei a protestar, não sou mesmo fã de festas. Prefiro ficar em casa, comendo pizza e vendo um filme, ou lendo.

Minha amiga ergueu uma mão do volante, num gesto de quem diz que o assunto acabou.

  • Se você não vai ter uma festa de níver pra mim organizar me deve uma. Vai pagar indo nesta recepção – ela se fez uma curva estreita com o carro e encarou Átila, que fingia não ter escutado nada – E você nem pense que vai escapar.

  • Podemos discutir isso depois? Chegamos - ele saiu pela tangente, abrindo o trinco da porta e saltando pra fora. Desci logo depois dele, olhando pros lados como uma maluca, pra ver se havia sinal de meu namorado enlouquecido. Mas a barra estava limpa.

  • Calma , pelos céus, ele é seu namorado – disse Alexandra rindo, descendo do carro, e parando do meu lado.

  • Espero que ele não me procure hoje, já tenho problemas o suficiente.

Nós três saímos do estacionamento, atravessamos a rua movimentada e entramos na UFD.

A universidade Federal de Dourados é uma construção centenária, que data dos anos de 1700 e alguma coisa. Foi construída pelo Marquês do Douro, fundador da nossa cidade, Dourados. Mas o nome, não é uma homenagem à ele.

Reza a lenda que foi por conta do nosso pôr do sol, que é tão lindo ao fim do dia que tudo parece feito de ouro. O Marquês teria ficado encantado, por isso batizou a cidade com este nome.

Entramos pelos grandes portões de ferro batido, caminhando pelo pátio apinhado de universitários.

Por enquanto nada do meu namorado possessivo. Cumprimentamos muitos colegas e rimos ao ver algumas figuras que não tinham mudado nada nas férias de verão. Eu tinha sentido muitas saudades do lugar. Ainda não tinha arrumado um emprego, então ficar em casa uma hora enche o saco.

  • Hummm, carne fresca... - murmurou Alê, com seu olhar de tigresa esfomeada em cima de dois novatos ali perto.

  • Meu Deus, controle sua sede... - resmungou Átila, revirando os olhos, e procurando o celular que tocava sem parar em seu bolso.

  • Espere os caras se enturmarem primeiro! - eu ri, olhando na mesma direção que ela. Eles estavam parados perto da porta do refeitório.

O mais corpulento e alto tinha cabelo castanho-caramelo e olhos verdes, e falava ao celular, parecendo irritado. Ao lado dele, observando calmamente o trânsito de alunos, estava um loiro-cinza e de corpo atlético, os olhos azuis-gelo brilhantes. Os dois atraiam muitos olhares femininos, como se fossem imãs de calças.

Mas então um arrepio passou pela minha nuca, quando o olhar descontente do grandalhão me encontrou. Era claramente hostil e tinha algo que...

  • Acho que não dá pra me evitar por tanto tempo – uma voz familiar se elevou, me fazendo esquecer o olhar verde arrepiante.

Virei pra trás. Bem, ali estava Alan.

  • É, eu vou ir garotas, estou sendo requisitado no pátio do outro lado. Até mais tarde - Átila olhou de mim pra Alan, e depois fez uma expressão de caia-fora pra Alê, antes de sumir no meio da galera.

Acho que ela entendeu perfeitamente bem o sinal.

  • Te espero na sala, não se atrase – comunicou, e fazendo um gesto amplo que envolveu Alan e eu, declarou – Bem, vocês sabem que não apoio uma reconciliação. Por favor, vocês não combinam! - virou os olhos e jogando o cabelo pra trás, marchou nos seus saltos, antes que eu pudesse soltar uma exclamação de “Alê!”, pra fazê-la calar a boca e não se meter.

Então ficamos só eu e meu namorado.

Bom, nós e os estudantes que não paravam de passar. Os novatos obviamente cansaram de ficar parados e tinham evaporado como fumaça pra algum outro canto.

  • Olha, antes de qualquer coisa, deixa eu me explicar, por favor – Alan pediu, quando me dignei a olhar pro seu rosto.

