Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 5
Caleidoscópio do mundo


Notas iniciais do capítulo

Um novo amigo, um novo alento



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-- Desculpa, eu não queria te assustar. Não sabia que o salão estava ocupado.

-- Não vai ficar ocupado por muito tempo.

-- Não, não saia por minha causa. Posso ir pra outro lugar... tem muitos lugares vazios.

-- Já estou saindo. De qualquer jeito eu já estava pra ir embora. Não estava dando certo mesmo... – disse, com uma expressão triste, enxugando algumas lágrimas como se fosse suor, tentando disfarçar o ressentimento.

-- Ei, eu acho que já nos conhecemos...

Kat achou aquela frase um discurso ensaiado, num tom que julgou ser artificial. Sentiu-se tentada a dizer que aquela academia era grande demais e que poderia ter se visto em qualquer lugar. Apesar disso ficou quieta, percebendo o rosto de traços fortes do rapaz mudarem levemente, dando-lhe feições de quem acabava de ter um estalo.

-- Não se lembra de mim?

-- Não, não... – balançou a cabeça, respondendo educadamente, mesmo que quisesse perguntar, “E deveria?”

-- Bom, é que nós freqüentamos a mesma turma de pás de deux... e fui eu quem devolvi sua bolsa e a da Jennifer... – coçou a cabeça parecendo envergonhado.

Dessa vez foram as feições de Kat que mudaram, indo do nervosismo ao repentino lampejo das lembranças súbitas. Era claro que o conhecia!

-- Ah, meu Deus... desculpa, me desculpa mesmo... a minha cabeça não está nada boa ultimamente.

-- Sem problemas. – disse, descontraído. – Como está agora?

-- Indo. – fez uma pausa que pareceu demorada, e pensativa – Melhorando.

-- Dias ruins?

-- É. – suspirou, condordando.

-- O bom dos dias ruins é que eles passam. Sempre passam – sorriu, tentando ultrapassar a atmosfera que julgou ser pesada demais. – Bem, só pra não restar dúvidas de que nós realmente nos conhecemos, vou me apresentar... nesse caso a gente fica se conhecendo agora, certo? Meu nome é Gabriel... e o seu?

-- Katherine.

Apertaram as mãos, como se fosse a primeira vez que se viam, quando na realidade já deveriam ter se visto inúmeras vezes durante as aulas. Apesar de ser a primeira vez que conversavam não era motivo ou pretexto para não se lembrar dele: Gabriel era um dos melhores alunos daquele ano, considerado uma das promessas para a academia, centro das atenções no pás de deux, dançava com uma garota da qual não conseguia recordar o nome mas que costumava chateá-la com piadinhas sobre seu peso.

-- Desculpa o mau jeito... nem sei o que te dizer. Fui muito indelicada.

-- Não esquenta. Você não estava bem naquele dia... talvez nem esteja 100 ainda. – fez uma pausa, como se a analisasse – Mas e então? O que está fazendo aqui em pleno dia de folga?

-- Tentando dançar.

-- Tentando?

-- É que eu não estava conseguindo. Estou tentando melhorar... – gesticulou, tentando controlar uma certa ansiedade. – É uma longa história... mas e você? O que faz aqui nesse dia de folga?

-- Dia de folga? – riu – Já tem algum tempo que não sei o que é isso. Costumo vir pra fazer alguns exercícios... as vezes ensaiar... descarregar de vez em quando. Sei que não devo mas é um hábito que não consigo deixar. É o tipo de coisa que pode provocar um acidente... e ninguém aqui está em condições de ter um problema desses.

-- Talvez eu esteja.

-- Como assim? Não quer a vaga?

-- Quero sim, é claro que eu quero... mas sou apenas mais uma entre várias que querem a mesma coisa... só que agora eu estou... vegetando.

-- Vegetando? Como?! Aluem consegue isso por aqui?

-- Sei lá. Acho que sou um caso único.

Kat ainda iria continuar, mas Gabriel percebeu quando ela fechou os olhos numa expressão de dor e dobrou o corpo para a frente.

-- Aiii...

-- O que foi? – aproximou-se dela, parecendo assustado – Dor?

