Se o Mundo Ruir escrita por MillaSnape


Capítulo 12
Capítulo 12 - O Incidente do Rio


Notas iniciais do capítulo

Deletei completamente o antigo capítulo 12, "Anjo do Mal", e adicionei este. Eu pretendia apenas revisá-lo, uma palavrinha aqui e outra ali, mas aí o Shun decidiu ficar relembrando o passado e eu não quiz interrompê-lo. Vou reescrever e adicionar "Anjo do Mal" logo em seguida, no cap. 13.



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Shun chorou muito, encolhido na cama, cobrindo a face com as mãos pálidas e trêmulas. Nunca se sentira tão vulnerável e indefeso na vida! Nem mesmo na época do orfanato. Lembrou-se daz vezes em que o Ikki não estava por perto e" "seus algozes" (uns meninos da sua idade, que adoravam mexer com os mais fracos) aproveitavam a oportunidade para cercá-lo, mexer com ele, rir às suas custas, insultá-lo, humilhá-lo. E agora via-se nessa posição indefesa, que o remetia direto ao passado. Tanto tempo passara, mas aqui estava ele novamente, sendo vitimizado.

Com o lençol, Shun limpou as lágrimas que essas lembranças ruins traziam, mas não adiantava, novas surgiam logo em seguida. Na infância, frequentemente o "bullying" ia além de palavras os garotos o agrediam fisicamente, empurrando-o, batendo nele. Vários contra um, os covardes! Shun sempre fora um menino miúdo para a sua idade; não de estatura baixa, mas era magrinho, de constituição mais delicada do que muitas das meninas do orfanato. Juntava-se a isso o seu rosto delicado, o seu temperamento meigo de menino bom e educadinho, a sua aversão por qualquer tipo de violência, o que fazia dele umas vítima óbvia e fácil para os bullies.

Naquela época ele vivia agarrado ao irmão. (Agarrou-se um pouco mais no traveseiro, lembrando-se disso.) Em parte porque os dois sempre foram muito unidos mesmo; eles só tinham um ao outro nesse mundo. Ikki cuidara de si desde que era um bebê, às vezes era mais pai do que irmão... Mas em parte, ele grudava-se a Ikki por puro medo de estar sozinho, pois era aí que os garotos o atacavam.

Como se as humilhações e agressões físicas não fossem ruins o suficiente, havia sempre um e outro garoto ainda mais cruel do que os outros. "Nachi," teve a infelicidade de lembrar, mas tratou de desvencilhar-se logo da memória ruim.

Em retrospectiva, Shun deveria ter contado ao irmão cada vez que alguém lhe fez mal na infância. Assim teria evitado muita judiação, muito trauma para si. Com certeza Ikki jamais o teria permitido; teria movido mundos para protegê-lo. Com os olhos de hoje, um rapaz maduro, isso lhe parecia óbvio, mas quando menino era muito bobinho, sua lógica nem sempre era a melhor. Na época, deixava o irmão fora desses assuntos, de seus dramas, afinal Ikki não era onipresente, não poderia cuidar de si a todos os momentos do dia e da noite, e não queria preocupá-lo ainda mais do que já o fazia por si só. Também não queria que os dois fossem expulsos do orfanato por Ikki ter brigado por sua causa. Ikki sempre fora esquentadinho, e virava uma fera se via alguém implicar com seu irmão menor às vezes, sem muito medir as consequências. Por isso, achava melhor calar-se.

Ele também poderia ter feito queixa a uma das "tias" do orfanato quando alguém lhe maltratava, mas na época, ficava com medo até disso... Achava que não acreditariam nele, que o acusariam de mentiroso, o castigariam... ou pior: ririam dele, apontando-lhe o dedo e chamando-o de bebê chorão, o idiotinha que não podia nem defender a si mesmo... O medo e a vergonha o calavam.

Parte de si uma voz que sussurrava baixinho dentro de si, jamais falava alto, com medo de ele próprio escutar com clareza achava que ninguém se importaria em defendê-lo, além do irmão, simplesmente porque ele não valia o aborrecimento. Afinal, quem era ele? Apenas um garotinho órfão que ninguém queria, que vivia de caridade, que não tinha utilidade para ninguém nesse mundo. Só ocupava espaço e dava trabalho. Se ao menos fosse forte e decidido como o irmão, ou tirasse notas boas como a Naoko, ou cantasse bonito como o Kenji, ou fosse bom de baseball como o Hiruji... mas ele era comum demais, sem nenhum talento ou quê de especial. No fundo, aceitava seus tormentos com certa resignação, deixava-se machucar no corpo e no coração, não somente porque era fraco, mas porque não achava-se merecedor de tratamento melhor.

