A Senhora da Montanha escrita por Josiane Veiga


Capítulo 4
Capítulo 4




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A Senhora das Montanhas

Capítulo IV

Por Josiane Veiga

Live parou em frente à casa de madeiras nobres em que morava Nicolas. Apesar do local silencioso, notou que ele estava em casa por causa da luz acesa. Um cheiro gostoso invadia o ar e a aquariana parabenizou a si mesma por ter comido antes de sair de casa.

Era bastante gulosa!

Quase riu ao pensar na cara de Nicolas vendo-a se jogar sobre os pratos que ele preparara! Mas queria chamar a atenção do homem e não afastá-lo. Então devorou um sanduíche enorme antes de ir a casa dele.

Chamar a atenção de Nicolas?

Quando percebeu a que rumos seus pensamentos estavam, sentiu vontade de bater em si mesma. Desde quando fazia artifícios para que alguém a notasse? Live era sempre ela mesma! Se alguém percebesse a mulher que era, ótimo, se não, que fosse para o inferno!

Mas e se Nicolas não percebesse? Quando pensava na vida dele na Espanha, só conseguia imaginá-lo cercado de beldades e modelos. Com aquele sorriso charmoso, era bem provável que trocasse de mulher como de roupa. Ele era exatamente o tipo de homem que nunca olharia para alguém sensível como ela.

Como fazer um homem daqueles perceber que uma mulher inteligente e companheira é mais valiosa que apenas uma boa de cama?

Não havia como!

Mesmo apenas uma amizade, iria machucar Live. Ela constatou o fato, notando que apesar de o conhecer a alguns dias, já pensava até em ter netos com ele. Era melhor ir embora, antes que fosse tarde demais.

-Live!

Olhando para a porta, notou que Nicolas estava lá. Um avental branco sobre a roupa simples. As mangas estavam dobradas para cima, mostrando os pêlos negros dos braços, a calça clara era justa nos lugares certos, e os cabelos estavam molhados. Ele parecia que acabara de tomar banho e estava começando a cozinhar. Para ela...

Decidida a deixar para amanhã o fato de que devia se afastar dele, Live abriu um sorriso.

-Você está aí parada na entrada da casa faz uns dez minutos – ele disse rindo.

Enrubescendo, ela respondeu.

-Estava pensando...

-Em quê?

-Se eu devia entrar ou sair correndo. – foi sincera.

Ele riu.

-Correr de quê?

-De você.

Ainda com um rosto amistoso, Nicolas saiu da porta, dando passagem para ela. Live respirou fundo e entrou na casa.

O lugar não havia mudado muito desde a última vez que fora lá. Seu avô era um homem antiquado, que gostava de móveis clássicos. Live herdara estes gostos velhos, mesmo sabendo que nunca tivera jeito com decoração. Para ela, colocar um vaso milenar ao lado de uma televisão não oferecia risco nenhum. Mas Nicolas parecia entender muito bem de adornos. A casa estava impecável! Ele colocara os eletrônicos em locais que não conflitavam com os móveis seculares.

-Está lindo... –ela balbuciou.

Mas lindo foi um adjetivo pequeno para o que seus olhos viram pendurados na parede. Aproximando-se dos quadros, ela não pode segurar um elogio.

-São perfeitos.

-Obrigado – ele respondeu, sincero – na primeira vez que me viu pintando você disse apenas um “bom”. Fiquei imaginando que não havia gostado.

Nicolas mantinha as mãos nos bolsos, e ela notou que aquela era a maneira dele demonstrar quando estava na defensiva. Achou incrivelmente fofo.

-Considerei que seria importante não ficar dando mostras da minha admiração, pois naquele momento você era um rival. Como você consegue pintar deste jeito?

-Herdei o dom de meu pai. Ele é um grande pintor.

-Minha mãe me falou.

Ele pareceu surpreso.

-Mãe? Achei que fosse órfã.

-Minha mãe adotiva. Ela se chama Maire, é irlandesa, mas mora em Madri.

-Nossa! – ele exclamou – e seu pai?

-É alemão...

Ela não queria falar do pai biológico, então começou a caminhar pelas paredes apreciando as pinturas. Nicolas gostava do abstrato, mas tinha uma preferência significativa por natureza.

-Sua mãe adotiva é casada?

Virando-se novamente para ele, Live sorriu.

-Sim...

-Gosta do seu padrasto, pelo jeito!

