Segredos Submersos escrita por lovegood


Capítulo 23
O encontro marcado


Notas iniciais do capítulo

Eu ia postar este capítulo só daqui alguns dias, mas aparentemente hoje (19/01) é aniversário de 205 anos de Edgar Allan Poe, então, considerando o conteúdo de grande parte deste capítulo, não resisti.
(Decepcionada pelo fato do Google não ter feito um doodle para a data de hoje)



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“Quoth the Raven, ‘Nevermore’”¹

Pegamos rapidamente um ônibus e dirigimos-nos à casa de Edgar Allan Poe. A antiga casa, que agora servia como museu em homenagem às obras e vida do autor, felizmente estava aberta ao público para visita no horário em que chegamos.

Era uma grande casa de tijolos vermelhos, onde os visitantes poderiam fazer um tour pela antiga morada do escritor.

– Hermione – disse Ron, enquanto entrávamos –, nem você ou Harry me responderam direito quem é esse cara.

– Uma das maiores figuras intelectuais do século XIX – respondi, levemente impaciente. Entendia sua falta de conhecimento em relação àquilo que não era mágico, mas ainda assim fiquei um pouco contrariada pelo fato de meu próprio ex não saber sobre uma figura cujas obras eu gostava tanto – crítico literário, editor, poeta, considerado pai da literatura policial...

– Hermione – Ron me interrompeu, colocando uma mão na frente de meu rosto, como sempre fazia quando eu começava a “fazer um discurso” (só se fosse para ele e Harry mesmo; eu apenas dizia as informações necessárias!) –, deu para entender. Acho que só um “escritor trouxa” para mim já seria o suficiente.

Revirei os olhos, mas depois permiti-me a rir. Assim que entramos, um projetor passou um vídeo informativo sobre a vida de Poe, que particularmente achei fascinante. Com exceção de Annabeth, os outros não pareciam muito interessados.

Logo começamos a fazer o tour. Felizmente havia bem poucas pessoas além de nós lá no local, chegáramos em um horário tranquilo. Estávamos no porão da casa, vagamente parecido com o porão descrito no conto “O Gato Preto” – eu só esperava que não houvesse um cadáver escondido atrás dos tijolos da parede – quando Percy veio ao meu lado e perguntou:

– O que exatamente estamos procurando aqui? – seu tom de voz era baixo e por um momento reparei em como ele estava próximo de mim.

Dei de ombros. Era uma boa pergunta.

– Não sei – eu disse, no mesmo tom. Não queria que os poucos trouxas ali presentes conosco ouvissem a conversa. O resto do grupo observava algumas das peças em exposição, do outro lado do porão.

Percy ergueu uma sobrancelha, olhando para mim um tanto cético. Seus olhos claros transbordavam algo que parecia estar entre dúvida e receio. Levantei minhas sobrancelhas em resposta, lançando-lhe o mesmo olhar.

– Qualquer coisa fora do comum – continuei – qualquer coisa ligada à mitologia, qualquer coisa que pareça... errada, ou algo assim. Sei que não é o melhor ponto de referência, mas é o que temos. Não... não me olhe assim – falei quando vi que o olhar de Percy permanecia o mesmo. Minha voz diminuíra a um sussurro, e virei as costas para ele, fitando distraidamente os sapatos de um trouxa de meia idade careca.

– Encontraram algo? – perguntou Thalia, agora aproximando-se de nós com todos os outros. Balançamos a cabeça em negativo, fazendo-a suspirar. – Deuses! Como vamos achar o que queremos se nem sabemos o que queremos?

– Estávamos discutindo isso agora mesmo – comentou Percy. Lancei a ele um olhar meio irritado.

– Nada de estranho? Nada que tenha a ver com mitologia? – questionei ao restante da equipe, pendurando-me em esperança, a última coisa que restava. Meus ombros caíram ao vê-los negarem. Esfreguei os olhos, grunhindo. – Isso está pior do que a gente pensava.

Um silêncio pesado caiu no ar. O ambiente do porão de repente me pareceu incrivelmente fechado e claustrofóbico. Já estávamos quase no fim do tour.

– Não... não podemos desistir agora, vamos – a voz de Nico soou arrastada, sem transbordar muita confiança. Era como se, para ele, fosse estranho ser o encorajador nesse tipo de situação – ainda temos todos os pontos da cidade relacionados a Benjamin Franklin, lembram?