Assim passou a sua infância. Na defensiva, esquivando-se, escondendo-se de crianças mesquinhas e cruéis. Sentindo-se impotente, fraco, com medo quase permanente de ser atacado. Achando que não valia grande coisa como ser humano e, de coração partido, vendo as "provas" desse fato constantemente.

Nachi, veio à sua mente de novamente, contra a própria vontade. É, o pior de todos os bullies foi ele... só a memória daquele garoto fez Shun encolher-se mais na cama e cobrir a cabeça com o lençol, como se ele ainda pudesse lhe fazer mal.

Lembrava-se claramente da cara dele, meio vesgo (não propriamente vesgo, mas com os olhos meio que errados), uns olhos que irradiavam malícia. Pele morena do sol e cabelos escuros. Nachi tinha uns dez anos de idade quando se conheceram, dois anos mais velho do que si. Era um pouco mais alto do que si, e embora não fosse particularmente forte, seu jeito era intimidador. Viera transferido de outro orfanato onde, diziam, havia causado problemas. Ninguém sabia o que havia acontecido, mas para Shun, não era de admirar que o mandaram embora. O garoto era ruim que doía.

Entre outras pequenas maldades que fazia consigo (coisas "bobas" como cuspir no seu suco, rasgar os seus desenhos, ou fazê-lo tropeçar de propósito e esfolar o joelho no chão), vivia ameaçando de afogá-lo no rio que ficava próximo. Vivia dizendo coisas como, "Qualquer dia desses, quando você menos esperar, te levo para um passeio até o rio, e vou te mandar para um mergulho..." Outras vezes juntava: "Você vai mergulhar, e vai ficar lá mesmo, nunca mais vai poder voltar para o orfanato... O rio será a sua nova moradia... "

Shun arregalava os olhos de pavor, não duvidando por um momento que o outro seria capaz daquilo mesmo, e Nachi gargalhava com a sua reação, divertido. "Imagine, viver lá no fundo para sempre, com os peixes, aquele espaço todo, o rio todinho só para você! Já que você não tem casa, seria uma boa, né? Assim você não precisaria continuar aqui de favor! O que acha?"

Shun sempre congelava e ficava sem saber o que dizer; só faltava fazer xixi nas calças de puro medo, crente que o outro, cedo ou tarde, cumpriria as ameaças. Um dia, perante nova ameaça, finalmente criou coragem e perguntou, com uma voz chorosa: "Por que você faz isso comigo? O que foi que eu te fiz?"

Nachi fez cara de desentendido. "Eu ainda não fiz nada!" Sorriu de lado. "Mas vou fazer, um dia desses..."

"Mas por que?" insistiu Shun. "Por que logo eu? Que motivos eu te dei?"

"Motivo nenhum," o outro deu de ombros, sorrindo maldoso. "Faço porque eu posso, e você não pode me impedir." Enrolou uma mecha dos cabelos verdes de Shun no seu dedo sujo. "Faço porque vai ser divertido."

Shun desvencilhou-se dele e saiu correndo, chorando. "Ikkiiiiiiiii!!!!!" teve vontade de gritar, mas não foi mais que um murmúrio para si mesmo. Corria e ouvia as gargalhadas do outro distanciando-se. Mesmo agora, deitado na cama desse quarto de cativeiro, tantos anos depois do ocorrido, Shun parecia ainda ouvir aquela risada.

Nem dois dias haviam se passado depois desse incidente. Em um momento, Shun encontrava-se sentado debaixo de uma árvore, lendo um livro (que pertencia à pequena biblioteca do orfanato, claro que não era dele), e no momento seguinte, viu-se puxado por um braço, agarrado por trás por braços fortes, e arrastado rapidamente do local. "Hora de fazer aquele passeio até o rio, como eu prometi; que tal?" ouviu sussurrado ao seu ouvido, seguido da risadinha maldosa infelizmente tão conhecida sua.

Por alguns segundos Shun ficou paralisado com o choque; mas logo se recuperou e passou a espernear e lutar com todas as suas forças. Ao primeiro som que saiu de sua boca, que deveria ser um grito mas que nunca teve a oportunidade de ser formado, sentiu uma mão tapando a sua boca, calando-o.