Arregalando os olhos, Live percebeu que seria difícil explicar a situação. Os espanhóis eram bastante machistas e um romance gay era algo bem complicado deles compreenderem.

Mas ela não podia se sentir do direito de ter vergonha. Micaela e Maire foram às únicas pessoas do mundo que lhe abriram o coração sem reservas. As duas foram mães no sentido real da palavra, dando-lhe tudo que a mãe biológica não pode dar, e o pai não quis oferecer.

-Não tenho padrasto. Tenho duas mães. Maire é casada com Micaela. As duas me adotaram quando eu tinha doze anos.

Ele arregalou os olhos. Um silêncio reinou por alguns segundos.

-Não entendo como seu avô permitiu – falou manso.

-Meu avô não podia me dar uma família. Era idoso e ainda sofria pela morte da filha. Meu pai foi embora, e nunca se importou com meu futuro. Então conheci Maire e Mic quando estava no Japão. Elas me amaram e eu as amo. Somos uma família do coração.

Ele assentiu com a cabeça, mas não parecia confortável com a revelação. Live já vira aquele preconceito inúmeras vezes antes, mas vindo de Nicolas, doeu profundamente. Ela já estava resolvendo ir embora, quando as palavras dele a acordaram.

-Acho que posso sobreviver a isso...

Atônica diante da voz dele, ela perguntou:

-O quê?

-Nada...

Ele abriu um sorriso enorme, e ela então quis ficar. A necessidade urgente de ficar perto dele, ouvindo sua voz grave e sentindo o cheiro de perfume cítrico a impediu de ir embora, mesmo percebendo que ele não aceitava Mic e Maire.

Mas Nicolas não era nada mais que um amigo. Então ela não estaria traindo suas mães se jantasse com ele. Além disso, Mic e Maire estavam longe demais para se incomodarem com o olhar reprovador do pintor.

Um pouco da perfeição dele deixou de existir, ao notar que Nicolas não aceitava uma pessoa por seu caráter, dando mais importância a escolhas pessoais como opção sexual. Mas assim mesmo, ele ainda parecia o homem mais incrível que ela já conhecera.

Acompanhando o rapaz até a cozinha, sentou-se a mesa e o observando mexer com as panelas. Apesar de morar sozinho, Nicolas mantinha tudo bastante limpo e isso de certa forma a surpreendeu.

-Quem limpa sua casa?

-Uma senhora da vila vem fazer faxina uma vez por semana. Mas no geral, eu mesmo.

Live começou a rir.

-Você? Não posso imaginar você varrendo o chão!

-Aprendi a me virar sozinho quando vim para cá.

-Há quanto tempo está aqui?

-Um ano e meio.

Nicolas acompanhou o falecimento de seu avô, pensou Live. Triste por não estar na Índia quando seu único laço sagrado de sangue morreu, a jovem se confortou sabendo que o avô não ficara sozinho, pois era claro que Nicolas e ele haviam ficado amigos.

-Não sente falta da Espanha? – perguntou afastando os pensamentos desagradáveis.

-Um pouco. Mas vou visitar minha família sempre que posso.

Ele lhe ofereceu um café e ela aceitou. Ainda bebia, quando tentou investigar mais sobre ele.

-Não consigo entender como um espanhol sai de um país rico e vem morar no meio do mato.

-Olha quem fala... – ele sorriu.

Nicolas sentou-se do outro lado da mesa e também começou a beber café.

-Comigo é diferente. Sou filha desta terra. Amo a Índia e aqui é a minha casa.

-Pois eu também prefiro a Índia à Espanha. –ele a surpreendeu com a revelação – gosto da calma daqui. Apesar de, às vezes, os grupos étnicos existentes entrarem em conflito, o lugar é muito pacifico. Além disso, existe uma mística neste lugar que me faz desejar viver para sempre aqui.

Segurando o queixo com uma das mãos, Live o ouviu discursar sobre a vegetação virgem que encontrou ao chegar a Índia. Nicolas explicou que estava sem inspiração para pintar em Madri, mas ali, não houve um único dia em que não se sentisse entusiasmado. O lado religioso da Índia também o fascinava, pois eram poucos os países onde as pessoas levassem tão a sério o fator espiritual.

Mais tarde jantaram num silêncio gostoso. Nada imposto ou constrangedor. Era como se não precisassem falar, pois se entendiam com o olhar. E foi naquela cozinha que Live descobriu mais uma coisa sobre ele: cozinhava muito bem. Mesmo ela tendo feito um lanche antes de ir a casa dele, repetiu uma vez à torta fria que ele preparou e se deliciou com o suco de frutas que ele fez, de forma especial, substituindo o açúcar por mel.

