Segredos Submersos escrita por lovegood


Capítulo 51
Sangue no asfalto


Notas iniciais do capítulo

No confronto final, o capítulo mais longo da fic pra vocês. Tinha de ser, né.
Espero que gostem!



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Meus pés pareciam ser feitos de chumbo ao se arrastarem pelo asfalto da Ponte do Brooklyn.

Eu mal prestava atenção ao que ocorria ao meu redor, mas pude perceber que estávamos agora em grande vantagem em relação aos monstros e híbridos serventes de Pallas. A morte de William Wilson os enfraquecera e, ao longe, para dentro da neblina, pude sentir a cólera de Pallas parecer reverberar pelo ar.

Ele provavelmente havia se cansado de se manter apenas como mero espectador e, agora que também teria sentido a presença de Poseidon e dos outros deuses retornando ao Monte Olimpo, em uma questão de poucos minutos se levantaria.

Antes de finalmente enfrentá-lo, porém, eu sabia que não teria paz comigo mesma se eu não encarasse o que estava acontecendo – que Thalia Grace estava morrendo e eu não seria capaz de salvá-la.

Ainda assim, precisava vê-la.

Meus olhos ardiam e o rastro das lágrimas que agora estava seco em meu rosto gelava minha pele em contato com o vento que sussurrava ao meu redor.

Apertei a varinha com força, não sabendo o que pensar ao refletir o fato de eu ter conseguido realizar uma das Maldições Imperdoáveis. Ao lembrar-me do sorriso no rosto de Wilson e ao ver o sangue de Thalia ainda escorrendo no asfalto, a surpresa e confusão se esvaíram.

Aqueles poucos minutos nos quais ajoelhei-me com Percy e Annabeth mais ao canto da Ponte do Brooklyn, ao redor do corpo de Thalia – sua cabeça estava apoiada no colo de Annabeth, conforme as lágrimas desciam livremente pelo rosto desta – pareceram durar uma eternidade.

A batalha continuava, mas aquele momento pareceu estar suspenso no ar; o tempo parecendo momentaneamente parar ao meu redor para que minha cabeça processasse as informações.

Não pude ouvir as últimas palavras de Thalia, porque ao alcançá-la ela já havia morrido.

O sangue cada vez mais impregnava o áspero do chão e manchava sua camiseta branca. A espada de Wilson havia sido retirada e jazia, pintada de escarlate, ao lado de seu corpo. Apesar dos ferimentos, porém, nas feições de Thalia havia apenas a mais profunda paz. Aquela aura prateada de força que sempre pareceu cobri-la enquanto Caçadora de Ártemis já havia desaparecido, bem como o brilho de seus olhos azuis elétricos. Eles agora estavam pálidos e pareciam fitar o além, como se esperassem encontrar mais esperança acima daquele céu nublado e cinzento. Lembrei-me da mesma serenidade que um dia eu havia visto nos rostos de Fred, Tonks, Lupin e tantos outros, e repentinamente não fui capaz de olhar naqueles olhos. Desviei o rosto ao deslizar suas pálpebras para baixo, jogando-a em seu sono eterno.

Aquela sensação de pause que a vida me dera naquele exato instante então se esvaiu, fazendo-me retornar à realidade.

Levantei-me e andei em direção ao corpo de William Wilson, jogado no chão a alguns metros dali. Retirei de sua cintura a bainha de sua espada e fiz questão de pisar em seu corpo ao retornar para perto de Thalia. Coloquei na minha própria cintura a bainha de Wilson e tirei a faca de bronze celestial de meu bolso. O chifre de erumpente roçou minha pele contra o tecido da calça, mas não me importei.

Tirei a espada de Wilson do chão e coloquei-a, ainda impregnada de sangue, na bainha em minha cintura. Em troca, posicionei a faca que Annabeth há muito me dera – em uma época que as ameaças de Pallas nada mais eram que um sussurro no ar – nas mãos frias de Thalia.

