Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 18
Mar de Rosas e Encrencas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/10911/chapter/18

O dia correu tranqüilamente. Kat estava como antes. Acordara calma, contemplativa. Senso de humor não parecia ser o seu forte, pelo menos não nessa hora, mas de qualquer modo a energia continuava: apesar de seu aparente relaxamento, a disposição estava a mil. Os ensaios soaram a ela como coisas banais: cada movimento pareceu-lhe brincadeira de criança, como no tempo em que ainda se divertia dançando, mas de qualquer maneira o seu rosto era todo concentração. Aparentar facilidade seria como querer se superestimar, desrespeitar as dificuldades da dança que sempre lhe pareceram tão grandes. Para todas as professoras, a dança era uma instituição, ou até mesmo algo sagrado. Longe dela querer profanar o tempo e os ritos sacrossantos. Seu estado de paciência era tanto que não se importou com os olhares estranhos e intimidadores de Dechamps, ou daqueles intrometidos das outras garotas. Não queria se aborrecer, evitava atritos a todo custo. Se pudesse, prolongaria ao máximo aquela sensação de tranqüilidade. Não que estivesse olhando o mundo com lentes cor-de-rosa... mas não poderia negar que as coisas ficavam bem mais fáceis.

Aula de pás de deux. Ethan Kulik estava explicando alguns passos. Palavras pronunciadas num francês sem afetação, não por fluência mas sim por costume. Puro didatismo.

- Bom, acho que vou precisar de dois voluntários. – disse, ao perceber que não estava sendo muito em entendido. – Sr. Nash, Srta. Hillard, por favor.

Nash olhou para Kat, procurando algum sinal de concordância ou negação. Não encontrou nenhum indício que fosse gestual, mas por seus olhos percebeu que não havia objeções.

Kulik indicou-lhes o centro do salão. Obedeceram e foram até lá. Não perguntou se haviam entendido, pois achou uma pergunta de resposta óbvia. Não haveria constrangimentos. Oliver Nash era hábil era hábil o bastante para superar quaisquer dificuldades. Quanto à garota, ainda era uma incógnita: não quanto ao seu talento, isso certamente ela tinha, mas parecia haver algo errado. Algo que ainda não sabia definir.

Com um gesto suave, o piano começou uma melodia. Não era exatamente algo alegre, mas nada que fosse triste. Apenas o suficiente para combinar com a expressão de Kat: nem mesmo triste, nem alegre, apenas concentrada. Com um novo gesto, os dois começaram com os movimentos: lentos, longos. A coreografia das aulas de pas de deux tinha dos elementos que mais a assustavam: os lifts. Aquilo poderia mostras os seus pontos mais fracos: seu peso. Pior ainda era Nash ser o seu parceiro, não por ainda ser intransigente. Simplesmente ainda sentia-se como parte das sobras.

- Um, dois, três quatro, cinco, seis e sete e oito... um, dois, três e quatro, cinco, seis, sete, oito... e um,e dois...

Nem mesmo a estranha contagem a irritou naquele momento, por mais imbecil que aquilo lhe parecesse. Por isso, não deixou sua concentração se abalar, continuando com os movimento ordenados.

- ... três, quatro, cinco, seis e sete e oito.. posição.

Colocaram-se na atitude final. Kat estava em sua melhor postura, a mais ereta possível. Os seus olhos, que até aquela hora estavam baixos e compenetrados, assumiram um quê de espectativa – visíveis apenas para quem a conhecia – mas, ainda calmos. Encontrou os de Nash e ambos os dirigiram em direção ao professor, esperando por quaisquer sinais do que deveriam fazer.

- Bom trabalho, crianças. Agora vamos – bateu palmas.- Todos em posição...

Era muito estranho ser chamada de “criança”, mas Kat tentou se concentrar no “bom trabalho”. Aquilo deveria significar alguma coisa. Não muito, mas ainda assim alguma coisa.

Junto com seu partner, deixaram o centro do salão e procuraram um lugar mais discreto para continuarem. Não era explícito, mas Nash pôde perceber que sua partner preferia assim. Ser o centro das atenções em um primeiro exercício já era demais para ela. Era bom saber disso e poder atendê-la nas pequenas coisas.

Alguns passos e logo encontraram um novo lugar. Kat levantou os olhos e encontrou os de Nash, também olhando para ela. não foi uma troca que tenha durado muito tempo, mas o suficiente para quase colocá-los numa situação constrangedora.

Até o fim da aula, ensaiaram em silêncio, sem nada mais que alguns olhares. Logo se afastaram quando a música terminou. Kat foi em direção a sua bolsa e tomou um pouco d´agua, depois sentou-se no chão para trocar as sapatilhas por um calçado comum. Nash resolveu fazer o mesmo e sentou ao seu lado.

- Tudo bem? – ele perguntou.

- Sim, tudo bem.