-- Já tá passando... – sentiu-o tocando seu braço, como se quisesse ampará-la, talvez estivesse a ponto de cair.

-- Por acaso comeu alguma coisa hoje?

Kat balançou a cabeça indicando que não.

-- Tá explicado. – a expressão era preocupada, mas seu tom parecia mais calmo – Vem, vamos descer.

-- Pra quê?

-- Pra comer. Estou te convidando pra tomar café. Não sei se é ousadia da minha parte, mas...

-- Não, não é isso... acho que não devo.

-- Como assim, “não deve”?

-- O meu peso. – tentou explicar, mas parecia sem jeito. Aquele era um terreno perigoso, eram seus problemas particulares – Não devo.

-- Deixar de comer não vai resolver qualquer problema com peso ou dores de estômago. Tudo bem que temos que lidar com a dor, mas não com essa. – fez uma pausa, em tom conciliador – Olha, posso oferecer três opções: tenho barras de cereais na minha bolsa, mas acho que não vão adiantar muita coisa. Tem o refeitório, que a esta hora deve estar nas sobras... ou então podemos ir pra uma lanchonete legal aqui perto.

-- Não precisa ter trabalho por minha causa.

-- Não é trabalho. Eu também não comi nada... em dias normais eu me contentaria com essas barras de cereais.. mas hoje tem uma dama por perto.

Kat riu, sem saber o que responder. Seria uma piada? Um convite sério? Rir seria falta de educação? Não, se fosse uma piada, mas e se fosse sério? Seria falta de educação perguntar?

Não adiantaria esperar sinais claros da parte dele. Em seu rosto apenas um sorriso tranqüilo e olhos interessados, dizendo-lhe “Pense nisso... aceita? Estou esperando uma resposta...”

-- Isso é um convite? Quer dizer... isso é sério?

-- Claro que é. – continuou sorrindo. – E ainda estou te dando três opções caso aceite. Da minha parte, acho que merecemos um café decente.

Era verdade. Dava pra perceber que era um convite sério. E um som bem característico deu logo sua resposta.

-- Acho que meu estômago acabou de responder.

-- Sábia decisão a dele.

Em alguns passos e poucos minutos, Kat viu-se em uma daquelas lanchonetes, que mais pareciam ser de cidades pequenas, ou de filmes antigos, esperando seu pedido.

-- Não sei se gosta desse tipo de lugar... mas é o único que conheço com um café decente a essa hora apesar de todo o movimento.

-- Se eu gosto? Adoro! Parece até coisa de filme antigo... é tudo tão... colorido!

Gabriel gostou de ver o fascínio na fisionomia dela. Podia perceber aqueles olhos azuis percorrendo cada canto daquele lugar. Reação comum para quem pisava ali pela primeira vez, mas agora parecia ser diferente.

-- Achei a mesma coisa quando estive aqui pela primeira vez. Para quem vive naquela academia isso aqui mais parece um caleidoscópio.

Caleidoscópio... era realmente um bom termo para definir sua sensação. Kat lembrava-se bem da última vez em que vira um. Pertencia a Adam... ele lhe mostrara pouco tempo depois de ter se tornado uma ranger, mas ainda sentia-se desambientada. Lembrou com exatidão da delicada profusão de brilhos e cores das imagens que se formaram, e de como sentiu que estava voltando a infância vendo aquilo.

-- Tem razão... só que eu não vou me recuperar de todas essas cores... voltar pra aquele lugar tão...

-- Branco?

Riram. Kat percebeu que talvez não fosse a única a ter aquele tipo de percepção.

-- E então, Gabriel... de onde você é?

-- Sou americano, de Seatle. Mas ultimamente posso dizer que sou de muitos lugares. E você?

-- Acho que posso dizer o mesmo. Também tenho sido de muitos lugares...

-- Então você não é inglesa?

-- Não. Por acaso pareço?

-- Seu porte... a postura... seu rosto. Sim, parece uma legítima dama inglesa.

-- E isso é bom ou ruim?

-- Se não for arrogante ou excessivamente educada...

Riram.

-- Sou australiana.

-- Australiana? Quer dizer, da Austrália?