Sim, ele é um cara muito bonito. Tem olhos azuis e cabelos pretos, e um corpão, fruto das aulas de natação e academia. E eu ainda gosto dele, só que isso está por um triz. Namoramos faz uns cinco meses e ele sabe me fazer rir como ninguém, além de adorar ficar vendo filme em casa, como eu.

Pode achar chato se quiser, eu não ligo.

- Bem, se você acha que um surto de ciúme como aquele pode ser perdoado facilmente eu já vou deixar claro que não, ele não foi o primeiro, e está passando dos limites. Átila é meu amigo desde a infância, Alan! Eu não vejo nada de errado em abraçá-lo e beijá-lo na frente dos outros. Você sabe que não me importo com opinião pública – falei, os braços cruzados, vendo ele torcer as mãos e enrijecer o rosto.

  • Isso foi bem óbvio – Alan retrucou, com um toque de sarcasmo na voz – O problema não é o que pensam de você, Lisa, o problema é o que vão pensar de mim.

Levantei as sobrancelhas.

  • E o que vão pensar de você, Alan, pode me explicar? - eu não ia ceder. Já tinha cedido demais desde o começo do namoro. Menos idas nos lugares que eu gostava, em favor dos dele, roupas menos curtas por causa dele, menos finais de semana com Alê, Átila e meus outros amigos, por causa dele. Pô, era hora dele aceitar que nem tudo ia ser do jeito que ele queria!

  • Por que você não adivinha? - ele perguntou acidamente – O que você iria pensar se me visse agarrado no maior abraço com uma garota, hem?

  • Provavelmente iria pensar que é alguma amiga sua, e com certeza se fosse, eu não iria tirar ela de cima de você e praticamente jogá-la nas escadas de um cinema, como uma idiota completa.

As pálpebras dele desceram sobre os olhos, deixando uma fresta miníma de azul aparecendo.

  • Está me chamando de idiota? - a mão dele segurou meu pulso com força e seu queixo trincou.

  • Sim, você agiu como um, queria que te chamasse do quê? - tentei tirar a mão dele, mas era o mesmo que tentar mover uma pedra rochosa – Dá pra me soltar?

  • Não até resolvermos esse assunto. Vem, vamos pra um lugar com menos gente.

Alan tentou me puxar, mas eu finquei meus pés com botas no chão, e me recusei a sair do lugar.

  • Não vou a lugar nenhum – disse com o maxilar rígido, o ar passando rápido pelos dentes, por causa do esforço que fazia pra me manter onde estava – Tire a mão de mim, Alan.

A cabeça dele virou pra trás, e seu rosto estava furioso.

  • Se você não andar agora, eu vou te erguer e te levar nas costas, entendeu?

Minhas bochechas pegaram fogo, e eu sabia que estava completamente vermelha. De raiva.

  • Eu tô entendendo que você está agindo como um babaca machista,e que eu não vou mais tolerar isso! - exclamei, tentando manter um nível de voz razoável. Já tinha gente olhando esquisito pra nós dois.

Enfim ele conseguiu me arrastar pra perto dele, e prendeu meu outro pulso com a mão livre.

  • O que você quer dizer com isso? - a respiração curta dele tocava meu rosto.

Tentei libertas minhas mãos, sacudindo-as. Mas de novo foi um esforço em vão. Alan era mais forte que eu. O que me fez sentir ainda mais raiva.

Eu estava cansada de por panos quentes nas coisas. Nos últimos meses ele andava agindo muito mais como um homem das cavernas do que como o cara legal que conheci. Aquela atitude fez transbordar o cálice.

  • Exatamente o que deve estar pensando. Que estou pulando fora. Eu cansei de você agindo como se fosse meu dono! - rusguei, encarando os olhos azuis em brasa na minha frente – Eu não sou uma propriedade – dei ênfase especial a frase, pra não ficar nada entalado – E você vai me soltar, agora.

  • Não, eu não vou te soltar, e você não vai pular fora, não pode fazer isso comigo! - o sussurro dele foi cortante.

