Frozen escrita por jesskhn


Capítulo 4
Capítulo 03 - Detalhes desagradáveis


Notas iniciais do capítulo

Eii, estamos prestes a passar para a melhor parte da história!
Aguardem!



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Pude ver pétalas. Elas voavam em meio à escuridão sem razão ou direção. Ao piscar os olhos elas desapareceram. Vi apenas cinzas espalhando-se no nada.

“Talvez elas tenham desaparecido, ou talvez, tenham apenas se transformado”.

O que eu via eram cinzas, escuridão e uma criança chorando.

“Sozinha”.

***

- Kohana? – chamou uma voz distante.

Tentei abrir os olhos, mas algo mais forte que eu me impedia. Uma dor insuportável. Uma do invisível.

- Kohana, acorde – pediu a voz.

Uma linha de luz surgiu ao toque de uma mão carinhosa em meu ombro. A luz inicialmente queimou meus olhos, mas logo já não me causava nada. Nada fazia diferença. Não poderia melhorar ou piorar minha dor. Era sempre a mesma e nada mais.

- Bom dia querida – disse Hikari ao ver-me abrir os olhos – Trouxe alguns bolinhos, você precisa comer alguma coisa.

Sentando-me sem vontade peguei os bolinhos e coloquei alguns na boca, ainda em silêncio. Pareciam sem gosto apesar de macios e de bom aspecto. Ao ver que eu não reagiria, Hikari se levantou.

- Estarei lá embaixo se precisar de alguma coisa – disse caminhando até a porta. Senti que não estava sendo grata. Hikari me abrigara em sua casa e cuidara de mim todo esse tempo.

- Hikari? – chamei sentindo a voz rouca por falta de uso. Ela apenas se virou surpresa – Obrigada – disse esforçando-me para oferecer-lhe uma boa expressão. Ela sorriu e fechou a porta.

Dois dias se passaram desde que minha mãe não resistira a cirurgia. Parte de mim não existia mais. Senti-me traída pela vida, deixada sozinha no escuro apenas com a dor e a saudade. Apenas eu e a culpa corroendo-me por dentro. Se eu tivesse impedido aquele homem, eu tive a oportunidade, tive a escolha e a vida de minha mãe nas mãos, mas eu não pensei. Talvez não fosse minha mãe. Poderia ter sido a mãe de qualquer um. Poderia ter sido Hikari e, agora, Mizuki estaria assim, sentindo-se como me sinto com a exceção da culpa. Eu deveria ter pensado nisso.

Não fazia nada há dois dias além de chorar e dormir. Sentia-me um peso morto. Uma existência sem fundamento ou utilidade. As lágrimas escorriam como se aquela fosse sua obrigação. Meu rosto estava amortecido pelo costume.

- Kohana? – chamou uma voz da porta entreaberta – Como está se sentindo?

Apenas olhei para Mizuki parada na porta. Ela me observou atentamente. Baixei meus olhos para o prato de bolinhos ainda cheio e a ouvi caminhar em minha direção. Sentando-se ao meu lado ela me abraçou. Pousei a cabeça em seu ombro e continuei a chorar em silêncio, ficamos assim durante um tempo até ela me olhar de frente.

- Precisa se arrumar, o enterro será hoje. O corpo foi liberado há pouco tempo. Minha mãe cuidou de avisar os amigos mais próximos de vocês.

- Tudo bem – disse apenas, levantando-me.

- Vista isso – disse ela tirando do armário um vestido preto simples. O peguei e fui para o banheiro. Desci as escadas e encontrei Mizuki no sofá e Hikari no telefone.

- Quem era mãe? – ouvi Mizuki perguntar.

- O advogado que contratei, nós temos um...

- Para que advogado? – perguntei ao me aproximar.

- Kohana – disse ela surpresa – Como se sente?

- Na mesma, mas capaz de andar – disse quase em um sussurro. Minha voz parecia desaparecer aos poucos – Enfim, para que contratou um advogado?

- Para cuidar da papelada da sua guarda – disse ela – Não posso permitir que o governo a mande para um orfanato qualquer. Você ainda é menor de díade, eles podem fazer isso. Além do mais, você tem a nossa família que é praticamente a mesma.

- Por que precisa de um advogado para isso? Posso falar com o juiz ou uma assistente social, dizer que quero ficar com vocês.

- Não é tão simples. Preciso de um advogado para competição judicial.

- O que quer dizer? – perguntei confusa.

- Bem, seu pai tem preferência para ter sua guarda, sou apenas uma amiga da família.