-- Isso aí.

-- Do país dos cangurus ao ar livre?

-- Não em zona urbana.

Riam enquanto os pedidos chegaram. O pedido de Kat tinha sido um sanduíche, que pelo cardápio parecia menor que ao vivo, e uma vitamina de morango, sugestão de Gabriel.

-- Achei que fosse menor. – disse a ele quando a garçonete se afastou.

-- Tive a mesma impressão no meu primeiro pedido... mas me acostumei.

-- Não sei se devo.

-- Seu estômago não vai se contentar com meia barra de cereais zero açúcar e zero calorias. Acredite: seu corpo vai agradecer por isso.

Kat olhou para aquele sanduíche tão bonito e acabou cedendo a fome. Não soube se era seu apetite ou se era realmente tão gostoso. Não demorou a perceber que em questão de minutos o seu prato e seu copo estavam vazios.

-- Eu comi tudo isso? – perguntou, com olhos arregalados. – Não acredito...

-- Sou eu quem não acredito. Nunca vi ninguém comer nessa velocidade... ainda mais uma garota. Devia mesmo estar com fome.

-- Ah, meu Deus... que vergonha!

-- Imagina! Teve tanta classe que ainda parece uma dama inglesa...

Um gracejo que descontraiu o ambiente. O bastante para faze-la sorrir.

-- Bom, acho que só me resta dizer que estava delicioso...

-- Que bom que gostou. Quando falou que era maior do que pensou eu quase disse pra deixar comigo caso não conseguisse comer... mas achei que seria muito abuso.

-- Eu devia estar com mais fome do que imaginei.

-- Vai se sentir melhor agora.

-- Já estou melhor.

Pagaram a conta e saíram. Kat quis dividir, mas ele recusou num gesto de cavalheirismo. “Eu convidei, eu pago”.

Depois de saírem, começaram a falar de assuntos banais para não caírem no silêncio constrangedor, enquanto voltavam para a academia. Kat observava-o, tentando fazer com que isso não ficasse aparente, mas não sabia bem o que fazer e nem como agir. Provavelmente também estava sendo observada: isso a deixou mais nervosa.

-- Bom, desculpa ter atrapalhado o seu ensaio. – ela disse, quando o repertório de banalidades parecia ter acabado – Acabei nem te deixando começar.

-- Talvez você tenha me salvado. Esse negócio de ensaiar sem professor é perigoso... mas é uma mania que não consigo deixar.

-- Já ouvi falar muito nesse tipo de acidente.

-- E esse negócio de ensaiar sem professor e de jejum também não é legal. – provocou.

-- Eu sei, eu sei... mas as coisas não têm sido nada fáceis pra mim.

-- Como assim?

-- Estou numa fase ruim.

-- Não eram só “dias ruins”?

-- Tem durado mais que dias.

-- Quanto tempo a mais?

-- Alguns meses. – pareceu pensativa – Quase cinco meses.

-- O tempo que está aqui?

Ela concordou, meneando a cabeça.

-- Isso é mau. Faz pensar que está desperdiçando sua vida.

-- Estranho também.

-- Não, estranho já não é. – foi conclusivo – Quer falar sobre isso?

Já estavam há poucos metros dos domínios da Royal Academy. Poucos passos e talvez a conversa acabasse e cada um tomaria seu caminho. Kat não estava nem um pouco tentada a tocar neste assunto, mas como poderia dizer isso sem ofende-lo?

-- Não. – disse, num tom decidido mas que logo se transformou em ansiedade em se corrigir – Quer dizer, eu não gostaria de falar nisso.. . nós acabamos de nos conhecer e não quero ficar tocando num assunto tão desagradável.

“Droga! Que horrível!” pensou Kat, recriminando-se. Aquilo mais parecia um pedido de desculpas malfeito.

-- Ah, meu Deus... você deve estar me achando uma louca. – sorriu para disfarçar seu nervosismo. Tinha medo de ter estragado tudo... ele parecia tão legal e a manhã tinha sido tão boa...!

Será que tinha posto tudo a perder? Não soube o que pensar. A incerteza era cruel e se durasse mais provavelmente se materializaria em uma de suas conhecidas dores estomacais.