Dei uma risadinha.

  • Eu já fiz. Agora, me solte. A não ser que queira um escândalo em cima de você. Porque eu vou fazer um se não me largar!

Então pela primeira vez eu fiquei com medo. Um medo que fez meu corpo gelar desagradavelmente.

  • Você vai calar a boca e vir comigo pro pátio dos fundos – Alan ordenou, o aperto em meus pulsos ficando cruéis – Por bem ou por mal.

  • Alan...

  • Cale a boca! - ele se avultou pra mais perto de mim, e nem pude dar um passo pra trás, porque ele me prendia pelos braços com suas mãos de ferro.

Engolindo em seco, olhei pros lados. Ninguém parecia achar que tinha algo errado. Ninguém mesmo!

  • Você não está sendo muito educado – uma voz grave disse às costas do Alan.

Ele me puxou ao mesmo tempo em que se virou pra ver quem o enfrentava.

Era um cara mais alto que ele, de cabelos cor de trigo e olhos castanhos inteligentes. A luz da lua crescente iluminava uma pele pálida e uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, que ia da têmpora até o maxilar. A imagem maluca de um cavaleiro nas Cruzadas me veio na cabeça. E não foi só por causa da cicatriz, mas pela expressão perigosamente fria dele. Tive a impressão que não seria bom provocar aquele armário.

  • E o que você tem a ver com isso? - indagou Alan, de um jeito arrogante que me fez ter vontade de rolar os olhos. Ele ia mesmo testar aquele cara?

  • Você está machucando a moça, solte-a e vai ver o que eu tenho a ver com isso... - me arrepiei com o tom de voz dele. Era uma coisa de dar medo. Senti que podia sair correndo e nunca mais olhar pra trás. Enquanto pensava nisso, percebi que Alan tinha me largado. E apressada dei uns bons passos pra trás.

  • Cuido de você outra hora... - Alan se dirigiu ao cara, e com um olhar mortal, esbarrou num ombro dele, e se mandou.

Eu? Fiquei parada onde estava, como uma árvore!

O cara grande não deixou os olhos das costas do meu ex até ele ter sumido no meio dos outros. Então andou na minha direção. Não sei por que, mas o modo como ele andava me deixou acoada. Era sinuoso como o de um leão.

Rolei os olhos pra mim mesma. Nossa, eu tinha que perder a mania de ler até tarde, principalmente coisas como Anne Rice. Virava demais minha imaginação.

  • Você está bem? - quase pulei de susto. A voz era um oposto da anterior. Gentil e calma.

Olhei pra cima e acenei com a cabeça.

  • Estou, obrigada por me livrar dessa – ajeitei as alças da mochila, pouco à vontade – Quem é você?

Ele sorriu. Sei que vou parecer uma maluca cheia de hormônios, mas não posso contar nada mais que a verdade.

O sorriso era sensual, e fez ele parecer ainda mais com uma coisa que poderia montar num cavalo e cortar pescoços com espada. E a roupa dele também era sexy, uma camisa e uma calça preta, tudo ajustado ao corpo, caindo como uma luva. Nem sei como ele não estava morrendo de frio.

  • Meu nome é Jacques, e o seu? - ele ofereceu a mão, que apertei. Estava gelada, o que não era muito confortável naquela temperatura ambiente.

  • Elisabete, mas todo mundo me chama de Elisa ou Lisa.

  • Prazer te salvar, Elisa – o sorriso aumentou, e eu senti meu rosto pelando. Puta que pariu. Dava pra ver que era o sorriso natural dele, mas mesmo assim, tinha que ser tão quente?

  • Provavelmente eu teria achado uma maneira de me livrar dele, mas obrigada por ajudar – não disse isso pra bancar a durona, mas porque sou esperta o suficiente pra engambelar meu namorado louco e rapar fora, mesmo num péssimo momento– Você é calouro?

  • Não, fui transferido. Segundo ano de História – ele respondeu, direto – Meus irmãos é que são calouros.