-Quer que eu te ajude a lavar os pratos? – ela perguntou após comerem.

-Coloco na maquina – Nicolas respondeu sorrindo.

Então foram caminhar pelo jardim. A noite estava quente, mas não excessivamente. As estrelas e a lua no céu iluminavam a terra e Live sentiu vontade de abraça-lo naquele lugar tão romântico.

“Não seja boba” – murmurou para si mesma. O que ela poderia fazer para chamar a atenção dele? Mordendo o lábio inferior enquanto pensava, assustou-se com a voz de Nicolas perto de si.

-Live – ouviu ele dizendo – gosto de estar com você...

Ela o encarou e sentiu que Nicolas fosse beija-la. Era um sonho que estava se realizando. Mas... era tão estranho que as coisas de repente começassem a dar certo. Na vida dela nada era tão fácil!

Os pensamentos pessimistas sumirão ao sentir a boca de Nick deslizar sobre a dela. Ele segurou seus ombros e encostou o corpo ao dela. Era firme, másculo, deliciosamente perigoso. Ao sentir a língua dele pedindo passagem, Live entreabriu os lábios e o recebeu. Os dedos dela subiram ate os cabelos negros de Nick e ela acariciou sua nuca. Nunca, em toda a sua vida, sentira um beijo com tamanha intensidade. Um calor subiu por seu peito. Não era somente algo físico e excitante, era mais forte. Amor... ela estava apaixonada! Por maiores que fossem seus receios e seus traumas, o beijo de Nick tinha o poder de superar a tudo e lhe dar a esperança de poder sonhar...

Fez um gemido de protesto quando ele separou os lábios. Parecia confuso e arrependido e fez menção de lhe dizer algo. Mas naquele momento, os olhos de Nicolas encontraram o cordão que Live mantinha no pescoço.

O colar dos guardiões era entregue a cada um deles quando se começava um treinamento. Cada geração era responsável pelo controle do portal que unia o mundo dos homens ao inferno, e Live, um dia teria que entregar para seu filho a incumbência de manter a terra livre de demônios japoneses que sempre tentavam adentrar pelo planeta por um portal existente no Japão.

Mas aquele momento era de paz... ou deveria ter sido...

-Que colar é esse?

O rosto dele adquiriu uma expressão estranha.

-E apenas um cordão que recebi de minha mãe.

-Maire? – ele perguntou entre os dentes

-Não. Recebi de minha mãe biológica quando ainda era criança. Ela se chamava Odara...

A expressão de Nicolas se modificou completamente. Virando-se de costas para ela, ele colocou as mãos no bolso. Surpresa por aquela reação, Live o tocou no ombro.

-Fiz algo errado?

Ela entrou em pânico pensando que ele não havia gostado do seu beijo. Live nunca foi muito emotiva, portanto sua experiência amorosa era quase risível.

Virando-se e a encarando, ele pareceu pensar por alguns segundos, mas logo mudou de idéia.

-Não, é claro que não. Já está tarde, acho melhor te acompanhar até sua casa.

Não estava tão tarde assim, mas era óbvio que ele queria se livrar dela. A jovem tentou buscar na mente algo que pudesse ter quebrado o encanto, mas não notou nenhum erro de sua parte. O mais provável era que Nicolas arrependera-se de beijar uma mulher comum como ela, quando ele devia ter beldades as pencas na Europa. Live engoliu o orgulho ferido e desferiu:

-Não precisa, conheço o caminho.

Sentindo-se novamente com doze anos, recusando-se a falar com o pai biológico que a abandonou e descartada por todos por ser órfã, ela começou a correr por entre a floresta. Ouviu que Nick a chamava, mas não se voltou. Lágrimas já desciam por entre os olhos e ela viveu novamente aquela sensação tão conhecida... o abandono.

Não sabia o que tinha feito para ele reagir daquela forma, mas era fato que na sua vida, nunca era a primeira para ninguém. Maire e Mic a amavam com devoção, mas aquela sensação de ser a pessoa mais importante do mundo, Live nunca sentiu.

Lógico que com Nicolas Velaz ela jamais conheceria este sentimento, mas já estava começando a ter suas ilusões. Era realmente uma boba!

