Segredos Submersos escrita por lovegood


Capítulo 25
No ático da casa abandonada


Notas iniciais do capítulo

Minhas aulas começam amanhã. Estou realmente triste por causa disso.
Meh, fiquem com o capítulo mais longo da fic até então.



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Quando acordei, eu não sabia onde estava.

O conjunto de sensações que se apoderou de meu corpo nos momentos em que comecei a recobrir consciência pareceu ser um borrão em minha memória. Minha visão não possuía foco, minha cabeça latejava e girava assim como grande parte de meu corpo; eu era capaz de ouvir sons distantes e abafados mas não discerni-los.

As pálpebras dos olhos pesavam e eu conseguia sentir, no meio de tudo, meu corpo apoiado contra a superfície dura do chão gelado. Minha maçã do rosto estava dormente e gelada no piso frio.

O misto de sensações ao acordar não devia ter durado mais que poucos segundos, mas as dores que fisgavam meus músculos cansados fizeram com que durasse uma eternidade.

Tentei me levantar mas a vertigem que percorreu meu corpo foi forte demais e forçou-me a deitar novamente. Tudo ao meu redor parecia girar e tive a impressão de estar caindo, diversas vezes. Fechei os olhos e tentei arranjar uma posição a qual aliviasse um pouco a tontura.

Acabei por ficar de barriga para cima, fitando o teto do lugar (onde eu estava?).

Havia uma lâmpada pendurada a poucos metros acima de mim, sua luz amarelada bruxuleando e iluminando fracamente o local. As paredes – eu estava praticamente encostada em uma delas – eram feitas de ripas de madeira branca que se erguiam ao teto em uma formação triangular, todas elas encontrando-se em um único ponto no topo.

Não havia piso especial, o chão áspero era apenas cimentado. Aparentava ser o ático de uma casa.

As ripas de madeira pareciam podres e prestes a cair a qualquer momento. Parecia ser o ático de uma casa muito mal cuidada e aos pedaços, pensei.

Ficar observando a “decoração” parecia ser uma boa distração para a dor incessante. Olhei em direção à porta – tentando ignorar minha cabeça começando a girar em protesto – e percebi que ela estava muito longe, do outro lado do cômodo. Não era uma sala muito grande, mas ainda assim. Considerando o quão fraca estava, seria difícil alcançá-la.

Virei-me de bruços e comecei a me rastejar pelo chão, indo para a porta. Minha respiração logo se tornou ofegante e meu tórax parecia gritar. Consegui avançar meio metro mas em pouco tempo minha movimentação foi impedida por algo que segurava meus tornozelos.

Eram correntes. Pretas, levemente enfrerrujadas e incrivelmente grossas. Grunhi e no desespero que me seguiu, sentei-me no chão e comecei a tentar arrancar as correntes com as próprias mãos; meu corpo tremia e protestava em fisgadas de dor, de minha boca saía um som contínuo e desesperado de aflição. Lágrimas vieram a meus olhos e, poucos minutos depois, ao ver que tirar as correntes seria em vão, peguei-me chorando. Os soluços que subiam por meu peito faziam com que tudo doesse ainda mais.

Onde estariam meus amigos?

Lembrei-me da luta e de tudo que ocorrera no cemitério, o bruxo apontando a varinha e lançando-me ao longe, eu caindo no chão e logo depois sentindo o puxão de uma aparatação. Ele provavelmente havia aproveitado-se de minha queda e ido até mim rapidamente, sequestrando-me e fugindo antes que os outros pudessem reagir.

Agora eu não sabia onde estava e nem o que poderia estar acontecendo com o resto do grupo. O desespero misturado às dores fizeram com que uma vertigem ainda pior voltasse. Ficando de joelhos e apoiando as mãos no chão, tossindo, não consegui vomitar.

Eu não estava mais de jaqueta e minha regata branca estava colada ao corpo, imunda não só de poeira como também suor e sangue. Minha mochila não estava em lugar algum. Agora que não havia mais roupas cobrindo meus braços, pude perceber em meu antebraço esquerdo a cicatriz.

Sangue-ruim.

As palavras, marcadas e esbranquiçadas, agora estavam levemente mais apagadas pelos outros cortes e feridas que recebera ainda hoje.