Percy finalmente desviou os olhos do cadáver da prima e me encarou. Suas íris claras estavam rodeadas de vermelho e neles pude ler tanta coisa que um soco pareceu ser dado em minha face. Tristeza, coragem, dúvidas sobre o que eu estaria fazendo e, principalmente, uma determinação. Tanto em relação a Pallas como nós dois; a noite de aniversário e que de fato um dia teríamos que encarar o que estava acontecendo conosco. E que, para que essa discussão a princípio tivesse de ser imposta, teríamos que vencer e fazer honra à líder das Caçadoras que tanto sacrificara em uma batalha que deveria ser minha.

– O que vai fazer com isso? – perguntou Annabeth, apontando com os olhos para a espada de Wilson em minha cintura. A cabeça de Thalia ainda estava recostada em seu colo e os dedos de Annabeth acariciavam sua pele, como se quisesse reconfortá-la.

– Acabar com tudo isso agora – falei. Em minha voz ainda havia um resquício de tremor; mais pelos prantos do que por medo. – Se foi essa espada que tirou a vida de Thalia, que seja ela que tire a de Pallas também.

Percy começou a se levantar. Indiquei para que ficasse ali.

– Não, Percy, por favor. Sou eu quem tenho que fazer isso. E... fique aí com Thalia. Eu não gostaria de vê-la deitada no chão e esquecida no meio dessa confusão – e olhei para o corpo de Wilson e pensei em como sua vida deveria ter sido antes de ser ludibriado por Pallas ou qual teria sido seu verdadeiro nome. Não me surpreendi ao ver que não conseguia. – Protejam-na, porque eu não fui capaz.

E então, fui em direção à neblina.


Apesar de a princípio ter sido eu a ir em busca de Pallas, foi ele quem iniciou a luta.

Era óbvio que ele estivera me aguardando e analisando cada movimento meu.

No instante em que estávamos, eu nada podia ver à frente ou atrás. Ainda estávamos na Ponte do Brooklyn, mas as batalhas contra os subordinados de Pallas e Percy e Annabeth e o cadáver de Thalia Grace próximo ao de William Wilson ficaram muito para trás – a neblina era espessa demais para eu ver qualquer coisa no horizonte, o que me trazia uma sensação de isolamento e claustrofobia. Como se flutuássemos no vazio e estivéssemos presos àquela vastidão branca que se fechava sobre mim, por mais infinita que fosse.

Naquele cenário em que o vazio parecia ser a maior constante, havia apenas eu ajoelhada no chão, tossindo e tentando recobrir a respiração; Pallas, sorridente posto atrás de mim, após ter me soltado de um gancho de braço que por pouco não me sufocara; e Morfeu, simplesmente de pé ao longe, um vulto solitário no horizonte que parecia tremer em minha visão cansada.

Por mais abatida que Pallas estivesse me deixando, não pude deixar de ter um pensamento um tanto maldoso em relação a Morfeu – de que ele nada tinha de utilidade em toda aquela situação e, no espectro maior de toda aquela batalha, estava sendo apenas um zero à esquerda. Ele simplesmente fica de pé como um otário, pensei. Acha que levará a glória consigo quando Pallas triunfar, mas não percebe que será feito de idiota quando tudo acabar.

Nas frações de segundo nas quais minha mente processou tais informações, lembrei-me de algo que eu dissera a Tânatos – tio de Morfeu – em um momento de raiva, durante um jantar em um sonho distante. De que Tânatos era um covarde e que pelo menos Morfeu havia sido determinado ao escolher um lado.

Ao vê-lo ao longe, sem nada a fazer a não ser ficar de pé, comecei a pensar que talvez eu estivesse errada.

Pallas chutou minhas costas e a dor se irradiou por meu corpo, fazendo-me cair para a frente contra o asfalto e eu perder a linha de raciocínio. Riu suavemente assim que pus as mãos no chão para evitar que minha cabeça batesse, mas ainda assim abrindo cortes nos dedos.