Quando entrou na casa, notou que o telefone tocava. Pensou em tira-lo do gancho e o desligar, mas mudou de idéia. Podia ser Maire ou Micaela e ela não tinha a intenção de preocupar as mães adotivas. Respirando fundo e engolindo os soluços ela atendeu.

-Alô.

-Estou ligando já faz duas horas. Onde estava?

-Mau?

Mauricio era o guardião de Touro. Live o conheceu quando todos os guardiões se reuniram no Japão para fechar o portal. Na época ela era uma menininha e ele um jovem de vinte anos, que de cara apaixonou-se perdidamente por Maire. Assim como aos demais, Live não foi notada com expressividade por ele, mas com a convivência que os anos deram, os dois se aproximaram.

Live sabia que Mauricio deixou de amar Maire e passou a viver um amor platônico por Micaela, mas este assunto era apenas de conhecimento, nunca falado. No mais, ele passou a ser um “pai” substituto para ela. Vinha visitá-la na Espanha e ela passou algumas férias no Brasil, país natal de Mauricio.

O guardião de Touro era mecânico e mulherengo. Mas um solteirão convicto. Muito bonito e de uma pele morena exuberante, Mauricio chamou a atenção de varias amigas de Live, causando até um certo sentimento de ciúme na jovem. Afinal, Mauricio já era seu. Era para ela que ele dava presentes e carinho. Ele a amava como pai e ela lhe recompensava os sentimentos.

-Micaela me ligou falando que você chegou a Índia e em menos de vinte e quatro horas já estava interessada por um artista “hippie”. Se eu não me engano, você estava indo para casa, a fim de cuidar das crianças pobres. – a voz dele era zangada e reprovadora.

Live quase riu. Era típico daqueles três se reunirem para tentar controlá-la. Podia quase enxergar Micaela tentando convencer Maire que Live corria perigo com o artista, e como a irlandesa não deu atenção, ligou para Mauricio pedindo socorro. Apesar de Maire ser a mãe compreensiva e doce, era Mau e Mic os pais preocupados, nervosos e que adorariam enfiá-la em alguma bolha para que nada nem ninguém lhe fizesse mal. Era algo tão contraditório, mas Live não podia deixar de notar que Mic e Mau eram preconceituosos com artistas e bastante conservadores com a sua "menininha".

-Eu estou na Índia para realizar trabalhos sociais. E o artista em questão não é hippie! Além disso, você já não tem cinco irmãs para se meter nas vidas? Por que eu também tenho que ser sua vitima?

-Olhe como fala comigo! Não foi assim que eu te criei!

-Por favor! Você não me criou!

-Como não! Quem te ensinou a pescar, jogar futebol, flertar? Quem segurou a barra quando aquele imbecil te traiu com sua melhor amiga? Quem te ensinou a comer salgadinhos com banana? Quem...

-Quem me proibia de colocar saias curtas? Quem espantava qualquer garoto que se aproximava? Quem? – ela o interrompeu rindo.

Mauricio fez silêncio por alguns segundos.

-Me preocupo com você. – disse por fim.

-Eu sei... também te amo.

-Não disse que te amava!

-Mas pensou.

Agora foi a vez dele rir.

-É verdade, eu pensei.

Live suspirou, segurando o telefone com mais força nas mãos.

-Não a nada com que se preocupar. Este artista é bonito, rico, inteligente e famoso. Nunca olharia para mim...

-Por que diz isso? Você é linda, inteligente e charmosa. Qualquer homem em sã consciência olharia para você.

-Não ele.

-Tem certeza?

-Está noite jantamos juntos. E ele deixou isso bem claro.

Mauricio suspirou do outro lado da linha.

-Lamento, querida, mas não posso negar que estou aliviado. Você é muito sensível e carente...

-Não sou carente!

-É carente sim! E só se envolveu com idiotas até hoje. Não quero que mais ninguém te magoe.

Live respirou fundo e sentiu uma nova vontade de chorar.

-Eu vou ir dormir, Mau... obrigada por ter ligado.

-Durma com os anjos e saiba que sempre terá a mim.

Live desligou o telefone assim que o ouviu dar um beijo no aparelho. Era uma mania entre eles. Como viviam com um mar os separando, ele sempre dava beijos estralados no telefone para que ela sentisse como se estivessem próximos.

Naquele momento funcionou!

Mais aliviada por ter desabafado com alguém, Live tomou uma ducha quente e caiu na cama. Não demorou nada para pegar no sono.

Continua...


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