Hoje? Seria este ainda o mesmo dia? Não tinha noção de quanto tempo eu passara inconsciente, podia ser minutos, horas ou semanas. Não havia janelas no cômodo para que eu pudesse ver a luz do dia.

O enjoo retornou, mas antes que eu pudesse fazer alguma coisa, a porta escancarou-se e uma figura entrou. Pude ver atrás dela um corredor, tão pútrido quanto o quarto, com uma escada à direita que levava para baixo. Ruídos abafados, de vozes altas e risonhas, veio do andar (ou seria andares?) inferior.

Tive vontade de vomitar na cara da pessoa que abrira a porta, o homem que lutara conosco e era capaz de se tornar lobo. Ele aproximou-se de mim e imediatamente recuei, ainda sentada, retornando o máximo possível em direção a parede atrás de mim.

– Ora – ele disse e sorriu, como se nada daquela luta houvesse acontecido e fôssemos grandes amigos. – Veja só quem acordou.

Ele parou em minha frente e agachou, ficando à minha altura. Apenas não recuei mais porque não era possível. Minhas costas já se apoiavam contra a parede.

O rosto do homem, percebi, em vários pontos estava melado com uma pasta branca. Parecia pomada. Provavelmente era para os cortes que meu Sectumsempra abrira. O fato de eu tê-lo ferido, por um momento, fez com que eu ficasse feliz.

Ele notou que eu olhava para a pomada em seu rosto. Apontou as feridas com o dedo.

– Viu o que você e seus amiguinhos fizeram? Vou ser sincero, não esperava isso. Vocês me surpreenderam. Acho que estive errado em subestimar seu grupinho.

O careca falou em tom jovial, como se quisesse transparecer que aquilo tudo fora um bom encontro entre amigos, mas seus olhos azuis faiscavam ao encontrar os meus e sua voz profunda fez-me estremecer involuntariamente. Sorriu.

– Você é um bruxo – disse eu. Minha voz saiu rouca e estrangulada.

– Você faz boas observações – levantou as sobrancelhas sarcasticamente. Teria cuspido naquele rosto cheio de pomada se tivesse forças.

– Animago ou metamorfomago?

O homem sorriu novamente, de um jeito tão falso que me deu repulsa.

– Por que isso seria da sua conta, moça?

– Porque eu quero saber. Eu tenho o direito de saber.

– Direito? – o homem soltou uma risada estridente. – Senhorita Granger, você é muito engraçada. Eu até aprecio pessoas engraçadas – não parecia –, mas não é esse o caso aqui. Você é nossa... hóspede, digamos assim. Mas não significa que há em sua posse privilégios de hóspedes. Isso aqui não é um hotel, no fim das contas.

– Você quer dizer que eu sou uma prisioneira, basicamente – resumi os fatos.

– Prisioneira! – exclamou, como se nunca houvesse ouvido aquela palavra antes. – Sim, é essa a palavra, embora eu acredite que às vezes seja um tanto forte. De qualquer forma, aprecio sua inteligência e riqueza de vocabulário.

Voltou a soltar um sorrisinho falso e beliscou minha bochecha com os dedos. Dei um tapa em sua mão, fazendo com que o sorriso esvaisse e seus lábios formassem uma linha fina.

– Vejo que não gosta muito que eu tente ser seu amigo, senhorita Granger.

– Provavelmente pelo fato de você ter tentado me matar, sabe como é – respondi com sarcasmo. Minha respiração voltara a ficar ofegante e meu peito doía ainda mais. Senti a ardência localizada acima de meus seios, onde dois filetes de sangue escorriam, provindos dos ferimentos deixados pelas garras do lobo.

– Ah, mas aquilo foi só uma brincadeirinha de criança. Não esperava que a senhorita levasse aquilo tão pessoalmente – seu olhar desceu para minhas feridas. – Lamento muito também por tê-la machucado.

– Você não parecia ter remorso quando era um lobo gigante – comentei. Eu permanecia a encarar aqueles olhos azuis gélidos, não ousando quebrar o contato visual, por mais que por dentro eu honestamente estivesse apavorada.

O homem abanou o ar com os dedos.

