Dia seguinte...

Tudo retornou ao seu devido lugar. A rotina voltaria, lembrando a todos a razão de estarem ali no improvável caso de terem se esquecido.

Kat não esquecia. Nunca esqueceria porque a cada dia fazia questão de repetir para si mesma quais eram os seus planos, como se a qualquer momento pudesse ter uma crise de amnésia. “Você está aqui pra estudar balé.”, dizia, como se fosse uma outra pessoa. “Pra ser uma bailarina de verdade”. Em seguida vinham as advertências: “Comporte-se! Tenha postura! Não chore! Você não é mais uma amadora!”

“Uma bailarina de verdade.”, pensou, olhando para o espelho. Algo que parecia a cada dia mais distante. Um objetivo a menos... o que fazer então?

“Estou aqui para estudar balé... ponto.” Era melhor se concentrar no seu primeiro objetivo, que era mais concreto e também realizável. Era assim que ia ser.

Arrumou-se para a aula: leotard preto, meias rosas, o coque e a faixa no cabelo. Não havia um fio sequer que estivesse fora do lugar. Uma expressão séria, mas não vazia. Descontentamento que se sobrepunha ao otimismo prezado por Gabriel. Tinha motivos pra isso: Dechamps.

-- Olha, juro que não estou te entendo... – a voz de Jenny cortou-lhe os pensamentos. – Você ficou tão quieta ontem.. não quis ficar ensaiando... até dormiu!

-- Fim de semana serve pra isso, não? Descansar, você vive me dizendo isso.

-- É isso mesmo Kat? – fez uma expressão de surpresa. – Você está começando a me ouvir?? – mexeu as mãos, como se estivesse afetada –Não sei se isso vai ser bom pra você, mas... ai, que emoção!!

-- Eu também tenho minhas dúvidas se isso vai ser bom pra mim, mas... pode ficar tranqüila. Eu percebi que precisava descansar.

-- Simples assim? É ruim, hein? Tem alguma coisa por trás disso... ou seria alguém? – levantou uma sobrancelha, gozadora.

-- O que está querendo dizer com isso, Jenny? Não tem ninguém... não posso e nem quero.

-- Poder, você pode. Querer é um outro ponto. Mas você só vai esquecer seu ex se conhecer uma outra pessoa...

-- Eu não quero resolver um problema criando outro. Já sei como é isso...

-- E quem disse que eu falei em “ficar” com a pessoa? Eu disse “conhecer”. – terminou de dizer enquanto ajeitava o cabelo.

-- Tá, entendi. Mas agora não tenho tempo pra isso. Preciso de concentração... de frieza... não de sentimentos passionais.

-- Sempre a Dechamps pra estragar tudo...

No salão, Kat percebeu que estava sendo alvo de cochichos e olhares das outras meninas. A insegurança começou a surgir, mas entendia a razão de tudo aquilo. Primeira aula de Dechamps depois da humilhação... isso se a conversa com Gallagher não tivesse vazado... as paredes da Royal Academy tinham ouvidos...

Disposta a não se aborrecer antes da hora, tentou ignorar todo aquele burburinho. Provavelmente o pior ainda estava por vir. Então foi para um canto qualquer, fazer um alongamento despretensioso, apenas para se livrar da platéia. O grand finale ainda estava longe de acontecer.

Dechamps não demorou a chegar. Entre Kat e ela houve apenas uma rápida troca de olhares antes do frio e habitual cumprimento de “bom dia”, do bater de palmas e da explicação dos movimentos para os exercícios das barras.

Começaram. Kat colocou-se na melhor postura que pôde, o que para sua profesora significaria “insuficiente”. Concentrou-se principalmente na posição dos pés. “Pés ruins”, lembrou-se, com uma pontada desagradável no estômago. Era algo que não conseguia esquecer.

A despeito da presença intimidadora de Dechamps e dos olhares curiosos, colocou-se ereta e fazendo os movimentos mais longos possíveis. “Como uma gata se espreguiçando”, diria Tommy em uma de suas frases mais dúbias.

Gata, porque era isso que seu apelido significava?

Por que era em uma que se transformara quando estava sob efeitos dos feitiços de Rita?