Não foi o caso. Novamente um sorriso apareceu no rosto de bem traçado de Gabriel, aparentando compreensão...e talvez sem qualquer julgamento. Seria mesmo verdade?

-- Nem um pouco. Por que eu te acharia louca?

-- Sei lá. – estalou os dedos, parecendo mais calma. – A maior parte das pessoas que eu conheço me achariam louca se ouvissem essa conversa.

-- Não é loucura. É um assunto desagradável, provavelmente particular, e nós acabamos de nos conhecer. Sou um desconhecido pra você... eu nunca poderia te achar louca por isso.

-- Quer dizer... sem ressentimentos?

-- Não tenho motivos pra ter ressentimentos. – pausa – Não sei se é intromissão da minha parte, mas se achou que eu seria capaz de pensar assim por causa disso, deve estar andando com pessoas estranhas.

Não demorou para que as situações se invertessem e ele parecesse desorientado e sem jeito.

-- Bom, acho que eu me expressei mal... deixa eu tentar me corrigir.

-- Não precisa. Sei o que está querendo dizer. – respondeu, tentando tranqüiliza-lo.

-- Mesmo?

-- Mesmo.

Restou a eles sorrirem um para o outro. Não deixava de ser engraçado: ambos constrangidos e com medo de serem mal interpretados. Kat sentiu-se mais aliviada em saber que não era a única preocupada com isso.

-- Obrigada pelo café e pela conversa, Gabriel. Acabou salvando minha manhã.

-- Poderia ser todo o dia.

-- Estou sendo realista. O dia mal começou.

-- Um pouco de otimismo pode ser bom.

-- Eu sei, estou tentando... talvez possa ser assim hoje.

-- Ótimo. Fico feliz em saber que vai fazer um esforço. – pausa – Eu também tenho que agradecer a você.

-- A mim? Pelo quê?

-- Sua companhia. Odeio sair e comer fora sozinho. – olhou-a nos olhos. – Espero que esta não seja a última vez que nos vemos.

-- Não será. Estamos na mesma turma de pás de deux... chances não vão faltar.

Despediram-se de forma desajeitada. Foi Kat quem se afastou primeiro, indo em direção aos alojamentos. Acenaram um para o outro antes de irem para lugares diferentes.

Ao entrar em seu quarto logo deparou-se com Jenny, com expressão afogueada.

-- Puxa, até que enfim! Onde foi que se meteu, Kat?

-- Por aí. Fui espairecer.

-- Então, por favor: da próxima vez que for espairecer me avisa, certo? Eu fiquei preocupada... aposto que não comeu nada.

-- Errou. Meu estômago não me deixou esquecer.

Kat sentou-se na cama e tirou o tênis. Jenny encostou-se na cômoda, olhando-a com uma expressão de quem não estava reconhecendo uma pessoa.

-- Sinceramente, Kat? Às vezes não sei o que pensar de você.

-- Idem. Eu também não sei o que devo pensar de você de vez em quando.

Riram.

-- Vai sair?

-- Vou. Hoje é dia de ligar pra casa. Não vou estragar a tradição... aí depois eu vou pra banca de jornal. Não tenho muito o que fazer hoje.

-- Vai abastecer a sua vasta literatura? – perguntou, referindo-se as revistas de fofoca ou livrinhos de romance açucarados.

-- Mas é claro... um pouco de distração fácil e barata não faz mal a ninguém. – Jenny ajeitou o cabelo – Não quer vir comigo?

-- Não, não... acabei de voltar da rua. Vou ficar por aqui mesmo.

-- Tudo bem... não demoro,viu? Tchau!

-- Tchau.

Jenny saiu apressada. Kat não pôde deixar de achar graça de toda aquela pressa. Já sabia que ela iria voltar com uma expressão de alívio: suas saídas de fim de semana eram as válvulas de escape. Isso então significaria algum tempo de calma e silêncio. Tempo que pretendia aproveitar para relaxar e curtir as lembranças recentes daquela bela manhã que tivera. “Afinal, de certa forma era pra isso que existiam os fins de semana” pensou, deitando na cama e fechando os olhos.


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