Scars escrita por jesskhn


Capítulo 1
Capítulo 1 - Uma última brincadeira (Infância)


Notas iniciais do capítulo

Início da série de cinco capítulos da primeira parte do história.
Livro 01 - Infância.



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Capítulo 01 - Uma última brincadeira

Estava frio. Mesmo enrolada em tantas cobertas ainda podia ouvir o tinir de meus dentes batendo violentamente um contra o outro, meus pés enrolando-se na ponta da coberta, minhas mãos segurando as extremidades enquanto eu me encolhia como uma pequena formiguinha, como minha mãe costumava dizer. Mesmo lutando contra as frestas, por onde entrava o inverno disfarçado de amigo, elas de alguma forma resistiam e, mesmo tentando bloqueá-las, ainda surgiam sorrateiras. Não conseguia dormir. O sono não aparecia ou se rendia. Meu corpo não parava de tremer. Meus olhos não conseguiam descansar. Tentei me enrolar mais ainda, mas as cobertas agora pareciam cada vez menores, insuficientes. Fechei os olhos. Tentei dormir. Não consegui.

Passos ligeiros e silenciosos percorreram o andar de baixo até as escadas, deslizando sobre o corredor. Alguém se aproximava. Talvez viessem buscar mais cobertas ou...

“Deve ser o vizinho, ele sempre quer café”.

Sempre que alguém bate à porta mamãe parece parar de respirar, lança um ligeiro olhar para papai, que desce imediatamente para atender o chamado, enquanto ela me abraça e olha para fora da janela. Geralmente ela esperava comigo. Hoje ela não esperou. E mesmo depois de tantas vezes que parecia ser o vizinho, eu nunca o vi. Se quer lhe dei “bom dia”, ou apenas um “oi”. Olhei para o lado da cama. Ao lado da velha cadeira de balanço que ainda movia-se devido aos atritos recentes, uma xícara de café preenchia o ambiente com seu aroma, coberto por uma camada opaca de fumaça que se esforçava em aparecer.

Talvez não fosse o vizinho novamente. Mamãe poderia estar voltando para buscar sua xícara de café, sentar-se na cadeira de balanço e continuar lendo um livro. Talvez fosse papai que estivesse com frio e veio buscar as cobertas. Ou talvez fosse o vizinho seguindo o cheiro de café fresco. Recostei a cabeça e fechei os olhos. Queria dormir. Minha cabeça incomodava com marteladas. Papai disse que iria sarar quando eu dormisse.

Os passos pararam. Abri novamente os olhos e apenas escutei. Parou. Continuou. Correu. Passos ligeiros, não mais silenciosos. A porta se abriu como se a empurrassem com força e eu levantei. Mamãe me olhava, o fez por muito tempo. Eu teria feito algo? Sua expressão não era muito feliz, parecia cansada ou aborrecida. Talvez ela viesse buscar o café. Mamãe começou a andar. Observando cada passo lento que ela dava, quis dizer que a culpa não era minha. Eu havia guardado os brinquedos e colocara a roupa dentro do cesto ao invés de largá-las no chão. Quis me justificar, talvez se ela visse que eu era uma boa menina ficasse mais feliz. Ela parou ao meu lado.

Seus lábios sorriram.

Seus olhos permaneceram frios.

- Não conseguiu dormir querida? – um leve tom fora de sua voz.

Balancei a cabeça negativamente. Por algum motivo não quis falar, meu silêncio talvez fosse bom às vezes. Eu era uma criança escandalosa, papai dizia que era porque eu tinha excesso de felicidade na cabeça. Mesmo querendo contagiá-la com a felicidade que eu tinha em excesso, não me parecia uma boa hora.

- Meu bem, lembra de quando eu disse que um dia você precisaria aprender a ficar em silêncio, como uma formiguinha no inverno?

Afirmei com a cabeça lembrando-me das histórias sobre as formiguinhas que aproveitavam o verão, mas que no inverno, escondiam-se do frio dentro de suas casinhas em silêncio para que o frio não as encontrasse.

- Sei ficar em silêncio mamãe – disse a ela esforçando-me para sussurrar de forma mais discreta possível. Ela teria orgulho de como eu poderia ser silenciosa.

- Está ótimo querida! – disse quase tão baixo quanto eu, sorrindo – Agora, você precisa vir comigo.

- Vamos nos esconder como as formiguinhas?

- Sim, vamos brincar de formiguinhas logo – disse com um tom vago em sua voz.

Algo estava errado.