Limitamos a assentir, ainda sem comentar nada.

– Benjamin Franklin! – Annabeth de repente exclamou, com um entusiasmo de alguém que parecia nunca ter dito esse nome antes. Eu, Harry, Ron, Nico, Thalia e Percy encaramos-na como se ela fosse maluca. – Benjamin Franklin...

Annabeth aparentemente não ouviu nossas perguntas em relação a sua sanidade, estava ocupada demais afagando o próprio rosto e andando em pequenos círculos, imersa em pensamentos.

– Annie, você está bem? – perguntou Thalia, preocupada.

– Hermione – Annabeth agora se dirigia a mim, o cinza de seus olhos brilhava de excitação. Era como se ela houvesse acabado de ter um “momento Eureka” – Hermione, tenho de dizer isso a você porque tenho quase certeza que é a única nesse grupo que já leu Edgar Allan Poe.

– Ok... – murmurei, sem saber como reagir. Olhei de relance para o grupo, e pelo modo que todos se entreolharam, pude assumir que Annabeth falava a verdade.

– Hermione, por acaso eu já falei a você de qual deus Benjamin Franklin é filho?

– Não... só fiquei sabendo que Franklin era semideus por você, Annabeth, e isso foi menos de uma hora atrás!

– Assim como George Washington, Hermione, Franklin foi meu meio-irmão – Annabeth disse lentamente, como se tentasse fazer com que eu captasse alguma informação subentendida – Benjamin Franklin era filho de Atena. Pallas Atena.

As duas últimas palavras foram ditas com uma incrível ênfase. A princípio permaneci confusa; o que isso tinha a ver? No outro instante, porém, a realização tomou conta de mim. Minhas sobrancelhas franzidas aos poucos deixou espaço para que meus olhos se arregalassem e eu ficasse boquiaberta.

Annabeth sorriu ao ver minha mudança de expressões. Os outros ainda estavam com aparência de não entenderem nada o que acontecia.

– Pallas Atena – as palavras soaram em minha boca como nunca havia pronunciado antes. Consegui sentir o gosto da realização e uma pontada de glória na ponta da língua. Se houvesse mais tempo, poderia ter sentido o êxtase da informação enterrada, do conhecimento lembrado percorrer meu corpo. Dei um tapa involuntário em minha própria testa – O Corvo!

– Isso! – ela comemorou, e eu ri, e nós nos aproximamos e demos uma a outra um digno high-five, a ponto da palma da minha mão arder.

Não me importei.

Olhamos para nossos amigos. Eles ainda nos observavam como se fôssemos loucas. A expressão de todos era tão igual que chegava até a ser cômico. Queria ter trazido uma câmera fotográfica apenas para tirar uma foto de como eles estavam, parados como estátuas nas mesmas posições.

E talvez minhas tentativas em ser discreta quando falava com Percy não houvesse de fato funcionado. Aparentemente chamamos um pouco de atenção dos trouxas, mas também não me importei. O careca cujos sapatos eu olhara agora nos fitava de um modo engraçado.

Ainda não foi o suficiente para me importar.

Respirei fundo, o êxtase já se acalmando. Eu e Annabeth nos entreolhamos e logo saímos apressadas para subir as íngremes escadas que levavam novamente ao térreo.

– Mas onde está? – perguntou ela. Os cinco resolveram nos seguir, após um breve momento.

– Não sei! – respondi, subindo as escadas com passos apressados. – Talvez tenhamos passado e nem percebido!

– Quem sabe em algum dos quartos?

Dei de ombros.

– Talvez. Provavelmente no umbral de alguma porta!

Subimos e começamos a procurar nas portas de todos os cômodos que achávamos, com as vozes confusas de Percy, Thalia, Harry, Nico e Ron nos seguindo, fazendo perguntas. Eu e Annabeth nos separamos em um dos corredores, cada uma checando próximo às portas dos quartos.

– Hermione! Aqui! – ouvi Annie me chamar do outro lado do corredor. Apressei-me, e, em passos largos, entrei no quarto.

E lá estava. Parado ao umbral da porta.

Ajoelhei-me para ficar à altura, ao lado de Annabeth.

– Achei que seria maior – comentei, minha respiração ofegante – Sempre que eu li achava que era maior – Annabeth levantou as sobrancelhas, talvez concordando. Dei uma breve olhada ao redor do objeto.

