Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 3
Deja vú


Notas iniciais do capítulo

Nada a informar (eu acho)



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-- Eu...não posso, minha bolsa...

-- Eu também deixei lá. Depois eu pego, não esquenta.

Logo saíram do prédio. Foram para o alojamento. Imaginava que a amiga precisaria de privacidade para chorar e desabafar. Já não agüentava mais segurar o choro: os olhos já estavam muito vermelhos e suas mãos tremiam.

-- Senta aí. – colocou-a na beliche, agachando-se em seguida para vê-la melhor. – Respira fundo e se acalma.

Foi o que Kat fez: respirou fundo, tentando controlar os soluços enquanto arrancava os grampos do cabelo.

-- Mas que droga! Eu não faço nada certo!

-- Não fala isso.

-- Como não? Olha o tempo que estou aqui. Não fiz nenhum progresso... não consegui nada... esse aqui não é meu lugar.

-- Não pensa desse jeito, Kat. Não cai na pilha da vaca da Dechamps.

Suspirou, um pouco mais calma, secando as lágrimas e tirando as sapatilhas.

-- Não fala assim. – disse Kat.

-- É o que ela é. Só estou falando a verdade.

-- Não devia ter saído pra vir atrás de mim. Vai acabar se prejudicando por minha causa.

-- Não preciso de ninguém pra me prejudicar, Kat. Principalmente com aquela megera. Faço isso por mérito próprio. – fez uma pausa – Fiquei preocupada com você. Pensei que pudesse acabar acontecendo alguma coisa a mais... tipo se jogar na frente de uma carro... ou se atirar de alguma escada...

-- Não seria pra tanto – ensaiou um princípio de riso. – Não conseguiria fazer isso nem se eu quisesse.

-- Só estou indo pela minha cabeça. Eu quase fiz isso naquele dia mas não tava passando um carro na rua e nem tinha nenhuma escada... e você acabou me salvando de procurar formas alternativas de suicídio.

Viu-a sorrindo com a lembrança do dia em que se conheceram. Por mais bizarro que pudesse ser, ainda era engraçado.

-- Ela não podia ter feito o com você.

-- Não adianta nem pensar nisso. Já passou e ela tem razão... sou um desastre.

-- Não é não. Não quis estar aqui? Não quer entrar pra companhia?

-- Nem adianta sonhar. Não tenho talento... e nesse caso não adianta sonhar mesmo... gostar não é o suficiente.

-- Você tem talento, Kat. Eu te vi dançar naquele dia... passou por cima de todas aquelas candidatas...

--Jenny: você não me viu dançar no teste. Você chegou atrasada na primeira fase e saiu que nem doida na final antes que eu começasse. Como pode dizer isso?

-- São apenas pequenos detalhes. – disse sorrindo. – Mas naquele dia você roubou minha vaga. Então pra ter conseguido isso tem que ser fera.

-- Eu só fiquei com a sua vaga por causa do controle emocional. Justamente o que eu não tive hoje.

-- Tenho que admitir que foi uma escolha acertada da parte deles. Você só saiu de lá chorando... eu teria arrebentado a cara dela. – pausa – E isso não muda nada o que fez naquele teste. Eu vi as outras concorrentes... eram talentosas... e se estamos aqui hoje, mesmo que você tenha roubado minha vaga, é porque nós arrebentamos!

Riu um pouco. Era impossível permanecer imune a aquele entusiasmo típico de Jenny Hunter, mesmo que com toda aquela tristeza ela durasse menos de um segundo.

-- Eu... acho que preciso ficar um pouco sozinha... ver se eu esfrio minha cabeça.

-- Tem certeza?

-- Tenho. – pegou as mãos da amiga e apertou-as – Obrigada pelo apoio, Jenny.

-- Não tem de quê. É pra isso que servem os amigos. – levantou – Tenta descansar.

Saiu do quarto, deixando –a sozinha. Um pouco depois, levantou e trocou de roupa. As aulas do dia ainda não tinha acabado, mas sabia que seria impossível participar. Seu dia foi dado como encerrado.

Colocou a mão no abdômen. Seu estômago ardia de forma impiedosa. Sabia que era por causa do nervosismo. Algo que acontecia com cada vez mais freqüência. Então foi até sua gaveta e tirou alguns antiácidos. A dor era forte e por mais que normalmente conseguisse suporta-la, não se sentia em condições de agüentar mais isso.

Após tomar o antiácido voltou a colocar as mãos no abdômen, mas por outro motivo que também a preocupava. Encolheu a barriga, procurou ver o quanto sobrava de pele ao redor da cintura: ou o que restava de gordura.

“Estou enorme... nunca vou conseguir nada desse jeito...”

A depressão viria pesada. Já sabia disso. Se há tempos já vinha oscilando cairia de vez depois de ouvir os comentários de Dechamps. E todo o quadro fora resumido a duras conclusões, mas ao mesmo tempo muito simples: não tinha nada, nunca tivera nada e nem nunca teria.