Ele me levantou com força, a partir da gola de minha camiseta e segurou-me de modo a eu não ser capaz de me mover ou fugir. De qualquer forma, também não tentei. Sabia que por enquanto seria inútil. Eu só esperava que Pallas não me matasse antes da ajuda aparecer – e eu sabia que em certo tempo ela deveria estar lá, pela mensagem que Poseidon me mandara pelo vento e pelas águas do Rio East.

Ainda me segurando, com uma das mãos pegou a minha, ralada pela pedra do asfalto e sangrenta. Colocou-a próxima de meu rosto, forçando-me a encará-la.

Sua face estava a centímetros da minha quando falou, a voz grossa raspando na garganta e batendo contra minha pele:

– Vê isso, Hermione? – e indicava com a cabeça o sangue em minha mão. Em seus olhos azuis havia um traço de insanidade. – É isso que eu quero dizer com Trevas e Dissolução. A Morte Vermelha. Consegue senti-la?

E empurrou minha própria mão contra meu rosto, de modo a esfregar o sangue em mim. A palma ardeu com o contato brusco; cerrei os dentes mas não me permiti a demonstrar a dor em sons ou palavras. Não reagi, pois sabia que no momento não deveria.

Eu não possuía mais armas. Pallas havia tirado-as de mim assim que teve a primeira oportunidade ao me ver, jogando tanto a espada de Wilson quanto minha varinha para longe de meu alcance, próximas a um dos pilares da ponte.

Logo me soltou, com a mesma brutalidade de antes. Cambaleei para trás e por pouco não caí. Pallas riu novamente.

– Fico surpreso ao ver que a mais notória das híbridas seja uma garota tão incompetente – disse ele. Retomei o equilíbrio e assim fiquei, sem nada a fazer. Não havia como atacá-lo sem minha varinha ou pelo menos a espada. Quis cuspir em seu rosto da mesma forma em que cuspi tantas vezes no de Wilson, mas não o fiz. – Confesso, Hermione, naquela outra vez em que nos encontramos, eu realmente estava interessado em você. Ao descobrir que havia mais uma híbrida passeando por aí, ainda mais sendo Hermione Granger, heroína dos bruxos, eu não me segurei. Realmente acreditava que você poderia ter sido uma boa combatente em meu exército.

Aproximou em passos largos e calmos, conforme eu tentava me afastar para trás. Pallas sorriu e segurou meu queixo suavemente. Dei um tapa em sua mão. Em resposta, ele deu um tapa em meu rosto, fazendo-me cambalear outra vez.

– Pelo visto eu estava errado, e olhe que é bem difícil isso acontecer – falou Pallas, empurrando-me como parte de sua brincadeira. – Então fiquei bem chateado. E depois de você basicamente ter destruído meu esconderijo durante aquela fuga, bem, eu tive de vir atrás de você. Claro que, um dia já teríamos de avançar para tomar o Olimpo das mãos asquerosas de Zeus, mas a senhorita só adiantou o processo ainda mais.

Eu estava no chão novamente. Pallas ergueu-me, puxando pelos cabelos. Grunhi de dor e ele pareceu sorrir. Soltou-me e virou-se de costas, indo em direção à minha varinha e espada jogadas no chão.

Morfeu permanecia de pé, sério.

– Então é assim que você recruta seus seguidores, Pallas? – arrisquei-me ao perguntar. Com minha varinha em mãos, o titã se virou em minha direção, as sobrancelhas levantadas em falsa cordialidade. – Sequestrando-os e esperando que eles se juntem a você?

Pallas deu de ombros e outro sorriso pareceu deformar suas feições angulosas. Eu respirava fundo e, agora de pé, tentava não transpassar ao rosto a dor que sentia em todas as partes de meu corpo.