- Para o bem dele – comecei sentindo minha voz sair torcida pela raiva em um ar parecido com um sussurro ameaçador – Para o bem dele é melhor que ele nem tente.

***

Chegamos ao cemitério rapidamente. Uma hora mais cedo para deixar tudo arrumado. A chuva não dava trégua, ficaria assim o dia todo. O céu estava cinza e opaco. Sem vida. Intenções de névoa esparramavam-se pelo cemitério, fracassadas, mas existentes. Aos poucos as pessoas foram chegando. Recebi seus pêsames e abraços apertados dos mais próximos. Tudo não me surtia efeito algum. Eu estava ali apenas com um corpo vazio parado no canto vidrada na imagem gélida e pacifica de minha mãe que parecia dormir tranquilamente. Quis balançar seu braço, ver se ela acordava. Sabia que não aconteceria. Quis evitar a frustração.

Assim que o corpo foi enterrado, minha rosa branca deslizou no ar até alcançar o caixão dourado já fundo, seguida por muitas outras. As pessoas desapareciam aos poucos até o momento em que restou frente ao túmulo lacrado eu, o nome de minha mãe em uma lápide fria e a chuva.

“Uma lápide dura e fria. Um cemitério sombrio e esculturas de pedra. Esse lugar não tem sua cara mãe”, pensei como se ela pudesse me ouvir. “Você sempre foi tão carinhosa, tinha um abraço tão quente e um coração tão bom. Uma beleza e delicadeza sem igual. Não deveria estar aqui”.

- Kohana? – Hikari apareceu ao meu lado abrigando-me em seu guarda-chuva – O cemitério está prestes a fechar.

- Só mais um pouco – sussurrei sem tirar os olhos da lápide.

Pensar em lhe dar as costas parecia um insulto. Minha vontade era de retirar toda aquela terra que a cobria e sacudi-la voltava repetidas vezes. Tudo era uma realidade que eu não queria aceitar. Qual seria minha razão de viver se a pessoa que me deu o dom da vida era agora, apenas uma memória? Segurei o medalhão com firmeza entre os nós dos dedos.

- Desculpe o atraso.

Aquela voz. Senti um tremor percorrer meu corpo. Minhas mãos se fecharam em punho e meus dentes trincaram. Ao virar e ver a imagem repugnante daquele homem fez com que meu sangue fervesse.

- O que ele faz aqui Hikari? – perguntei sussurrando minha raiva controlada até o momento.

- Kohana – chamou-me timidamente – ele é seu pai.

- Há muito tempo ele deixou de ser meu pai, não fez mais do que colaborar para que eu pudesse existir.

- Como você é mal educada – comentou ele – Eu tinha direito de vê-la, eu...

- A amava? A ama? É isso que você ia dizer? – o interrompi deixando que minha voz mal usada se elevasse ao tom que fosse necessário, sentindo minha voz ficar cada vez mais agressiva – Era papai? Era isso? Seu grande mentiroso! Não acha que é um pouco tarde para dizer isso? Volte para o seu fim de mundo e para sua vida amarga! Tenho certeza de que você se importava muito com ela. Mora a duas horas daqui e há quanto tempo está atrasado!

- Kohana, acho melhor irmos embora – disse Hikari encostando levemente em meu ombro e retirando-a assim que sentiu o tremor do meu acesso de raiva.

Não dei um passo se quer. A vontade que eu tinha era de avançar nele. Tive que controlar minha impulsividade para não abrir outro túmulo, apesar de me parecer uma idéia agradável.

- Kohana, por favor – tentou Hikari novamente.

Apertei meus olhos e tentei relaxar. Endireitando-me virei para Hikari e andei ao seu lado na direção da saída, após lançar um olhar ameaçador para Takara. Ao andarmos, Hikari respirou fundo como se não o fizesse há tempos.

- Eu sabia que o relacionamento de vocês dois não era nada bom, mas isso foi assustador – disse ela ao meu lado.

- Desculpe, perco o controle perto dele – disse ao chegarmos á saída.

Estávamos entrando no carro quando Takara surgiu novamente aproximando-se. Eles trocaram um aceno educado.

- Nos vemos amanhã – disse ele. Pude ver os olhos de Hikari fechando-se lentamente, desanimada.

- Do que ele está falando Hikari? – perguntei confusa – O que tem amanhã?

- A audiência com o juiz e a assistente social – respondeu ela – para discutirmos e decidirmos quem ficara com sua guarda.

- O que? – gritei voltando-me para Takara – Por que? Por que quer minha guarda?

- Você é minha filha, tenho a preferência para ter sua guarda.

- Mas não é obrigado a te-la!