Papai apareceu na porta no momento em que mamãe me pegava no colo. Seu rosto parecia cansado e com algo diferente. Traços profundos principalmente no centro da testa, como no dia em que eu caí de cima de uma árvore. Ele me abraçou tão forte que pensei que ficaria sem ar, mas nunca me senti tão segura.

- Foi embora? – perguntou mamãe.

- Parece que sim – disse ele, mas não estava feliz. Lançou um olhar estranho para mamãe. Ela me apertou com força contra seu peito enterrando meu rosto contra seus longos cabelos. Não pude ver o rosto deles, como se eles não quisessem que eu visse.

- Era o vizinho papai? – perguntei lutando contra os fios de cabelo em meu rosto.

- Era querida, só queria café.

O mesmo tom vago. Não sabia o que era, só sabia que não era bom. Não entendia o que acontecia, mas me senti mal por ver papai e mamãe com aquelas caras, queria ajudá-los, passar um pouco da minha felicidade.

- Meu bem – chamou mamãe colocando-me de frente para ela – vai dormir conosco essa noite está bem?

- Mas eu sempre durmo com vocês – olhei sem entender para a pequena cama ao lado da grande de casal.

- Hoje você vai dormir na mesma cama que nós – explicou papai.

- Mas porque?

- Está muito frio – disse mamãe rapidamente – tudo bem?

- Sim – respondi satisfeita. Nunca tinha dormido com eles na mesma cama.

Desde aquele momento não saímos do quarto. Apenas papai, próximo ao anoitecer, para trancar todas as portas e janelas e apagar as luzes da casa como ele sempre fazia no mesmo horário de sempre e, quando voltava, trazia lanches para fazermos piqueniques sobre a cama no escuro, como se tivéssemos um céu estrelado apenas nosso. Estrelas de luzes coladas no teto. Vinte e seis no total. Mamãe me ensinou a contar.

Depois que lanchamos, mamãe e papai me colocaram no meio deles e, enquanto eu me cobria com suas cobertas, era mais aquecida pelo abraço dos dois. Estava prestes a pegar no sono, o frio já não era um incômodo, não como era para as formiguinhas. Fechei os olhos e antes de tudo acontecer ouvi palavras das quais eu só entenderia seu verdadeiro significado mais para frente.

UMA CONVERSA SEM PALAVRAS

- Estou preocupada, e se eles voltarem?

- Vai dar tudo certo, não conseguirão encontrá-la.

- Não quero mais viver assim.

- Fique calma, um dia isso vai acabar.

- Não sei se poderia suportar isso sem você.

- Eu certamente não poderia.

- Eu te amo.

- Eu também te amo querida.

Depois daquela noite, o que restou foram escombros, um cheiro desagradável e resquícios do cheiro de café frio.

- Mamãe? – levantei rapidamente. Gritarias ecoavam pela casa, tudo girava como se fosse uma casinha de bonecas sendo sacudida. Grandes estrondos por todos os cantos. Vidros quebrados e o vento forte contra as telhas da casa.

- Mamãe? – chamei um pouco mais alto – Estou com medo.

Dentro do quarto não havia ninguém.

E então, passos. Correndo, ligeiros, pesados, amedrontados. A porta irrompeu com papai e mamãe com os rostos vermelhos, amedrontados e umedecidos. Papai tinha algo nas mãos, um brinquedo de metal.

- Meu bem – disse minha mãe correndo em minha direção aos prantos. Ela me abraçou com força contra seu peito.

- Estou com medo – sussurrei em seu ouvido enquanto não podia evitar ouvir os gritos e as risadas escandalosas no andar de baixo.

- Vai ficar tudo bem, não se preocupe – sussurrou ela de volta.

- Monick, precisamos fazer isso – disse papai assustado arrastando os móveis na direção da porta sempre segurando seu brinquedo de metal.

- Oh, Deus, esperei que esse dia nunca chegasse – resmungou mamãe em prantos.

Levantei meu rosto de seus cabelos e delicadamente passei minhas pequenas mãos sobre suas maçãs limpando suas lágrimas enquanto ela me observava com algo estranho nos olhos. Estava triste.

- Calma mamãe, não chore. Vai dar tudo certo. Eu amo você.

Por algum motivo do qual não entendi, ela chorou mais ainda e papai parou no meio do quarto observando-nos. Quis alegrá-la, porque ela estava chorando mais?

Papai se aproximou e, sentando-se conosco, nos abraçou dando um beijo em cada uma.