Não havia o que fazer. O ano já estava perdido. Sabia que poderia ir embora a qualquer momento mas não queria voltar para casa e ser um peso morto. Já era um peso morto no lugar onde estava: não precisava prolongar isso sendo-o dentro da próprio casa.

Foi até o espelho e condenou-se pelo que viu: olheiras, olhos inchados e vermelhos de tanto chorar, o cabelo todo marcado e desgrenhado por causa do coque desfeito. A personificação de mocinhas de dramalhões mexicanos... ou a provável vítima de um assassino de filmes de terror.

“Uma palhaça”, pensou. “É isso que eu sou. Certas coisas nunca mudam”.

Cansada, sentou-se novamente, esperando e desejando profundamente que um buraco se abrisse abaixo de seus pés e a fizesse desaparecer.

Ficou ali até ouvir alguém batendo na porta. Estranhou: ou era Jenny dizendo que esqueceu alguma coisa, como pretexto para ver como ela estava, ou alguma curiosa querendo ver o resultado daquela humilhação magistral.

Levantou-se, num grande esforço para reagir e abrir a porta. Ao abrir não encontrou Jenny ou uma outra garota qualquer, e sim um rapaz alto, de cabelos escuros e pele clara.

-- Oi... – ele disse, hesitando ao achar que aquela não era a melhor hora. – Eu encontrei essas bolsas em um dos salões... sei que essa aqui é da Jenny Hunter... – levantou uma bolsa preta. -- Posso entregar a você? Quer dizer... é a colega de quarto dela, não é?

-- Sou eu sim. – disse, tentando voltar sua voz ao normal. – Pode deixar, eu devolvo.

-- Certo... – entregou-lhe – Por acaso sabe de quem pode ser essa? – levantou outra, mas de cor rosa.

-- É minha. – estendeu a mão, pegando-a também – Obrigada.

O semblante da garota não passou despercebido. Seu abatimento era algo gritante. Ela realmente parecia estar mal.

-- Ei, você tá legal? – sabia qual a resposta mas não custava perguntar.

-- Tô... quer dizer... mais ou menos.

-- Será que eu posso fazer alguma coisa?

-- Não... não – ensaiou um sorriso que não surgiu. – Problemas particulares... só eu posso resolver. – levantou a cabeça. – Obrigada por trazer as bolsas. Foi muita gentileza sua.

O esforço para ser educada e civilizada estava muito claro. Na certa não estava nos seus melhores dias, ou tinha ouvido algo muito ruim. O melhor era deixa-la em paz.

-- Não há de que.

Kat fez um rápido aceno de cabeça para ele antes de fechar a porta. Definitivamente a sós, jogou sua bolsa no chão e pôs a de Jenny na parte de cima na beliche, enquanto agradecia mentalmente por não precisar voltar para buscar as bolsas. Uma humilhação a menos.

“Como seria bom voltar pra casa”, pensou, por um instante. Não que este fosse realmente um problema. Por mais ruim que fosse a situação, sentiria-se pior se deixasse mais isso inacabado. Bastava os vários outros que já tinha. Não precisava de mais um.

Pelo resto do dia não saiu dos alojamentos. Preocupada, Jenny levou um sanduiche, mas encontrou-a dormindo. Pensando em algo mais grave procurou em sua gaveta o vidrinho de remédios. Do jeito que Kat estava não seria absurdo se ela tivesse tomado alguns... mas após uma rápida inspeção percebeu que não era o caso. Um alívio.

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Na manhã seguinte, Jenny já estava trocando de roupa quando Kat finalmente abriu os olhos.

-- Kat, finalmente! Eu já estava ficando preocupada... achei que não fosse acordar hoje.

-- Ahn? – perguntou, desorientada e com voz embargada pelo sono – Que horas são?

-- Não esquenta. Fui eu quem acordei mais cedo.

-- Ah, tá... – esfregou os olhos e bocejou. – A sua bolsa...

-- Já sei, eu vi. – fez uma pausa – Achei que tivesse tomado algum daqueles meus remédios.

-- Não, foi cansaço mesmo.

-- Não tem outra explicação. Vivo dizendo que precisa descansar mas nunca me ouve... dormiu praticamente o dia todo.

Houve uma pausa. Para ambas aquilo parecia constrangedor. Kat esperou que Jenny falasse. Ao menos ela parecia querer perguntar alguma coisa. Talvez lhe faltasse apenas a coragem.

-- E então? O que vai fazer?

-- Vou a aula.

-- Pensei que não fosse.

-- Nem eu... mas hoje não é dia da Dechamps. Acho que eu não conseguiria encará-la hoje. Mas de qualquer forma uma hora ou outra eu teria que voltar aos ensaios. Que seja agora então.

Jenny sorriu-lhe desajeitadamente. Não esperava aquele tipo de reação. Nem estava preparada para isso

-- Bem, então é melhor se arrumar logo antes que o refeitório fique concorrido demais.

-- Não estou com fome.

-- Ah, Kat... conta outra... não comeu nada o dia todo... não é possivel que não esteja com fome.