  • Hummm, você está na minha sala... - não sei por que, mas aquilo também fez soar alarmes na minha cabeça. Cassete, nunca mais lia A Rainha dos Condenados à noite!

  • Então é melhor irmos andando, a sineta não vai demorar a bater – ele olhava o relógio no pulso.

  • Ah, claro – eu me sentia meio idiota. Não é bem assim que se espera que recebamos um novo colega de classe. Com ele salvando você de uma fria com seu ex-namorado. É bem vergonhoso.

  • Era seu namorado? O rapaz agressivo? - ele questionou, me encarando seriamente, os olhos astutos.

  • Ex, e é por isso que ele estava agindo como um filho da mãe total, porque terminei com ele.

Subimos as escadas de entrada no exato momento em que a sineta bateu, transformando a universidade numa maratona de gente correndo pra lá e pra cá. Vi Átila subir as escadas pro segundo andar com seu habitual bando de amigos da Engenharia. E Alê, vinha da direção do corredor do pátio dos fundos, tagarelando com Suzana, nossa colega de curso, enquanto se entupia com um chocolate.

  • A sala é no segundo andar? - Jacques perguntou, tirando um papel do bolso. Vi um anel brilhar no dedo médio dele. Aquele tipo de anel antigo, pesado, com uma pedra azul engastada.

  • Sim, não se preocupe, é só me seguir, estamos na mesma turma.

  • Pelo menos conheço alguém – ele deu um suspiro que parecia entediado.

Eu não entendia o tédio. Todas as garotas que passavam por nós comiam ele com os olhos, como se ele fosse um pedação de pizza de mussarela ou um chocolate. Isso não deixa os caras entediados, que eu saiba.

Nossa caminhada até a sala foi permeada de “ois” pra mim, e olhares curiosos na direção dele, que estava num silêncio tumular, tudo que eu via eram seus olhos correrem pelos rostos das pessoas, e assim como seu suspiro, a expressão deles era de tédio.

Vá entender os caras.

  • Aqui estamos – parei em frente a porta pela qual passava havia um ano e meio – Bem vindo ao segundo ano de História da UFD – fiz um gesto abrangendo a porta – É toda sua.

  • Com certeza é – ele deu uma risada e fungou junto, como se zombasse do que disse. E bem, eu não gostava de zombarias, não sem uma justificativa, pelo menos.

  • Algum problema? - me encostei na parede e o encarei dentro daqueles olhos agudos.

Ele piscou e balançou a cabeça, como se afastasse uma mosquinha chata.

  • Desculpe, acho que fui um puco rude, perdoe-me – ele passou a mão nos cabelos louros e os lábios formaram um sorriso de desculpas adorável.

Merda.

Mas... peraí? O que era aquilo de “rude” e “perdoe-me”? E aquela leve sugestão de sotaque, hem?

  • Você por acaso é daqui, do Brasil, quero dizer?

Ele alargou o sorriso e fez um não com a cabeça.

  • Não, mas moro no país há muito tempo, minha família veio da França, de Provença, conhece?

  • Onde tem aquelas plantações de lavanda? - eu ri – Sim, ouvi falar de documentários da televisão. E digamos que seu país não é o que chamaríamos de desconhecido.

Ele riu, e os cantos dos olhos fizeram ruguinhas nos cantos. Orgulho, aquilo era orgulho. Bem, isso não é nada anormal de alguém cujo país fez a Revolução Francesa. Quem não iria se orgulhar?

Mas não explicava o “rude” e o “perdoe-me”. Desde quando pessoas hoje em dia são tão... galantes? Principalmente homens?

E era definitivamente um linguajar galante.

Só que não perguntei nada, porque tivemos que sair dos nossos lugares, se não íamos ser esmagados por metade da minha turma, que decidiu passar pela porta ao mesmo tempo. E depois apareceu meu professor de História Medieval, então tivemos que entrar.

Jacques ocupou uma carteira nos fundos da sala, depois de entregar a folha de papel que viera segurando ao professor.

Eu sentava ao lado da janela, com Suzana atrás de mim e Alê na minha frente. Ela estava olhando com interesse pro aluno novo.