– Às vezes dá certo – respondeu com tranquilidade, como se estivesse comentando um assunto trivial como o preço da comida ou a temperatura –, porém na maioria dos casos tenho um outro método. Mas a senhorita deveria saber que com você foi diferente, Hermione. Era uma circustância diferente que eu sabia que você não se entregaria tão facilmente.

Jogou a varinha em minha direção. Um tanto cética, peguei-a.

– A sua incompetência está doendo minha alma, Hermione – Pallas voltou a dizer. – Pegue uma arma e ao menos finja que está tentando lutar. Sem armas você consegue ser mais inútil do que alguns de meus seguidores.

(O chifre de erumpente em meu bolso roçou minha perna outra vez e o simples lembrar de sua existência pareceu dar-lhe vida)

Lancei um feitiço silencioso no qual o titã se desviou como se aquilo fosse uma mosca.

– Então, pelo fato de eu ser alguém que não se entregaria facilmente, você resolveu me sequestrar e me violentar de uma maneira que apenas reforçaria o meu repúdio – disse eu, naquele mesmo tom de tranquilidade, soando o mais sarcástica possível. – Tá, claro. Grande jogada, Pallas, meus parabéns.

Na visão de Pallas, pelo visto, ele deveria ser o único de nós a experimentar um pouco de felicidade dentre o vazio ao nosso redor, pela forma que sua expressão repentinamente ficou séria e o brilho de seus olhos azuis demonstraram ódio.

Ele não me respondeu; empunhou uma arma parecida com uma lança e, em um único gesto, jogou-me para trás. Caí de costas no chão e por pouco as lágrimas de dor não turvaram minha visão.

Pensei em Poseidon e onde ele poderia estar. Sua mensagem havia me dito que conseguira voltar e Zeus finalmente dera um sinal no Olimpo, então, onde estariam todos? A neblina que cobria todo o mundo permanecia sendo uma jaula. Não pude evitar que uma onda de preocupação percorresse meu corpo.

Pallas me alcançou e puxou-me para cima novamente, arrastando-me como se eu fosse feita de pano.

– Deixe de ser fraca, Hermione – sibilou ele.

Com o corpo inteiro doendo e a respiração ofegante, eu fiz o que ele pediu.

Foi como se esse simples pedido houvesse sido exatamente o necessário para que eu conseguisse reunir um pouco de força, no exato instante em que a neblina deixou de ser a única coisa ao meu redor e o vento passou a assoprar nossos rostos.

E com o vento, veio o barulho de água. Das ondas sendo formadas pelo Rio East fazendo-a oscilar tanto quanto o oceano.

(O Mar da Fé...)

Não fui a única a perceber tal mudança no ambiente; Pallas reparou também e, em seu único momento de distração, pude entoar:

Estupefaça!

Pallas foi lançado para trás e caiu no chão. O feitiço havia sido muito pouco para ter um efeito significativo, mas pôde servir como distração.

No que olhei ao redor, conforme Pallas voltava a se levantar – com um semblante que misturava ódio e confusão – a neblina começou a se dissipar e logo fui capaz de ver as águas do Rio East tornando-se instáveis.

E a realização caiu sobre mim com um baque.

Por Merlin, pensei. Como você é burra, Hermione!

Tudo aquilo abaixo e ao redor da Ponte do Brooklyn era água, e eu era filha de Poseidon.

Comecei a tentar canalisar meus poderes, concentrando-me o máximo possível, porém os passos de Pallas em minha direção eram muito mais rápidos. Bateu com seu objeto no chão, fazendo com que do impacto surgisse uma forte onda de força pelo asfalto, empurrando-me para trás e derrubando-me.

Ainda assim, pude me levantar mais rapidamente do que antes.

Reducto! Estupefaça! – continuei a lançar uma infinidade de feitiços. Aquela distração inicial foi o ponto de partida para que Pallas perdesse seu controle absoluto e total sobre mim; agora, na grande maioria das azarações ele se defendia, porém por outras era atingido.

Eu tentava me movimentar conforme lançava os feitiços contra Pallas e desviava alguns de seus ataques com feitiços escudos, indo ao máximo em direção à extremidade da ponte onde a espada de Wilson ainda jazia.