Ou quem sabe simplesmente um elogio da parte dele?

“Ah ,Tommy...”

E sua mente quase começou a ir para outro lugar, até que percebesse e ordenasse o esquecimento. “Pare! Não é hora pra isso!”

Apesar de suas breves distrações, Kat ainda aparentou estar concentrada, e Dechamps já passara por ali sem nada dizer.

Tempo depois, com o bater de palmas, passaram para os exercícios de centro. De três em três treinariam os saltos, e para isso precisava de toda a sua concentração. Certa vez esbarrara em uma outra garota em exercício semelhante e ouvira uma piadinha ácida de sua professora: “Katherine, mais cuidado. Aqui não temos seguro anti-colisão.”

Sua reação? Fora obrigada a rir, enquanto seu estômago se manifestava pela primeira vez com uma pontada. A primeira de muitas.

Um grupo já estava executando os exercícios. Kat escolheu entrar junto com o terceiro trio, pensando que teria tempo suficiente para obter o foco do qual tanto precisava.

Entrou para a execução dos saltos ao som do mesmo monótono bater de palmas. E assim o fez, sem esbarrar em ninguém ou cometer erros. Assim foi em todas as repetições.

Depois, um outro tipo de exercício: um grupo maior iria executar uma pequena coreografia. Um dos momentos mais perigosos, mas que precisaria enfrentar. Então ao som do piano e de sua voz mental na incessante contagem que marcava o compasso, começou a executar a dança. Dessa vez optou por entrar com o primeiro grupo , com pensamento de que talvez fosse melhor passar logo por isso. Concentrada, ignorou o fato de a música tocada ser irritante. Não precisava de mais nada que pudesse alterar seu foco.

-- Clarisse, as costas.

A voz de Dechamps ecoava em seus pensamentos de concentração e otimismo, com mensagens que não lhe eram dirigidas.

-- Leighanne, não fique se exibindo para o espelho.

Uma alívio que poderia ser apenas momentâneo. Sentiu quando ela se aproximou, mas procurou não demonstrar. Aguardou uma palavra qualquer mas ela não falou; apenas continuando ali onde estava. Seria aquela uma forma de pressão psicológica? Talvez sim, afinal já estava se sentindo como um animal de circo... ou quem sabe uma bruxa prestes a ir para a fogueira da inquisição?

Atitude final, e Kat respirou aliviada: não cometera nenhum erro, ou pelo menos nada que fosse visível. Não perdera o ritmo, nem esbarrou em ninguém. Se tivesse que falar alguma coisa, Dechamps teria de arranjar um outro pretexto. Ela não disse nada, mas olhou-a de uma forma estranha. Depois disso chamou outro grupo.

Junto com as outras, Kat deixou o centro do salão. Foi até sua bolsa, pegou a garrafinha d´água e tomou um gole:sua boca estava completamente seca. Não sentou para não perder o ritmo.

-- Calou a boca de todo mundo... – disse Jenny, que se aproximou para fazer o mesmo.

-- Ainda nem começou. – passou a mão pelo coque, conferindo se estava bem preso -- Foi só um exercício que não errei, a aula ainda não...

Olhou de relance para a porta e viu uma imagem que a atraiu: Gabriel estava ali parado, observando de longe, talvez conversando ou esperando alguém. Ao vê-la percebendo sua presença, sorriu. Em resposta, Kat deu um aceno discreto. Algo que durou apenas breves segundos porque logo Dechamps foi até lá, disse algo ao rapaz que mais pareceu um educado “com licença” e fechar a porta.

-- Kat, o que foi isso? – perguntou, quase aos sussurros.

-- Como assim? Não entendi.

-- Desde quando você conhece Gabriel Sobiesky?

-- Desde o início do ano, o mesmo tempo que você.

-- Nhééééé... to falando dessa intimidade toda.

-- Que intimidade?

-- Ele “tava” te olhando.

-- Não, na certa estava esperando alguém. A Valerie, provalvelmente.

-- Não foi pra aquela branquela que ele sorriu...

O bater de palmas fez com que voltassem a realidade. Hora de voltar ao centro e fazer tudo de novo. De novo, de novo e de novo.