- Também te amo minha pequena – disse mamãe sorrindo com lábios e olhos. Sorri para ela e dei um beijo em papai.

- Também te amo papai, não fique com ciúmes.

- Te amo também querida – disse ele com uma risada nervosa – Sempre te amaremos, está bem?

Balancei a cabeça e sorri. Sempre os amaria também.

- Meu bem, vamos brincar agora, está bem? – disse mamãe – A partir de agora você não pode fazer barulho algum, não importa o que você ouça, veja ou queira falar. Não se mexa ou faça qualquer som, acha que você consegue?

Balancei a cabeça novamente. Eu era boa nessa brincadeira.

Levantamos-nos e papai me deu um abraço forte como no dia que caí.

- Lembre-se que você tem muita felicidade dentro de você está bem? – disse ele sorrindo.

- Vou lembrar – disse a ele.

- Quando você for grandinha, não esqueça que você deve ser boa, pra deixar papai e mamãe orgulhosos, certo?

Sorri enquanto ele me soltava aos poucos, havia pesar em seus movimentos. Mamãe me levou até a outra ponta do quarto parando ao lado da parede onde ficava uma pequena lareira. Enquanto papai apagava o fogo, mamãe pareceu empurrar uma das extremidades da base de madeira enquanto ela se movia. Ela retirou a tampa onde pude ver um pequeno espaço, atrás passava uma corrente de ar.

- Lembra da brincadeira das formiguinhas? De se esconder do inverno? Você vai ficar aqui dentro e só pode sair em três hipóteses: Se a mamãe ou o papai pedir, se o dia amanhecer ou se o frio for embora. Você entendeu?

- Sim – sussurrei enquanto me virava para entrar lá. Antes que eu pudesse, mamãe me puxou para mais um abraço enquanto eu sentia suas lágrimas sobre minha roupa, caindo lentas e pesadas.

- Monick... – chamou papai.

- Meu amor, preciso te pedir mais uma coisa – disse mamãe me colocando lá dentro – Feche os olhos e ignore tudo o que você ouvir, está bem?

- Monick...

- Está bem – disse enquanto me sentava encolhida. Ela jogou alguns cobertores e, após uma ultima olhada, colocou a tampa no lugar.

Ali dentro era quentinho. Esperei pelo escuro, mas quando olhei para frente, a tampa tinha uma leve fresta, como daquelas que você tenta fechar com as cobertas no inverno para não entrar o frio, uma daquelas que resiste. Pela fresta eu via papai, eu via mamãe e todo o quarto.

Fortes batidas na porta fizeram as paredes tremerem. Comecei a ficar cada vez mais assustada com o barulho. Vi mamãe se segurar nos ombros do papai.

- Monick... eles estão aqui.

- Vou ficar.

- Saia pela janela, talvez não haja nenhum deles lá fora.

“Quem eram eles?”, pensei no escuro.

- Não vou deixar você sozinho.

- Por favor, Monick...

- Marcus não! – disse ela parando a sua frente – Vou ficar ao seu lado. Vamos enfrentá-los juntos.

Papai baixou a cabeça. Os móveis pareciam não adiantar. Tudo começou a vir para trás. Eles se afastaram da porta e pararam em frente à lareira. Um olhar os prendeu durante um tempo, era comum vê-los assim, como se as palavras não passassem de um mero utensílio dispensável. Olharam-se, se beijaram, se abraçaram forte e então, ainda juntos, deram uma última olhada para um pequeno tampão escondido dentro da lareira.

Algo desviou seus olhares até que vi papai empurrando mamãe na direção da cama enquanto a porta era atirada contra a cadeira de balanço, caindo sobre papai.

- Marcus! – mamãe gritou.

Um cheiro estranho apareceu. Era velho e forte, muito forte. Da ultima vez que tinha sentido aquele cheiro, fora no último verão quando encontramos um cachorro atropelado na estrada.

Passos pesados passaram pela porta enquanto papai levantava-se com dificuldade. Algo em seu rosto ganhava cor. Era um liquido vermelho que escorria de seus cabelos. Seus olhos voltaram-se na direção dos passos perto da porta e suas expressões tornaram-se as mais amedrontadas que eu já tinha visto.

- Onde ela está? – perguntou uma voz grossa, como um trovão na tempestade. Tive medo dela, como se sua voz vagasse pelo quarto até me encontrar pelas frestas.

Atrás de sua voz de trovão uma risada escandalosa e estridente cortou o quarto com nervosismo. Uma risada que parecia se divertir com a destruição.