– Detalhes.

Ele foi o primeiro a quebrar o contato visual, ao descer os olhos por meu corpo e parando ao fitar meu braço esquerdo. Pegou meu antebraço – seus dedos longos correspondiam sua aura tranquila, seu toque era gelado mas suave. Tentei controlar a tremedeira que percorreu meu corpo – e passou a mão continuamente pelos pequenos cortes e pela grande cicatriz.

Sangue-ruim – falou, observando-a. Acariciou a pele daquela região e pegou minha mão. Desvencilhei-me dela, flexionando os nós dos dedos e tremendo, porém logo ele voltou a segurá-la, com força. Ele havia reparado no quão assustada eu realmente estava, e sorriu. – Eu ouvi tantas, mas tantas histórias sobre como Hermione Granger ajudou a salvar o mundo bruxo. Ouvi as histórias desta cicatriz aqui também.

Meu tórax subia e descia pesadamente. Não queria me lembrar do que ele falava.

– Foi Lestrange que fez isso, não? – era óbvio que sim, mas balancei a cabeça em negativo, não querendo ouvir o que ele falava, não querendo me recordar dos pesadelos que tinha com aquela mulher, ofegando, segurando as lágrimas que involuntariamente queriam descer, tentando ignorar a dor incessante dos machucados. Ele sabia que aquilo me provocava e o deixava contente. – Não sei se você sabe, senhorita, mas há inúmeras histórias e contos e fofocas sobre você no mundo bruxo. Você é uma heroína, mas a fama aos custos da guerra sempre tem um preço, não é?

Seu aperto estava cada vez mais forte, enquanto eu tentava me desvencilhar; os nós de seus dedos estavam esbranquiçados e meus pulsos doíam. Tentei fugir de seu toque, cravando as unhas em sua pele, arranhando-o, em vão. Eu não sabia mais reconhecer o suor das lágrimas. Os ruídos abafados do andar de baixo pareciam aumentar e encher minha mente como pancadas cada vez mais altas, por mais que eu soubesse que aquilo era apenas coisa de minha cabeça. Já havia passado por muitas situações parecidas nos últimos meses, onde parecia que o mundo se fechava cada vez mais acima de mim, querendo trancar-me em desespero.

A última vez que eu sentira isso, o relapso dos traumas, fora alguns dias antes de retornar à Hogwarts. Agora elas pareciam mais altas do que nunca e a sensação de claustrofobia parecia querer me afogar.

– Pare com isso – falei, grunhindo, minha voz soando pastosa. – Pare com isso pare com isso pare com isso

Ele não parou.

– Uma parte de sua alma vai embora, uma parte que você nunca quis que fosse, e não há mais como retornar. Não é, senhorita Granger?

– Pare…

Tudo girava.

– Aposto que você devia ter muitos pesadelos, mesmo depois de ter vencido. Não faz nem meio ano que a guerra acabou fisicamente, não é?

Eu não conseguia mais falar, ainda tentando fugir debilmente do aperto cada vez mais forte dele em meu pulso. Balancei a cabeça, os soluços subindo como convulsões, a vista turva.

– Mas na sua mente, às vezes, no meio da madrugada, a guerra ainda não acabou. Não é, senhorita Granger? Tsc, tsc. Como é que aquele idiota do Quíron deixou que uma garota tão quebrada saísse em uma missão tão precocemente? Ou ele não sabia de nada, o que até pode ser verdade, ou você sabe mesmo esconder muito bem as feridas, senhorita Granger.

– No fim – falei, encontrando um resquício de minha voz –, você... você acaba por se acostumar. No fim – minha respiração aos poucos começou a se acalmar, bem como os soluços –, os sonhos se tornam rotina e a única coisa a se fazer é acostumar.

O toque dele afrouxou.

– E a senhorita já se acostumou?

Não respondi.

– Era o que eu esperava.

Beliscou minha bochecha novamente, levantou-se e saiu, fechando a porta atrás de si.

Não demorou para que a exaustão – tanto física quanto mental – tirasse minha consciência outra vez.


Na segunda vez em que acordei, meus músculos pareciam estar ainda mais rígidos e cansados.