"Shhh, fica quietinho aí senão vai ser pior para você," o mais velho ameaçou, continuando a arrastar o mais novo, parecendo não se importar com os chutes e com os braços finos se debatendo.

Shun estava cada vez mais desesperado, pois estava mesmo sendo arrastado em direção ao rio; não estava conseguindo lutar contra o outro mas tinha que sair daquela situação, antes que fosse tarde demais.

Quando estavam à margem do rio, Nachi parou, volteou Shun para mirá-lo no rosto e disse, segurando-o pelos braços, com uma expressão alegre: "Bem-vindo ao seu novo lar!" Riu malicioso, para pânico ainda maior do mais novo, que se debatia com ainda mais forças, porém sem conseguir se safar. Gritar agora não ajudaria; ninguém o ouviria.

"Deixe-me ir, por favor!"

"Ah, mas você vai gostar daqui! Não se preocupe, não se sentirá sozinho. Claro que o seu irmão nunca vai saber onde você está, mas eu prometo vir te visitar de vez em quando."

"Hey Nachi! Shun! Vocês viram a nossa bola por aí?" uma voz infantil gritou ao longe.

Shun virou o rosto em direção à voz e viu um grupo dos seus companheiros de orfanato se aproximando. Nachi continuou o segurando. Shun não gritou por ajuda, nem continuou a espernear para se safar; por alguma razão ficou com vergonha da sua situação. Ridícula preocupação em um momento em que a sua vida estava em jogo, ele se deu conta mais tarde; mas na hora em que certas coisas acontecem, a gente age de forma abobalhada mesmo, por razões ridículas.

"Vi a bola sim, Kenji," Nachi disse, tentando disfarçar a irritação mas sem conseguir, ainda com as duas mãos aferrando-se nos braços do mais novo. "Caiu para aquele lado," apontou com o queixo para um lado encoberto por rochas, onde os garotos não os veriam, e poderia continuar com o seu plano.

"Me larga Nachi!" Shun gritou, e passou a se debater com força novamente, ignorando a humilhação que sentia. Melhor passar um pouco de vergonha do que virar comida de peixe!


"Pera aí, vesguinho, você não está implicando com o Shun de novo, né?" a Sayuri se aproximava. Vendo-a tomar partido, seus amigos a acompanharam.

"É, você ouviu o garoto, larga ele, mané!" alguém do grupo gritou.

"Hey, a gente só estava brincando!" defendeu-se seu algoz, soltando-o.

Imediatamente, Shun desatou a correr, o quanto as suas pernas o permitiam. Não parou até lcançar a casa principal do orfanato; correu cozinha adentro, que àquela hora estava vazia, abriu a porta do balcão da pia, encolheu-se lá dentro e fechou a porta, lutando para acalmar sua respiração e ficar quieto.

Depois de tantos anos, não lembrava-se mais de quanto tempo passara escondido ali, debaixo da pia. Só lembrava-se de nunca ter sentido tanto terror em sua vida. Se aqueles garotos não tivessem aparecido naquele momento, ele provavelmente não estaria mais vivo. Estava paranóico de que, a qualquer instante, Nachi abriria de par em par as portas do balcão com um "A-ha! Te peguei!" e o arrastaria de novo até o rio. Mas era difícil respirar baixo, ficar quieto, não quando estava em pânico, e ainda por cima chorando! Queria muito ir procurar o Ikki, implorar por sua proteção, mas não ousava mover-se de onde estava.

Torturava-o imaginar como a cena teria prosseguido se os garotos não tivessem aparecido no último minuto. O que exatamente Nachi teria feito? Teria mesmo o afogado? Os possíveis detalhes lhe passavam pela cabeça, e Shun balançou a cabeça em negação, no tempo presente, ainda deitado na cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro. Às vezes o pânico retornava com força quando ele se deixava levar pela memória; tinha que lembrar-se de que isso era passado, que Nachi jamais iria feri-lo novamente. Muito tempo havia se passado, a probabilidade de encontrarem-se um dia novamente nesse país enorme era negligível. E mesmo que um dia desse de cara com o outro, Shun não era mais nenhuma criança indefesa e boba. E nem o outro; com certeza, a idade lhe trouxera algum juízo.