- Vou continuar sua educação e corrigir o que sua mãe não fez. Somos uma família no fim das contas.

- Cale a boca! – gritei apontando-lhe o dedo indo sugestivamente para cima dele de forma agressiva – Como ousa falar mal de minha mãe sobre seu túmulo seu monstro! Ter seu maldito sangue correndo nas minhas veias não nos torna uma família. Esse sangue é a única relação que tenho com você e já acho demais!

- Tanto faz – disse ele indiferente – Até amanha – e então ele desapareceu entre as lápides e esculturas gélidas.

A única certeza quanto a ele que eu tinha é que eu o odiava na mesma proporção que amava minha mãe.

“Como ela pôde se apaixonar por alguém assim?”

- Vamos indo, precisamos descansar – disse Hikari ainda atordoada – Amanhã será um dia e tanto.

***

Afundei meu rosto no travesseiro rangendo os dentes de raiva até meus olhos inundarem enquanto eu pensava no que Takara dissera. Já não sabia mais se eram lágrimas de saudade ou raiva.

- Eu o odeio – resmunguei contra o travesseiro.

- Como pode odiar seu próprio pai? – ouvi a voz melancólica de Mizuki perguntar.

- Por tudo – respondi sentando-me – Sei que deve ser difícil para você entender. Você amava seu pai e certamente sentiu a mesma dor que sinto agora quando ele partiu, mas seu pai era diferente. Takara é um monstro.

- Kohana – disse ela virando-se para mim – você me disse várias vezes que não gostava do seu pai. Quando falou com ele no cemitério vi e ouvi tudo o que aconteceu. Foi assustador! Nunca deixei de acreditar em você, mas não fazia idéia de que você o odiava tanto assim. Então – ela tentou hesitando, mas continuou – por quê? O que houve entre vocês dois? Por que você nunca fala sobre isso?

- Por minha mãe – disse sentindo as lágrimas ao pensar nela – ele a envergonhou.

- Como assim? – perguntou confusa.

Ao pensar em como explicaria o que houve, lembranças voltavam atordoando minha mente com os anos passados. Um tempo nebuloso do qual eu não fazia questão de lembrar. A tempestade cortando o silêncio me fez voltar àquela noite.

***

- Mana? – chamou minha pequena irmã, batendo levemente contra a porta. Levantei-me e fui até ela, observando a pequena de cabelos negros na altura dos ombros que carregava um pequeno urso amarelo no peito.

- O que foi Mai, não consegue dormir?

- Eles estão discutindo de novo – disse a pequena com os olhos inundados.

Caminhamos até a porta ao fim do corredor na antiga casa. Parando a sua frente nos sentamos ao chão com os ouvidos atentos.

“Está mentindo para mim!” – gritou minha mãe. Nunca a vira com raiva como naqueles dias.

“Você está louca! Está se preocupando com coisas triviais!”

“Então porque não me conta onde passou aquelas noites? Você disse que estava no trabalho, mas para o seu azar, eles ligaram de lá perguntando por que você não dava as caras a mais de uma semana!”

Durante um tempo eles ficaram em silêncio. Meu pai nada respondeu. Só havia uma forma de acabar com aquilo e seria com a verdade que nunca apareceu.

“Takara?”, chamou minha mãe quebrando o silêncio, sua voz já modificada por tanto chorar. “Você tem outra mulher?”, perguntou hesitando.

- Mai – disse virando-me para ela – Vá para o quarto, por favor – disse tentando ser o mais carinhosa possível para ela não insistir. Ela se levantou sem dizer nada e foi deixando apenas um olhar tristonho para trás.

“Não confia em mim?”, perguntou meu pai secamente.

“Não estou conseguindo mais”, confessou ela com pesar.

“Então”, tentou começar ele, mas por algum motivo ele parou e depois continuou. “Não vejo mais razão para fingir que está tudo bem”.

“Está falando em divórcio?”

“Sim”, disse ele com a voz pouco falha, mas firme.

“Pelo menos me dê a dignidade de saber o que aconteceu”, pediu ela.

Mais um longo tempo de silêncio. Meu pai parecia pensar seriamente no que ou como diria.

“Aori, não te amo mais como antes”, disse ele com a voz ríspida.

“Eu sabia que você tinha outra!”, gritou ela e, correndo abriu a porta. Eles pararam olhando-me enquanto eu me levantava. Riscos de lágrimas escorrendo por meu rosto. Um olhar de fúria para o homem que, naquela noite, deixava de ser meu pai.

- Eu te odeio – disse a ele com força na voz, sentindo pela primeira vez o gosto de uma lágrima da raiva.


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