Foi mais fácil para eu recuperar todos os sentidos, porém.

Meus olhos ardiam e pesaram mais devido às lágrimas. Enxuguei a face freneticamente, voltando a sentar-me apoiada na parede. O enjoo já melhorara bastante, mas meu corpo tremia. Eu sabia que não era por frio.

Eu estava sozinha novamente. Permanecia a ouvir ruídos vindos do andar de baixo, vozes masculinas e risonhas, como se estivessem dando uma festa ou simplesmente fazendo uma reunião muito alta. Passos e o arrastar de cadeiras, algo de vidro se partindo.

Já que estava muito exausta e dolorida para tentar fugir, apoiei a cabeça na parede e passei a examinar o quarto, procurando saídas e traçando possíveis rotas de fuga, por mais que a porta permanecesse fechada e eu não soubesse do local mais do que simplesmente o corredor com a escada à direita.

A porta do cômodo em que eu estava era a única saída. Eu provavelmente estava no último andar, então talvez também seria possível fugir se eu explodisse o telhado – as ripas de madeira facilmente cederiam. Mas isso atrairia muita atenção, ainda mais considerando que aparentava haver várias pessoas no andar inferior, e fugir pelo telhado em minhas condições estava mais para um ato suicida.

Perguntei-me onde todos meus amigos estariam, se por acaso estariam procurando por mim. Eu gostava de prender-me em esperança e pensar que eles me encontrariam e resgatariam. Todos tinham a bravura o suficiente. Mas não adiantaria ficar aqui apenas esperando como a dama em perigo, precisava ajudar não só a eles – por mais longe que estivessem –, mas a mim mesma em meu próprio salvamento.

Não queria imaginar o que o careca seria capaz de fazer para torturar-me ainda mais.

E eu não conseguia imaginar uma forma plausível de escapar daquele local. Primeiramente eu necessitava soltar os tornozelos das correntes que agora arranhavam minha pele.

Minha cabeça ainda doía, porém se tornara algo mais suportável.

Tateei os bolsos e percebi que tanto a varinha quanto a faca de bronze celestial não estavam mais lá.

Que surpresa.

Mas, ao olhar novamente pelo quarto, percebi minhas duas armas colocadas no chão. Elas se localizavam do outro lado do cômodo, em um canto onde eu definitivamente não conseguiria alcançar; não com as correntes. Porém estavam lá, expostas, ainda suficientemente perto para que eu pudesse ver e ter de reprimir a aflição ao perceber que não conseguiria pegá-las.

Levei isso como uma provocação do homem careca. Ele provavelmente estaria rindo consigo mesmo por ser tão patético.

Meus devaneios foram interrompidos pelo som de passos vindos do corredor. Pelo ruído eram os pés de duas pessoas diferentes, subindo as escadas e andando em direção à porta fechada. Um dos passos era suave mas definido no chão cimentado, o outro soava como saltos batendo contra o piso.

Não percebi imediatamente como o barulho dos saltos estava em sincronia com minha pulsação frenética.

O som se cessou logo antes daqueles pés alcançarem a porta. Pude ouvir uma voz feminina:

– Pare de ficar forçando a garota aos limites, William. Você sabe que eles precisam dela viva por enquanto – senti os pelos de minha nuca arrepiarem com o “por enquanto” –, e essas suas brincadeirinhas não estão ajudando.

– Eu só estava tendo uma conversa amigável com ela, Ann – a voz masculina que retrucou era a do careca. – Quis colocar o papo em dia, você sabe. Especialmente após o lindo encontro que tivemos no cemitério.

Pelos deuses, pensei de modo involuntário. O nome dele é William. Que estranho. Eu estava esperando que ele possuísse um nome não tão comum, que talvez utilizasse algum tipo de título, como Lord Voldemort possuía.

– Não me chame de Ann – a mulher disse rispidamente. – E essa conversinha com ela, por mais divertida que você tenha achado, não ajuda em nada. Só vai fazê-la piorar, e você sabe que não queremos isso. Não podêmos deixá-la à beira da morte.

– Se fosse por minha própria escolha, eu já teria torturado e matado aquela desgraçada da forma mais lenta e dolorosa possível – não havia mais nenhum tom suave em sua voz, e fiquei surpresa ao ver a raiva borbulhar em meu sangue junto ao medo.