Pallas, porém, reparou em qual direção eu tentava me aproximar e de novo bateu sua lança contra o chão, retornando a me empurrar para trás de modo que eu caísse. Senti uma forte ardência no braço e não fiquei surpresa ao ver o sangue escorrer, pingando no chão.

Deitada, contudo, apontei a varinha o mais rápido que pude – no intervalo de tempo em que Pallas fez o movimento com sua arma e antes de que pudesse realizar outro ataque – e gritei:

Expelliarmus!

Levantei-me a tempo de segurar com ambas as mãos a arma de Pallas. Um tanto desajeitada, atrevi-me a apontá-la para ele. Os ferimentos em minhas mãos latejavam, mas eu tinha de ignorá-los.

Dos lábios do titã da guerra saiu uma risada. Não soube dizer se expressava zombaria ou raiva.

– Deixe de ser tola! – exclamou ele, sua cabeça pendendo para o lado conforme suas feições tornavam-se grotescas ao se repuxarem naquela risada. Não pude deixar de sentir uma leve ponta de impaciência; Pallas realmente gostava de falar e tinha aquele impulso clichê de querer explicar seus pensamentos minuciosamente, de modo a demonstrar a todos sua superioridade. Junto com a impaciência, percebi, veio em mim uma pontada de esperança. Talvez fosse seu ponto fraco, a brecha da qual eu tanto necessitava...

Resolvi estimulá-lo.

– Juro que eu esperava mais de você, Pallas – comecei a falar, empunhando a arma dele na mão. – Sempre falando da Morte Vermelha e como libertaria o caos para comandar uma invasão ao Olimpo, mas olhe! – Apontei em direção ao Empire State Building, por mais que dali não fosse visível pela neblina, no momento bem mais esparsa do que outrora. – Eu não fui a única a sentir e você sabe muito bem disso; os deuses voltaram e Poseidon também. Por que continuar?

Conforme a cólera subia pelo rosto de Pallas, em meu interior eu passava a me concentrar. Inspirei profundamente e passei a canalisar tudo o que havia em minha mente; em meus ossos, senti, uma onda de poder parecia impregná-los.

Dos bolsos de Pallas saíram uma boa quantidade de facas, lançadas contra mim em um momento de raiva como dardos em direção ao alvo. Consegui bloqueá-las com um feitiço escudo, sem deixar derrubar a lança dele.

– Eu não luto por mim mesmo! – gritou Pallas; seu rosto pálido adquiriu uma forte coloração avermelhada. Suas íris pareciam queimar. – Eu luto por toda a minha história, por tudo que aconteceu, por tudo que houve principalmente no ano passado! E você só piorou as coisas!

A quantidade de emoções que passavam pelo rosto de Pallas era tão grande que por pouco não senti pena. A humanidade presente em todo aquele rancor de uma existência dominada por escolhas erradas – a queda histórica na Titanomaquia e a posterior vivência no Tártaro, a Batalha de Manhattan no ano anterior em que Cronos novamente fora derrotado – quase me impediu de prosseguir com minha tentativa de utilizar meus poderes herdados de Poseidon. Antes que eu pudesse parar, a imagem de Wilson encravando sua espada no estômago de Thalia e seu corpo, sem vida, caindo no chão conforme o sangue escorria pelo asfalto dominou minha mente e minha visão voltou a turvar, tanto pela tristeza quanto pela decisão de que sim, o que eu faria era o mais correto. Teria de ser o mais correto.

Fiz um breve movimento com ambas as mãos, erguendo-as para cima, e a explosão de água que o Rio East provocou na Ponte do Brooklyn engoliu o mundo da mesma forma que a neblina antes fizera.

No que Pallas e Morfeu – e possivelmente todo o resto da batalha do outro lado da ponte, incluindo meus amigos, que eu esperava estarem cuidando de Thalia – foram arrebatados pela onda de água que os engoliu, corri o que fui capaz em direção à espada de Wilson derrubada no chão.