– Tá, é isso? – perguntou ela, agora parecendo desapontada. Bufou. – Estava esperando que houvesse, não sei, algum tipo de pista ou informação para nós.

Cocei a têmpora; também esperava que houvesse algo a mais a nossa espera.

– Ei, elas estão aqui! – ouvi repentinamente Harry atrás de nós. Logo ouvimos mais passos avançando para onde estávamos, e em poucos instantes todos os cinco estavam ali conosco. – Se vocês gênias não se importam, poderiam agora fazer o favor de explicar o que está acontecendo?

– Tudo isso por causa de uma estátua com um corvo empalhado em cima? – o tom de voz de Ron soou incrédulo. Lancei a ele um de meus típicos olhares de repreensão, o qual ele tanto se acostumara a ver nos últimos sete anos.

– Não é apenas uma estátua com um corvo empalhado em cima, Ronald – expliquei – é o busto de Atena, descrito por Poe no poema “O Corvo”.

Logo todos se ajoelharam conosco ao redor do busto.

– Tudo bem, e agora? – perguntou Thalia. Annabeth crispou os lábios.

– Nós esperávamos encontrar algum tipo de pista no busto – respondeu esta – mas não parece haver nada.

Houve um momentâneo silêncio novamente. Por um instante pensei em o que os trouxas deveriam estar pensando de nós; sete arruaceiros que resolviam sair correndo por um museu.

Meu olhar pousou na última estrofe do poema, escrito em letras pequenas em uma placa de metal logo abaixo do busto.

“And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;

And his eyes have all seeming of a demon’s that is dreaming,

And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor;

And my soul from out that shadow that lies floating on the floor

Shall be lifted – nevermore!”²

Talvez essa seja a pista – Nico novamente cortou o silêncio. Todos olhamos para ele – quer dizer, estamos na casa de um escritor que escreveu sobre uma estátua de Atena, e Benjamin Franklin foi filho de Atena.

– Não é uma coincidência que Lady Héstia tenha nos mandado para uma cidade com vários pontos turísticos de certa forma ligados à Atena, certo? – Harry completou. Assentimos.

– É provável que Atena seja quem devemos procurar – quem falou agora foi Thalia.

– Já encontramos Apolo, então é um a menos – a vez foi de Ron – e, considerando que temos uma filha de Atena aqui, não fica mais fácil de procurá-la?

– Infelizmente não funciona assim – disse Annabeth para Ron – antes às vezes funcionava, mas desde que o Olimpo começou a se desestabilizar por causa de Poseidon, tem ficado cada vez mais difícil de nós tentarmos nos comunicar com nossos pais divinos. A não ser que eles nos chamem por meio de sonhos ou algo parecido, quase não há outros métodos de estabelecer uma comunicação direta.

Ou seja, teríamos que ficar rastreando Atena a partir de locais como o museu de Poe, o que não era muita coisa. Levantamos e resolvemos ir atrás dos pontos turísticos relacionados a Benjamin Franklin logo, queríamos checar tudo ainda hoje.


Sem muito sucesso, passamos o resto do dia percorrendo a cidade em busca de qualquer ponto turístico relacionado – mesmo que remotamente – a Benjamin Franklin. O que era bastante coisa.

Não encontramos nada que pudesse ajudar quando fomos ao Salão da Independência ou quando procuramos por pistas ao redor do Sino da Liberdade, muito provavelmente parecendo idiotas ao ficar rodando e rodando em volta de um sino. Ambos pontos turísticos se localizavam nos lados opostos da mesma rua, no chamado Parque Histórico Nacional da Independência, porém não importasse quantas vezes andássemos de um lado para outro naquele local, a sorte não parecia estar a nosso favor.

Comecei a sentir novamente meus órgãos retorcerem com a inquietação. Minha cabeça já girava de tanto pensar, fosse em relação aos lugares interligados a Franklin que deveríamos ir ou se aquela seria de fato a pista “deixada” no museu de Poe. Não poderia ser tudo uma armadilha? Mesmo se não fosse, não poderíamos ter interpretado a pista de modo totalmente errado?

A resposta era sim, poderíamos.

(E foi exatamente o que aconteceu.)

Percebendo que não havia nada para nós no Parque Histórico da Independência, fizemos uma pausa para almoçar. Havia apenas dois outros lugares para visitarmos antes que nossas esperanças acabassem completamente em relação a nosso pequeno plano; uma praça chamada Girard Fountain onde se localizava um busto de Franklin, e por fim o cemitério onde ele estava sepultado.