- Achei que você ficaria nervosa por ter participado da demonstração.

- Aquilo era parte da aula. – disse, simplesmente sem responder a indagação.

- Mas tem gente que odeia fazer parte disso. – insistiu.

- E o que eu poderia fazer? Dizer: não quero fazer isso porque não gosto, ou professor: não vou participar porque tenho vergonha? – ela mesma riu, pelo absurdo da situação e deu de ombros – Não... sou lerda, sou burra, mas não a esse ponto.

- Você foi muito bem.

- Obrigada, -respondeu, sorrindo brevemente e sem olhar para o lado - Você também.

- Ei, eu não falei isso pra que me jogasse outro elogio tão rápido!

- O que está querendo insinuar? Eu não “joguei” outro elogio. Foi só uma constatação!

- Você não aceita elogios mesmo... por que não admite que pode fazer mais do que pensa?

A pergunta veio num tom de voz calmo. Ninguém poderia pensar que se tratava de um assunto delicado, talvez uma conversinha banal. De qualquer modo ela não demorou a responder, de forma educada, mas nem por isso menos irritada.

- Eu não te dei liberdade pra esse tipo de conversa.

- Certo... – pareceu assustado – Minha idéia não era essa. Esquece o que eu disse, tá?

- Querendo manter a paz? – perguntou, irônica.

- Minha intenção não era de causar uma guerra.

- Ótimo.

- Então já que a idéia é manter um bom clima entre os partners, posso te fazer um convite? Tipo assim, almoçar?

- Não se convida uma estudante de balé pra comer, Nash. É completamente contra as leis da natureza.

- Montes de ossos ambulantes não podem dançar. Isso sim seria contra a lei da natureza. – arregalou os olhos – E aí? Aceita ou não? Eu tô morrendo de fome.

Kat refletiu por pouquíssimos segundos e deu uma risadinha pouco antes de menear a cabeça, concordando.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Noite. Alojamentos.

Jenny, sentada na beliche está lendo um livro, olhando de soslaio para a companheira de quarto que acaba de sair do banho. Está louca para puxar uma conversa e perguntar sobre a sua tarde. Só não sabia como começar.

- E aí, Kat? Foi bom?

- Foi bom o quê?

- O almoço com Nash.

- Humm... – pareceu refletir – Foi normal.

- Como assim, normal? O cara mal usava a própria voz... começou a falar com você agora sem a linguagem dos resmungos e você me diz que foi normal?!

- Bom, se quer tanto saber, a minha comida não foi envenenada. Isso é um tremendo avanço.

Jenny riu. O senso de humor de Kat não vinha com freqüência, então numa ocasião dessas o melhor era aproveitar. E provocar mais, se fosse possível.

- Já que não quer me dizer como foi, podia pelo menos contar qual foi a razão desse acontecimento.

- Razão nenhuma, Jen. Nada de mais. Ele disse queria selar a paz.

- Ainda essa lenga-lenga?! – revirou os olhos, como quem está cansada. – A paz já está mais do que selada. Deve ter um outro interesse escondido por aí.

- Você sempre vê interesse onde não tem.

- Não esteja tão certa disso... ele te dá umas olhadas...

- Ele é o meu partner. Fica difícil dançar se não nos olharmos.

- Não a-que-le tipo de olhar. Até onde eu sei a idéia do partnering é só dançar junto.

- Você entendeu o que eu quis dizer.

- Entender, eu entendi. Só não acho que seja um bom argumento. Só tô dizendo que deveria prestar mais atenção nisso. Ele tá te dando umas olhadas... e eu não costumo me enganar com essas coisas. Sabe muito bem.

Kat fez uma cara entediada. Claro que sabia: Jenny era praticamente uma mestre nesses assuntos. Mas não queria ouvir insinuações quanto a isso. Era bastante ruim ter de agüentar brincadeiras quanto a algo tão constrangedor... e tão nostálgico. Fora mais ou menos daquela forma que sua história com Tommy começara.

Não queria nada por perto que a fizesse lembrar daquilo.

- Não estou a fim de arranjar esse tipo de encrenca, Jen.

- Desde quando romance é encrenca?

- Dependendo de quem se trata, sabemos que vai ser tudo, menos um mar de rosas.

- E quem disse que o mar de rosas tem graça?

-Realmente, mas encrenca não tem nada a ver com diversão.

Tommy, encrenca... pensou, enquanto esperava o sono chegar. Não era pra ter sido assim. Não fora por falta de tentativa ou de empenho. Ao menos não dela. Não sabia como fora pra ele... imaginava,sim que Tommy tivesse feito um esforço.

Mas era triste demais pensar que alguém deveria se esforçar para gostar dela... pra ter prazer em estar do seu lado.

Era quase como sentir-se doente.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então??? Rewiews??



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sem Ensaios para a Vida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.