A exaustão começava a subir por minhas pernas e enlaçar-me com seus braços infindáveis, assim que tomei posse da espada. Joguei a lança de Pallas do parapeito da ponte, em direção ao Rio East. Talvez ela não fosse perdida – esperava que ela não funcionasse da mesma forma que a Anaklusmos de Percy, sempre retornando ao seu legítimo dono –, mas o atrasaria.

No que a água baixou de nível e o cenário ao meu redor voltou a ser o de concreto e asfalto, a neblina havia se dissipado quase completamente e o céu não estava mais cinzento. As nuvens haviam desaparecido e o sol tão forte e escaldante que senti que poderia ter ficado cega, naquele primeiro instante.

Como se fazendo jus ao sol que repentinamente surgira, por trás de mim ouvi passos e, poucos segundos depois, Apolo apareceu ao meu lado. Levemente ferido, mas ainda com o sorriso de propaganda de creme dental e os cabelos tão reluzentes quanto o globo de luz o qual representava.

Ao lado de Apolo, um tanto mais para trás, surgiu uma adolescente – aparentava ser um tanto mais nova do que eu – de longos cabelos castanho-avermelhados e olhos prateados. Nunca a havia conhecido, mas como instinto percebi que devia ser Ártemis. Pensei em como ela estaria, sabendo que a fiel líder de suas Caçadoras havia sucumbido à batalha.

Cambaleante e um tanto abatido, Pallas se levantou, completamente encharcado. Entretanto, nesse momento não foi a ele quem dei atenção, mas sim o negro careca cujos olhos haviam por um instante se arregalado ao ver os dois irmãos deuses ali. Morfeu virou para trás e, em passos rápidos, começou a andar. Tive um leve pressentimento que eu sabia o que ele faria e meu estômago pareceu afundar.

Comecei a correr em sua direção, espada e varinha em mãos, por mais que meu corpo já protestasse.

Morfeu começou a correr também, e eu sabia que não seria capaz de alcançá-lo.

O deus dos sonhos, filho de Hipnos e sobrinho de Tânatos, virou-se em minha direção e encarou-me de frente ao fazer um simples movimento com o braço e repentinamente desaparecer no ar, como se nunca houvesse estado ali antes.

– NÃO! – gritei. – Morfeu! Desgraçado, covarde!

Minha voz raspava na garganta e a raiva fez minha cabeça latejar, da mesma forma que William Wilson fizera comigo ao largar Thalia no chão, pendurada por uma lâmina que atravessara suas costas.

O ódio por Morfeu que subiu aos meus olhos foi tanto ao ponto de eu voltar a me distrair em relação ao que havia ao meu redor. Não reparei em como, no meio de minha corrida, Pallas se aproximara de mim – Apolo e Ártemis talvez estivessem muito longe para terem tido tempo de fazer qualquer coisa também.

Só tive consciência do que acontecia ao ver os olhos de Pallas brilharem de ódio, muito próximos dos meus, e seus braços encharcados enlaçarem minha cintura, assim que o cenário da Ponte do Brooklyn se desfazia ao meu redor em direção à escuridão.


Pallas me jogou no chão com brutalidade e foi isso que me fez discernir o que retornava a acontecer à minha volta.

A dor que percorreu meu corpo foi grande. Seu contato com o chão, no entanto, permitiu que eu entendesse que aquilo não era mais asfalto, mas uma superfície lisa e gelada.

Minha vista estava turva e minha cabeça girava, mas mesmo na vertigem pude ver acima de mim um céu escuro e coberto de estrelas e constelações.

A princípio fiquei em dúvida; onde eu estaria? Ao olhar em direção ao céu por tempo o suficiente – entre os ataques de Pallas, pelo menos – pude perceber que não era o verdadeiro céu, mas um teto encantado. Lembrei-me de Hogwarts e do Campo de Asfódelos.