– Mas não é sua escolha própria, Wilson.

– Tanto faz, Lee – ouvi a ênfase que ele colocou na última palavra. – E, a propósito, desde que trouxe a bruxinha desgraçada aqui, você tem parecido muito na defensiva dela.

– Eu apenas faço meu trabalho, o de me assegurar que você não faça merda, o que é algo que você sempre insiste em fazer. Eu apenas sigo as ordens e cumpro o que é me dito.

Sendo bem sincera, por mais que eu soubesse que a tal Ann Lee não gostasse de mim também e só me mantesse viva por ordens de seus superiores – perguntei-me quem poderia ser –, eu até que me simpatizara com ela por não gostar do careca (William Wilson, tive de repetir; ainda era estranho ouvir o quão comum aquele nome era para uma pessoa tão peculiar).

A porta do cômodo se abriu finalmente e os dois entraram.

William ainda tinha o rosto cheio de pomada, agora contraído em uma expressão de desgosto, provavelmente devido ao que Ann dissera. Ela, por sua vez, carregava em suas mãos uma bandeja com um prato e um copo com água. Pôs a bandeja no chão e deu um leve chute em minha direção, fazendo-a deslizar até mim.

– Sua comida – disse simplesmente. Lançou-me um olhar de desprezo.

No prato havia apenas um pão recheado com margarina. Eu não estava com fome. Fitei a bandeja com um olhar que aparentemente recusava a comida, pelo modo que ela me encarou segundos depois.

– Coma. Nas duas vezes que desmaiou ficou inconsciente por várias horas, então coma se não quiser continuar o trapo que está.

Nossa, obrigada, pensei em retrucar porém acabei por ficar quieta. Eu não queria comer não por estar de estômago cheio e saciada – o que eu não estava –, mas porque tinha a impressão que meu organismo debilitado não aguentaria.

Coma – Ann Lee repetiu. – Vai fazer bem.

Por um instante pensei ter ouvido um tom de simpatia em sua voz ao dizer a última frase. Lentamente peguei o pão e cortei um pedaço com os dedos, levando-o à boca. A princípio, ao tentar engolir, senti o enjoo retornar e meu sistema digestório protestar, mas após outros dois pedaços meu estômago acalmou. Começou a pedir por mais, e eu o atendi, engolindo outros pequenos pedaços. A água do copo acabou em um instante; eu não havia reparado o quão sedenta estava, e aquilo tudo pareceu deixar-me melhor.

Observei Ann Lee, cujos olhos ainda estavam postos sobre mim. Ela era alta e aparentava ter uns trinta e poucos anos. Suas feições asiáticas emanavam autoridade e suavidade assim como William o Careca possuía quando queria. Por mais que ela ainda me encarasse com rigor, seus olhos escuros pareciam exibir um traço de pena.

William aproximou-se de mim, novamente agachando-se à minha frente. Deu outro daqueles sorrisos falsos, fazendo-me ter outra vontade de cuspir em seus olhos azuis.

Eu não tinha o costume de querer cuspir no rosto dos outros com frequência, mas aquele homem trazia à tona tal sentimento com muita frequência.

Voltou a beliscar minha bochecha com os dedos longos. Desta vez não o impedi de continuar.

– Olhe só o problema que você tem me causado, senhorita Granger. Além de ter sido a culpada por me fazer ter de usar essa pomadinha no rosto, o modo a qual eu estava a tratando aparentemente não agradou meu chefe. Como a vida é engraçada, não é?

– Eu ouvi – respondi, referindo-me à conversa atrás da porta.

– Quer dizer que além de espertinha, você também é bisbilhoteira, hã? Agora Annabel aqui ao meu lado – deu ênfase no nome da mulher, já que ela não gostava do apelido –, não para de pegar no meu pé. Por sua culpa, mocinha!

Então eu fiz o que há muito queria fazer com o rosto de William o Careca. Cuspi o último pedaço do pão mastigado que estava em minha boca em sua face.