– A gente não poderia ter ido em um restaurante cuja comida fosse mais substancial? – Thalia reclamou baixinho enquanto estávamos sentados em outra lanchonete barata. – Qual foi a última vez que fizemos uma refeição própria desde que saímos do Acampamento, que não fosse lanche?

Eu encarava o cachorro-quente a minha frente sem muita reação. Não estava com muito apetite, e brevemente concordei com Thalia.

– Thalia – disse Harry –, saímos do Acampamento ontem.

– É? – respondeu sem dar muita atenção, apoiando os cotovelos na mesa. – Parece que passou uma eternidade. De qualquer forma, já sinto falta da comida de lá.

– Eu sinto falta da comida de Hogwarts – disse Ron, ainda assim abocanhando seu hambúrguer com vontade. Soltamos uma risada baixa. De fato, parecia que havia se passado muito mais do que apenas um dia.

Logo pedi licença para ir ao banheiro. Assim que saí de lá fui ao balcão pegar um maço de guardanapos – de boca cheia e mal conseguindo pronunciar as palavras, Ron reclamara da falta deles em cada mesa – , aproveitando para pegar também garrafinhas de água, caso precisássemos. Um homem, careca e de óculos, esbarrou em mim sem querer.

– Desculpe-me, moça – murmurou ele.

– Não tem problema – respondi, sem prestar atenção e apenas dando um sorriso simpático.

Terminamos de comer rapidamente e logo saímos para ir até Girard Fountain.

Não havia qualquer coisa de especial lá.

A estátua de bronze do busto de Benjamin Franklin se localizava em cima de uma parede e aparentava ser extraordinariamente ordinária. A fonte no centro da praça era bonita mas sem nada fora do normal.

Em seguida fomos à Christ Church Burial Ground, cemitério onde estava a sepultura de Franklin e várias outras figuras relacionadas à Independência.

Era um local bem conservado e com aparência bonita. Ainda assim, quando passei pelo portão de entrada, senti como se o ar começasse a pesar mais. Era uma sensação estranha e relativamente inexplicável, como se o clima houvesse ficado mais pesado e o ar relutasse a descer por meus pulmões da forma como sempre descia.

Como se eu conseguisse sentir uma outra presença além de todos que estavam lá. Algo iria dar errado e, por um breve momento, tive a impressão de ser observada. Olhei aos lados e por cima do ombro; não havia nada.

– Conseguem sentir isso? – perguntei ao resto do grupo. – Vocês estão também com essa sensação estranha?

Grande parte do grupo franziu o cenho. Esse simples gesto disse não. De todos os meus amigos, porém, um empalidecera e seu rosto expressava sentir o que eu também sentia. Essa pessoa era Nico.

– Sim – disse ele. Então compreendi o porquê de Nico ser o único que também sentia; o ar que parecia nos comprimir por um breve instante trouxe-me uma áurea fúnebre, o cheiro de... morte? Era estranho classificar um odor como “morte”, mas era exatamente isso. Nico era filho de Hades, deus do submundo, então naturalmente poderia ser mais sensível em relação a tal coisa. E estávamos em um cemitério, no fim das contas.

Porém ainda havia algo de errado. Não era natural essa mudança de ares, mesmo em um cemitério.

Tentei respirar fundo, mas a atmosfera funesta agora era pesada demais em meus ombros para que eu pudesse ignorar. Era como se a qualquer momento algo estivesse prestes a sair da terra. Não necessariamente no sentido literal, mas eu era perfeitamente capaz de sentir a simples presença.

Algo entre a vida e a morte, entre o sólido e o incorpóreo, entre o presente e o inexistente. Que forçava tal sensação a aflorar e que agora nos observava à distância.

Minhas pernas tremeram e meus olhos se arregalaram ao captar um vulto familiar atrás de uma árvore. Um vulto que passara despercebido, um agente no escuro, que sempre estivera lá – desde quando estávamos na casa de Edgar Allan Poe – mas que de alguma forma estivera além de minhas próprias percepções.

Minha voz saiu estrangulada, como se houvessem anzóis arranhando e fisgando minha garganta:

– Acho que estamos sendo seguidos.



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Notas finais do capítulo

¹"Disse o corvo, 'Nunca mais'".
²"E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!"
(tradução de Fernando Pessoa)