Pallas acabou fazendo com que eu virasse de lado ao me puxar para cima, de modo a encará-lo outra vez, e pude ver de relance que eu estava em um salão, imenso ao ponto de não ser capaz de descrevê-lo em palavras. Por maior que fosse, contudo, não era possível não perceber os gigantes tronos em forma de U mais ao fundo daquele local.

Aquele era o salão principal do Olimpo, vazio e solitário, e Pallas me arrastava pelo colarinho em direção ao seu centro. Dentre toda a dor e o cansaço que me percorriam por inteira, perguntei-me onde estariam os deuses. Eu sabia que haviam retornado, mas por que não estariam ali?

Talvez eles finalmente tenham ido atrás de Apolo e Ártemis, em direção à Ponte do Brooklyn querendo ajudar os campistas, pensei e não pude evitar que uma pequena risada irrompesse de mim, com o desencontro de informações que estava ocorrendo. Tal gesto fez com que meu tórax doesse e Pallas ficasse ainda mais irritado.

– Do que está rindo? – cuspiu ele.

Murmurei algo ininteligível, que tanto eu como ele interpretamos como um “não é nada”.

Eu estava sozinha e Pallas me puxava em direção ao trono central, que eu sabia ser de Zeus. Ele tomaria posse daquele local e posteriormente o destruiria, jogando o Olimpo no caos, e eu seria a única a presenciar tal cena.

Por mais fraca que eu estivesse, tentei me desvencilhar de seu toque. Pallas riu e propositalmente me jogou no chão.

– É isso que você quer? – exclamou, encarando-me de cima. Deixou-me jogada ali mesmo, agora andando sozinho em direção dos tronos. Por sorte, o salão era imenso e os pés de Pallas pareciam demorar ao tentar alcançá-los, o que deu tempo de eu me levantar.

Minhas pernas doíam e os ferimentos em meus braços e mãos já pareciam até coagular; o sangue – tanto o de Thalia como o meu – entre meus dedos já estava seco. Minha visão estava cansada e cada centímetro de mim gritava, mas ainda assim empunhei a varinha. Não podia desistir tão cedo, não quando eu sentia que podia ganhar, não quando Pallas estava tão mais próximo de sua ambição.

Eu não sabia mais o que fazer. Estava muito fraca para lutar com a espada e se tentasse eu facilmente seria derrotada. Mesmo se utilizasse a varinha, não funcionaria por muito tempo.

Pense, Hermione, pense. Era necessário um plano; um ataque qualquer não daria certo. Não havia mais água em grandes quantidades para que eu pudesse utilizá-la, e, mesmo se houvesse, minha tentativa anterior já me roubara em muito as energias.

Apesar de estar de costas para mim, eu sabia que Pallas sorria e seus olhos azuis brilhavam, conforme avançava naquele salão interminável e solitário.

Apoiei as mãos nas coxas e o chifre de erumpente que Luna Lovegood me dera há poucas horas roçou novamente contra minha pele, parecendo estar vivo e chamando meus dedos para que o segurassem.

Meu corpo estremeceu e os pelos de meus braços se arrepiaram ao perceber a presença daquele objeto tão perto de mim.

A respiração pareceu se prender na garganta, conforme o êxtase daquela redescoberta parecia encher meu tórax de esperança e adiar mais um pouco a dor física.

Era aquilo.

Respirei fundo e ergui a varinha com uma mão. A outra se posicionou no bolso, deixando o chifre dentro de um alcance rápido. Ele deveria estar lá assim que eu precisasse, mas Pallas não poderia vê-lo em minhas mãos antes de eu realizar o ataque certeiro.

O titã ainda estava de costas, parado, admirando o trono de Zeus. Eu sabia que em poucos segundos ele irromperia em mais um discurso sobre triunfo, trevas e a Morte Vermelha; sobre como eu seria derrotada sob as luzes do Monte Olimpo e todas aquelas baboseiras, portanto eu deveria saber administrar o tempo que tinha.