O pão já dissolvido pela minha saliva – foi um pouco nojento, tinha de afirmar, mas fazer tal coisa me trouxe uma certa satisfação – grudou na pele melada de pomada de William Wilson. Levou poucos segundos para ele perceber o que acontecera, antes que suas feições contorcessem em fúria. Até Annabel ficou boquiaberta por um breve momento.

Ele arrancou meu cuspe com as pontas dos dedos e só fui capaz de sentir uma força empurrando minha cabeça para o lado, sua mão atingindo minha face. Minha bochecha começou a arder no local em que eu recebera o tapa, entretanto não reclamei ou mostrei sinais de dor. Não quis dar tal satisfação a ele.

– Pare com isso, William! – a voz de Annabel impediu-o de fazer algo pior comigo. Ele pareceu contrariado, mas não ousou tocar-me outra vez. O careca ainda devia ser de uma posição inferior a dela. – Céus, você não aguenta nem as provocações de uma menina.

Por mais que Annabel não parecesse gostar de William, ela obviamente devia gostar bem menos de mim, por isso me surpreendi com o que disse. Esperava que ela me desse pelo menos alguns safanões pela ousadia de ter cuspido o pão, não que de certa forma me defendesse.

O homem ainda me encarava, a expressão lívida, as narinas infladas de raiva.

– Você me espere, moça. Apenas aguarde para ver o que sou capaz de fazer.

Eu sabia que ele falava sério, mas não deixei que visse a tremedeira que voltou às minhas mãos. William o Careca podia estar subordinado a alguém que não quisesse me matar – por enquanto – mas a partir do momento em que fosse permitido, ele com certeza me mataria da forma mais lenta e dolorosa possível. Tentei ignorar a bile que subiu à garganta e não deixei que o medo se refletisse em minha expressão.

– Deixe de ficar se rebaixando a esse nível, Wilson – manifestou-se Annabel. – Você sabe que se continuar agindo como uma criança, terei de chamar Dupin ou Marie para ficar em seu lugar.

– Que chame eles, então! – William se levantou. – Só Merlin sabe como eu não aguento mais olhar para a cara dessa putinha. Só por ter derrotado Voldemort, acredita que é dona do mundo.

Resisti à vontade de me levantar e chutar as bolas daquele homem. Só não fiz isso porque sabia que eu teria poucas chances, considerando o quão fraca eu estava e que ele empunhava a varinha.

Tive sorte de não mais precisar ficar olhando para o rosto de William Wilson, porque logo ele saiu irritado do cômodo, batendo o pé e fechando a porta atrás de si com um estrondo. Nem de longe parecia aquele homem que eu vira primeiramente no cemitério; o semblante calmo e elegante há muito se esvaira. Eu duvidava que ele voltasse a agir daquele primeiro modo comigo.

Nos momentos após ele ter se retirado, um silêncio absoluto se seguiu, ao estar sozinha no quarto com a mulher que se denominava Annabel Lee (qual era o propósito desses nomes?, pensei. Sabia que não seria coincidência se os nomes de todos os subordinados do chefe desconhecido que queria-me viva seguisse o padrão de William Wilson e Annabel Lee, ainda mais nas circunstâncias que minha missão seguia antes de eu ser capturada. Mas por quê? Não consegui de imediato relacionar tudo, minha cabeça doía demais).

Ela me encarava, mas seu olhar voltou a demonstrar aquele ligeiro traço de pena, como se não desejasse que eu estivesse sendo forçada a ficar presa.

– Três vezes por dia eu virei aqui para trazer-lhe comida – disse ela, em um tom de voz mais alto. – Entendeu?

Por mais que estivéssemos sozinhas, Annabel Lee olhou para os lados, assegurando-se que não haveria ninguém por perto. Foi ao outro lado do cômodo, onde estavam minha varinha e a faca de bronze que Annabeth me dera, e pegou-as.

Carregou-as pelo cômodo e voltou a deixá-las no chão, mas agora em um local de meu alcance. Levou o dedo indicador aos lábios, como se quisesse manter segredo.



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Notas finais do capítulo

Dou biscoitos para quem percebeu algumas das referências literárias que tenho feito nos últimos capítulos. Pode se tornar algo importante para a história. Talvez chegue a dar uma dica bem vaga do que pode vir a acontecer...