Eventualmente Ikki veio até a cozinha e o encontrou, lembrando que Shun já havia usado aquele lugar como esconderijo outras vezes. Quando Ikki abriu a porta e viu o irmão menor encolhido ali dentro, suspirou e disse, afagando-lhe os cabelos, "Ei irmãozinho, estou aqui. Tudo está bem." Shun se arremessou aos braços no irmão e se aferrou nele como se sua vida dependesse disso (e dependia mesmo).

Recusou-se a contar a Ikki o que havia acontecido; parte por uma vergonha intensa (não entendia por que se envergonhava tanto, sendo a vítima da história, mas esse era fato) e parte porque temia que, se o dissesse em voz alta, faria tudo mais real. Quem sabe se ficasse calado, descobriria que fora tudo um pesadelo, que não acontecera de fato? A noção era ridícula, é claro, mas Shun reconhecia sempre ter sido mais emotivo do que racional.

Nos próximos dias, ficara óbvio para Ikki que havia algo de muito errado com o seu irmão. Shun passara o tempo todo literalmente agarrado a ele, sem sair de perto por nada desse mundo. Ikki disse, na ocasião, que sabia que Shun só podia estar com medo de alguém, que deveria lhe contar o que houve, mas que respeitaria a sua decisão de ficar calado. E respeitou mesmo, sem forçar nada ou insistir. Mas Ikki não era bobo; pegara Shun algumas vezes lançando olhares amedrontados a Nachi no refeitório, e se não sabia da história completa, com certeza desconfiava de que o garoto vesgo era o motivo do "grude" constante de Shun nos últimos dias, e de sua atitude medrosa e estranha.

Cinco dias depois do "incidente do rio", para indizível alívio de Shun, Nachi fora transferido dali. Shun não o vira indo embora, e pelo que diziam, despedira-se de muito poucos amiguinhos; sua ida fora um tanto repentina. Diziam que fora levado para outro orfanato em uma cidade próxima. A razão oficial, contada às crianças pelas "tias", fora que haviam mais vagas nesse outro orfanato, que por sinal era mais confortável, e que Nachi tivera a "grande sorte" de ser convidado para morar ali. Mas ninguém comprara essa história.

Os rumores entre as crianças é de que fora pego fazendo algo terrível, e por isso fora expulso dali. Mas as versões sobre qual era essa terrível coisa, variavam. Uns diziam que o garoto batera seriamente em uma criança da vila, e que sua mãe fizera uma queixa no orfanato, exigindo que ele fosse mandado embora, ou então ela faria queixa às autoridades. Outros diziam que Nachi fora pego esquartejando um gato com uma faca de cozinha, fazendo picadinho do pobre animal. Havia uma versão maior dessa história, dizendo que não fora pego quando esquartejava o animal e sim mais tarde, quando colocava o seu fígado na panela de molho de tomate que estava sendo cozinhado ali no orfanato. Outra versão era de que foi pego roubando dinheiro da diretoria, para comprar cigarros.

A verdade mesmo, Shun nunca soube, mas seja lá qual fora o motivo de sua transferência, era muito bem-vinda. Assim, sem mais nem menos, seu maior inimigo desaparecera de sua vida e cessara de ser uma ameaça. Shun não desejava o mal de ninguém, nem mesmo dos que eram cruéis consigo, mas não podia deixar de sentir-se bastante feliz e aliviado; pelo menos agora ele se sentia mais seguro.

Como sempre, sua paz não durou muito; para a cada atormentador que ia embora de sua vida, outros dois apareciam. Que sina! Mas felizmente, jamais nenhum fora tão traumatizante quanto o garoto vesgo.

Quando o irmão finalmente os tirou do sistema de orfanatos para irem morar sozinhos, as coisas melhoraram bastante para ele. Shun ficara aliviado em deixar os bullies de antigamente para trás, mas não se iludira: haveriam outros pela frente. E de certa forma, realmente foi o caso, na escola pública que passou a frequentar. Mas não eram tantos, nem tão cruéis como os meninos de antes. Tinham outras preocupações maiores do que mexer consigo, como namoro e esporte. Quando uma implicância acontecia, era mais por idiotice e imaturidade do que raiva, agressividade. Primeiro, talvez por não serem mais crianças, mas rapazinhos e jovens moças com algum juízo. Mas em grande parte, Shun concluíra, por terem vindo de uma família (e não de "um ovo", como ele costumava pensar), sem as dificuldades e sentimentos negativos de uma criança sozinha no mundo, criada pelo sistema.