Em passos lentos e mais silenciosos possíveis, aproximei-me. Tinha de ser discreta, mas ainda assim que Pallas me ouvisse, fazendo-o acreditar que eu estaria justamente tentando fazê-lo não ouvir.

Ele se virou e com a mão criou uma onda de força que veio em minha direção no exato instante em que gritei:

Estupefaça!

Os dois ataques se colidiram exatamente no mesmo instante. Um pareceu absorver o outro e a força dobrou de intensidade, empurrando nós dois para trás conforme uma forte luz vermelha impregnava o ambiente em uma bolha massiva de ar para então desaparecer, ambas as investidas se anulando.

Pallas não havia esperado por tal coisa. Por um momento seus olhos azuis se arregalaram e sua boca se entreabriu em surpresa; teve de cobrir a vista com um dos braços devido à luz ofuscante.

Aproveitei os milésimos de segundo que procederam o desaparecimento do globo de luz escarlate para largar a varinha no chão e com aquela mão alcançar a espada de Wilson na bainha, pulando em cima de Pallas.

Ele não caiu, mas cambaleou e teve de levar alguns segundos para perceber o que acontecia e se defender de meu ataque. Nesse meio tempo, avancei com a espada, mas as mãos de Pallas que buscavam defesa não permitiam que a lâmina cortasse sua pele – ainda assim, o metal cortante estava a milímetros de seu rosto.

Pallas empurrou-me para trás. Caí no chão, largando a espada, e agora alcançando a varinha.

Estupefaça! – gritei. Mesmo não o atingindo, os ataques simultâneos pareciam começar a deixar Pallas atordoado.

No momento em que eu me levantava, Pallas pulou em cima de mim.

Naquele único instante em que fiquei agachada, tudo ao nosso redor simultaneamente pareceu congelar o tempo como passar rápido demais. Involuntariamente uma de minhas mãos desceu ao bolso e pegou o chifre de erumpente. Milímetros antes do corpo de Pallas colidir com o meu contra o chão, meus reflexos repentinamente comandaram meu corpo e minhas mãos de alguma maneira enfiaram o chifre de erumpente no peito do titã da guerra.

Quando meu cérebro finalmente tomou consciência do que havia acontecido, os olhos de Pallas estavam a centímetros dos meus, muito arregalados e sem saber o que fazer. A proximidade naquele milésimo de segundo permitiu que eu de fato o encarasse. Suas íris azuladas eram tão profundas quanto as de Percy e estavam agora tão abertos quanto os de Thalia no momento de sua morte, porém eram muito mais frios.

Ainda em choque, suas pupilas se desviaram das minhas para baixo, em direção ao peito, de onde o sangue começava a brotar. Minhas mãos tremiam, ainda em volta do chifre enfiado em seu coração.

Naqueles milésimos de segundo nos quais o tempo pareceu se tornar algo estático, Pallas abriu a boca. Tentou dizer algo, mas som algum saiu e só fui capaz de compreender o movimento de seus lábios:

Maldita.

Dos meus lábios, em contrapartida, nesses milésimos de segundo saiu uma risada rouca e involuntária, que logo se fecharam ao perceber com que arma eu havia matado Pallas, o titã da guerra. Era um chifre de erumpente.

Naqueles milésimos de segundo, minhas mãos soltaram o chifre que se prendeu no peito de Pallas e imediatamente empurraram seu corpo para que saísse de cima de mim, para o mais longe de mim.

Eu havia acabado de conseguir me levantar e começado a correr para longe quando o corpo de Pallas explodiu como uma bomba-relógio, o impacto reverberando pelo ar e jogando-me para a frente com violência, fazendo-me perder o chão aos meus pés.

Um forte calor inundou o ambiente e lambeu minhas costas. Senti meu corpo bater contra o chão e tudo zumbir em meus ouvidos.

Depois, novamente, apenas a escuridão.


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