-- Nenhuma. – respondeu, de costas para a amiga enquanto trocava de roupa.

-- Isso não é nenhuma espécie de dieta, é? Por que se for está longe de ser a mais saudável... o café da manhã...

-- ... é a refeição mais importante do dia. – disse, como se estivesse sendo forçada. – Não esqueci disso, meus pais dizem isso há anos. – enfatizou aquilo como se fosse uma vida toda. – Mas sinceramente não estou com fome.

-- Mas até o almoço vai ter muito o que ensaiar. Vai ter que fazer um esorço.

-- Certo... – suspirou enquanto prendia os cabelos. – Vou tentar.

Desceram. No refeitório forçou-se a comer meio sanduiche com um pouco de suco, apesar da incômoda dor no abdomen, que não deixava transparecer. Jenny estava sentada bem a sua frente, disposta a intervir caso não achasse a quantia satisfatória.

Logo depois foram para o prédio. Passando pela recepção, uma das secretárias chamou Kat: Peter Galagher queria vê-la assim que fosse possível. Isso assustou-a, afinal ele era o todo-poderoso da academia. Mas já sabia qual o assunto. Só poderia ser uma coisa.

-- Agora? – perguntou para a atendente. Como ela disse que sim, virou-se para Jenny – Melhor você ir indo, ou vai acabar chegando atrasada.

-- Não quer que eu te espere?

-- Vai perder a aula se ficar.

-- A Sorella vai reclamar. – referiu-se a professora. – Quer que eu fale com ela?

-- Não precisa. Eu resolvo depois.

-- Certo... então te encontro mais tarde.

Percebeu que Jenny parecia relutante em deixá-la. Talvez também imaginasse o assunto. Poderia muito bem pedir para que ela ficasse e lhe desse seu apoio moral... mas Kat não queria passar por covarde. Não era mais uma menininha medrosa. Não podia mais ser medrosa.

Viu-a afastar-se em uma velocidade média. “Se quiser me chama que eu volto”. Era isso o que queria dizer, mas não pediria sua ajuda.

A secretária, após falar no telefone, disse-lhe que poderia entrar. Respirou fundo antes de abrir a porta.

Cerca de vinte minutos depois, Kat entrou no salão. As meninas estavam fazendo exercícios nas barras, e a professora, Sorella Biangee, observando-as. Logo foi em sua direção para explicar a razão de seu atraso.

-- Não precisa explicar. – disse-lhe em voz baixa assim que Kat começou a falar. – Junte-se a elas.

Estrnhou, afinal Sorella não era alguém que tolerase atrasos sem uma boa desculpa. Será que ela já sabia?

Obedeceu: juntou-se as meninas para o exercício.

Durante a aula, nenhuma complicação. Kat fez e refez os exercícios passados, mas parecia distante. Ao menos mais tranquila. Sorella Biangee, apesar de rigorosa, tinha uma personalidade mais afável. Não era do tipo que criava problemas com seus alunos... mas Kat não queria saber. Não estava interessada e sim alheia as coisas ao seu redor, simplesmente realizando os passos de forma mecânica.

No fim desceram para o refeitório. Hora do almoço. Passos rápidos para chegaram depressa, mas Kat não tinha fome, só que Jenny provavelmente estava faminta. Restava apenas acompanhá-la. Kat fez um prato minúsculo. Jenny olhou-a de cara feia mas não surtiu qualquer efeito.

-- O que o todo-poderoso queria?

-- Nenhuma novidade.

-- Para você não, mas pra mim, sim. Foi por causa daquilo com a Dechamps?

-- Foi.

Percebeu que ela não queria falar. Kat costumava ficar monossilábica quando queria ficar quieta ou mudar de assunto. Iria respeitar isso.

-- Espero que essa seja a entrada. – disse olhando para o prato dela: apenas folhas.

-- Não, isso é tudo. – mexeu com o garfo distraída, sem vontade de comer.

-- Não vai ser suficiente.

-- Estou sem fome.

-- Vai cair dura no meio de uma aula.

Decidiu não responder. Sua alimentação já era um assunto constante para muita gente. Não tinha a mínima vontade nem de falar, nem de comer. Enquanto forçava-se a comer pelo menos um pouco do que estavam em seu prato, Jenny tinha toda disposição, comendo com vontade e sem ganhar uma grama sequer.

“Que sorte ela tem...”, pensava, enquanto o estômago dava voltas.

-- Kat, você está bem?

-- Estou. Por que?

-- Não parece. Tá pálida. Tem certeza que está bem?

“Estou péssima”, foi a resposta que pensou em dar, mas não o fez. Seu estômago ardia de forma irritante. Já acordara com dores, mas piorou após a conversa com Gallagher.

-- Só estou chateada. Ontem não foi um dos melhores dias da minha vida.

-- Não fica assim. Isso vai mudar. Tenho certeza.

-- Espero que esteja certa.


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Notas finais do capítulo

Reviewsss... nunca é demais pedir...



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