Shun também já não estava mais disposto a se deixar vitimizar. Já não era um pobre menino abandonado, dependente da caridade dos outros. Ikki trabalhava (meu Deus, ele era praticamente uma criança então!) e assim os dois eram independentes, não precisavam de ninguém e nem deviam satisfação a ninguém. Não seriam mais forçados a ficar em lugar nenhum, a ouvir desaforos, a tolerar o que quer que fosse. Eram livres para ir e vir, e os dois se bastavam. Tão crianças, apenas meninos, sozinhos no mundo, mas enfrentando-o como homenzinhos, de queixo erguido e cheios de coragem. (Quando Ikki estava na liderança, era fácil ter coragem!)

Shun, agora mais confidente, não mais se deixava intimidar pelo um e outro idiota que o tentava. Nem era preciso fazer muito; aprendera a usar um tom decidido, um pouco ríspido (que tivera que praticar e muito na frente do espelho) e logo deixavam-no em paz. (Fosse assim tão fácil antes!)

Como a tensão e o medo já não eram parte do seu dia-a-dia, Shun viu-se relaxando cada vez mais, deixando florecer o seu lado alegre, otimista, simpático e de coração aberto, que sempre existira mas que antes estivera reprimido. Antes sentia-se como uma mosca morta, um ninguém que não pertencia a lugar nenhum. Sua intenção era a de fazer-se passar despercebido; já que ele não tinha nada de bom para dar, o quanto menos se expressasse e mais invisível se fizesse, menos importunaria os outros. Mas agora, quando finalmente dera-se a liberdade de mostrar ao mundo um pouco do quem era, o que tinha por dentro, agora que revelava sua personalidade em vez de escondê-la... não foi com pouca surpresa que viu-se cercado de amigos e admiradores. Gente que não apenas o aturava, mas que ficava pasmo! parecia realmente gostar dele, contagiava-se com o seu riso e o seu otimismo. Pela primeira vez na vida, Shun sentiu-se querido por alguém que não fosse o irmão. Pela primeira vez, ele passou a acreditar que, talvez, ele valesse alguma coisa no final de contas.

E lembrando dos seus "algozes" do tempo do orfanato, Shun ficava mais com pena do que com raiva deles. Cresceram sem pais, sem amor, sem alguém para lhes ensinar o certo e o errado; acreditavam em um mundo onde era devorar ou ser devorados, e acabavam sendo impiedosos para treinar para a própria sobrevivência. Shun preferia acreditar nisso, em justificativas para a crueldade, do que em malícia por divertimento, em maldade pura.

Mas mesmo tentando perdoar... mesmo sentindo pena e compreensão aos que tanto lhe feriram... muitas vezes era impossível sentir apenas coisas nobres quando essas memórias vinham à tona. Às vezes Shun ainda sentia raiva, e uma mágoa tão grande que fazia seu peito inteiro comprimir e doer. Essas memórias o feriam tantos anos depois, como se tudo tivesse sido ontem. Ainda questionava o porquê de certas pessoas lhe desejarem mal no passado.

Passado, não: presente. Sim, porque agorinha ele se encontrava em uma situação muito parecida com as piores da sua infância. Era como se o tempo voltasse atrás e ele voltasse a ser o menino frágil e indefeso do passado. Só que ao invés de um bando de garotos o perseguindo no pátio do orfanato, ameaçando de forçá-lo a comer pedras, desferindo-lhe chutes no estômago ou trancando-o no banheiro a noite toda, era um grupo de homens feitos (por se dizer), dando-lhe uma surra mais do que feia, trancando-o num quarto como refém e a parte das ameaças nem começara ainda!

Talvez essa fosse a sua sina, aquela antiga vozinha dentro de si dizia. Talvez ele merecesse isso mesmo. Nascera para ser vitimizado, para ser saco de pancadas e brinquedo dos outros. Era só para isso ele servia. Podia ter vários amigos, várias pessoas que o admiravam, podia iludir-se a si mesmo e aos outros, fingindo ser alguém de valor. Mas era apenas isso: uma ilusão. Um papel, uma mentira. Esses amigos não percebiam quem ele realmente era. Jamais deixara de ser o menino órfão sem valor nenhum, que ninguém jamais quiz, e ninguém jamais iria querer.

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