  • Hum, ele é bonito, e parece perigoso... - ela riu e me fixou os olhos negros e especulativos – Você pajeou ele até aqui, né? Pode me passar as informações.

  • Ele me salvou de ser arrastada pelo meu agora ex-namorado, Alan – eu falei um pouco incomodada. Não sou chegada nos interrogatórios da minha melhor amiga, eles demoram demais, ela sempre quer saber o mínimo detalhe das coisas. E nem sempre tem muito detalhe pra contar.

  • Então você terminou com ele??? - isso veio de Suzana, que se inclinava na carteira entusiasmada com a fofoca nova.

  • É, terminei – respondi, nada entusiasmada - Não namoro doidos possessivos. E ele passou do limite quando tentou me arrastar até o pátio dos fundos à força. Daí apareceu o Jacques – me dirigi a Alexandra, que ergueu as sobrancelhas escuras – E me tirou da enrascada.

  • Diz que ele meteu o soco no Alan, por favor... - torceu ela, cruzando os dedos, os olhos fechados.

Eu ri, achando o gesto engraçado.

  • Não, mas assustou o bastante pra ele dar no pé. Como você mesma notou, o novato parece meio perigoso.

  • Que delícia, adoro adrenalina... - Suzana lançou seus jatos azuis pra figura em preto no fundo da sala, um brilho predador passando pelas íris.

Virei os olhos e abri minha mochila. Aquelas duas precisavam transar com alguém, já que pareciam estar subindo pelas paredes. Bem, nada que me surpreendesse.

O professor Dario começou a falar, e todos esqueceram do Jacques. Eu dei um rabo de olho por duas vezes, e em ambas ele parecia estar com a cabeça muito longe da aula. O que me deixou passada, porque, fala sério, as aulas do professor Dario eram as melhores.

Na hora do intervalo, vi que ele sentou com os rapazes calouros que tinha notado logo quando entrei pelo pátio com Alê. Então, aqueles eram seus irmãos. Interessante. Mas não pra quebrar meu foco. Então tínhamos alunos novos, que fossem bem-vindos e se virassem. Eu tinha que continuar a caprichar no meu projeto de pesquisa: A Guerra das Duas Rosas. Isso mesmo, a briga da família Lancaster e York. E isso era foda pacas de estudar, tinha livros transbordando de baixo da minha cama no colchão de visitas, dentro do meu armário,e até mesmo no meu guarda roupa.

Ah, e claro, tinha por dever tirar a ideia de uma mega festa de aniversário da cabeça dos meus pais. De repente senti uma dor de cabeça muito grande começando a se desenvolver.

Hum, e ainda provavelmente teria que lidar com meu ex psicótico uma hora ou outra. Se bem o conhecia ele não iria desistir.

Sentada na minha mesa habitual da cantina, com minha habitual vitamina de morango, um dos livros que tinha que ler, e uma pequena pilha de artigos, esperei Átila e Alexandra chegarem. Eles surgiram quase juntos, Alê também com uma pilha de artigos e Átila conversando via msg com alguém no celular.

Como a normalidade era bem-vinda, nada de férias chatas sem nada pra fazer. Podia até ser estressante. Mas eu gostava disso. Eu não viveria sem.

***

Átila pediu licença às meninas, tinha que dar um telefonema. Um telefonema urgente.

Seu pai atendeu na primeira chamada.

  • Pai, tenho uma coisa pra contar, pode ser do seu interesse.

“Bom, sugiro que não faça rodeios, sabe muito bem que não gosto disso”, ele respondeu com um toque de impaciência.

  • Acho que temos alguns deles por aqui.

Átila ouviu o pai prender a respiração.

“Você tem certeza?”

  • Não, mas a cor da pele já indica muita coisa.

“Verifique isso afundo, não se pode cometer erros, não nós”.

  • Vou investigar, pai. Se eles forem o que acho que são, eles irão se arrepender de pisarem em Dourados.

“Vamos garantir isso, Átila”.


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Notas finais do capítulo

hehehe, ;)



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