- Ela não está aqui – disse papai levantando-se. Meus olhos lacrimejaram quando o vi em pé de cabeça erguida. Tive orgulho dele – Não a deixaríamos aqui sabendo que vocês viriam atrás dela.

Mamãe se levantava da cama para se aproximar de papai quando vi, pela primeira vez, parte do que poderia ser o dono da voz de trovão. Seu braço era longo e fino como um graveto e nas pontas, seus dedos eram também longos e finos terminando em pontas afiadas. Ela avançou na direção de mamãe tão rápido que ela não teve reação além de gritar. Quando papai piscou, ele já estava com ela enrolada em seus dedos. Aproximando-se de papai pude ver sua forma completa, menos seu rosto. Era tão alto quanto uma árvore. Algo se arrastava sobre o teto quebrando a madeira que caía como chuva as suas costas dando espaço para sua altura. Estrelas caíam, uma por uma, até todas às vinte e seis se apagarem no chão sob seus pés. Ele olhou para baixo fitando papai enquanto mamãe batia loucamente os pés no ar. A criatura alta e negra com garras em suas asas abaixou-se de forma de que seus joelhos passaram sua cabeça. Ele encarou papai nos olhos segurando mamãe a sua frente.

- Você é mentiroso – disse ele com sua voz. Uma das garras que seguravam mamãe cresceu sozinha. Mamãe gritou. Papai gritou. Quis gritar. Coloquei as mãos sobre a boca. Sua garra atravessou mamãe pelo seu estômago, o mesmo líquido vermelho escorrendo sem controle, enquanto ele não fazia questão de impedir seu grito de dor. Ele se divertia. Era aquilo que ele gostava de fazer. Era o que ele fazia.

- Deixe-a em paz! – gritou papai avançando em sua direção com o brinquedo de metal fazendo barulho, mas antes do segundo passo, a criatura rapidamente o empurrou com suas garras causando-lhe cortes longos e profundos do peito até o rosto. Papai caiu para trás batendo as costas contra a janela enquanto o brinquedo de metal desaparecia entre os escombros de madeira. Mamãe gritava de dor. Gritava por ver papai machucado. Atrás de toda a cena, sons de asas contra o vento. Uma criatura encolhida em uma mistura de verde e preto sobrevoava o teto do quarto com suas asas estranhas. Ele não tinha muitas garras. Ele dava risadas estridentes.

- Mentiroso, mentiroso, mentiroso – repetia ele em meio as suas gargalhadas.

- Peça para ele dizer, mulher – disse a criatura grande de voz serena e forte, passando suas garras pelo cabelo de mamãe enquanto papai começava a se levantar – Diga para ele a salvar se ele realmente a ama.

Mamãe chorava. Inutilmente segurava a grande garra com suas mãos pequenas e delicadas tentando aliviar sem resultados sua dor. Lutando dentro de si.

- Diga a ele, diga a ele, diga a ele – repetia a criatura irritante.

- Diga... – repetiu a criatura em seus cabelos.

- Marcus... – começou mamãe chorando – Não diga nada a eles.

A criatura se enfureceu. Com a outra mão segurou papai pelos braços e o atirou para a criatura que voava, agitando-se loucamente pelo teto. Afobada, agarrou papai com as mãos finas e longas. Perto de um humano comum não era tão grande quanto o outro, mas ainda assim forte e assustador.

- Se você não vai falar, verá a morte dela – disse o monstro grande.

Com toda a cena a minha frente, a criatura arrancou a única garra que atravessara mamãe. Ela respirou e então ele a atacou, dessa vez com as garras inteiras, cravou-lhe as cinco de uma vez e as abriu, cortando mamãe por dentro enquanto ela gritava. Presos pelas criaturas, eles gritavam e choravam. Ele lhe arrancou as garras e virou-se para papai que chorava.

- Falará?

Papai não respondeu. Não conseguia fazer mais nada além de chorar.

Abrindo suas garras, ele as fincou no coração de mamãe. Um último suspiro, um grito sufocado, e então, seu silêncio.

Com os monstros torturando e matando papai e mamãe, agarrei-me aos cobertores colocando-os no colo, tentei respirar apenas o cheiro do perfume de mamãe nas cobertas, deixei as mãos sobre os lábios enquanto as lágrimas rolavam insistentes e silenciosas. Meus olhos sem mais censura ou limites para dor, fitavam a fina camada de fumaça branca opaca sobre o café intacto e gelado.

Quando a camada desapareceu, fechei os olhos.


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