Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 15
Novas Facetas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/10911/chapter/15

No decorrer daquela semana pouco pôde pensar nisso. Não podia pensar em outra coisa, não podia relaxar. Havia muito mais a ser feito com seu tempo, que era cada vez mais escasso para seus propósitos. Por mais que parecesse distante ou impossível e quem em certos momentos chegasse a desistir, ainda queria ser uma bailarina. Ainda queria os palcos, uma platéia que a aplaudisse, as rosas que ganharia no fim do espetáculo... ainda queria um monte de coisas que não eram de graça. Tudo aquilo tinha um preço, um monte de sacrifícios que incluíam até seus simples desejos pessoais... mas estava disposta a pagar... pelo menos por enquanto.

Todos os dias, antes de dormir, revisava seus esquemas desenhados no seu caderninho, enquanto no discman ouvia a gravação da música utilizada em cada ensaio. Repassava mentalmente cada movimento e o tempo exato de duração de cada um deles. Saber todos esses detalhes era imprescindível para seus ensaios de fim de semana. Lá tudo isso seria posto em prática.

Foi desse jeito até vir o sábado. Assim que vieram os primeiros raios de sol, Kat já estava de pé e pronta para praticar. Em poucos minutos já estava no salão, com alongamento e aquecimentos feitos , o som já na tomada, faltando apenas poucos segundos para começar. Tudo já estava preparado: seu corpo, o cd com a música escolhida... não faltava mais nada... então deu o play e foi para o centro, colocando-se na atitude inicial.

Movimentos suaves, cuidadosamente planejados de acordo com a contagem normal. Tentava colocar ali toda a paciência do mundo, toda a dedicação. Coisas que lhe pareciam muito distantes, mas ainda assim continuou. Assim como atletas ou atores, deveria continuar mesmo que errasse, em espetáculos e ensaios normais principalmente – já que a função deles era essa mesma. Então continuou com as pontas, os rodopios e os pliés até completar a primeira seqüência, terminando em uma posição que exigia uma perfeita execução... mas para ela não foi o suficiente.

-- Ainda vai ficar melhor se os braços forem mais leves.

Kat virou-se para ver quem era, embora já soubesse a resposta. Imaginou que sua expressão deve ter sido algo entre o espanto e a mágoa.

-- Desculpe ter vindo – disse Nash, parado ainda perto da porta. – Espero não estar forçando nenhuma situação, mas você disse que não falaria comigo a menos que eu falasse antes.

-- A menos que puxasse o assunto, quer dizer.

-- Tudo bem: a menos que eu mesmo puxasse assunto. – corrigiu-se – Mas já percebi que não é um momento adequado... – foi saindo.

-- Ei, espera... não tem problema, não está atrapalhando nada. Entra aí.

Ele obedeceu. Saiu da porta, entrando, parecendo intimidado. Deixou sua bolsa no chão enquanto tentava assumir uma postura mais natural.

-- Não precisa ter medo de mim, Nash. Eu não mordo.

-- Imagino que não... mas é que não quero errar mais do que já errei. Estou tentando me controlar.

-- Nós começamos com o pé esquerdo, mas isso pode ser mudado. – disse, numa tentativa de animá-lo, mas sem demonstrar grande interesse, apenas parecendo conciliadora.

-- Dizem que a primeira impressão é a que fica. Imagino que a sua opinião ao meu respeito não deve ter sido nada boa.

-- Não costumo me basear nesse tipo de coisa. Muita coisa em jogo em pouco tempo. Não gosto de rótulos... nem em mim e nem nos outros.

Sentiu que aquilo teve o tom de uma alfinetada, mas não se corrigiu. Mesmo que não fosse intencional, era algo que estava em sua garganta há tempos. Além disso não era hora de voltar atrás, e sim de ser firme.

-- É o que todos dizem, mas não seguem. “Faça o que eu digo mas não o que eu faço.” – argumentou ele. – De qualquer jeito os outros dias não foram muito diferentes dos primeiros.

-- É... aí fica meio difícil – foi obrigada a concordar. – Mas acho que estamos quites.

-- Como assim, quites?

-- Você também não teve uma boa impressão de mim.

-- Não foi nada pessoal. Não sou a pessoa mais sociável do mundo.

-- Com certeza não... mas nada que o tempo não ajeite.

Viu-o sorrir, numa tentativa de parecer simpático sem ser irônico, ou sorrir sem sarcasmo. Algo que talvez lhe fosse desconhecido. Por poucos segundos veio o silêncio pesado que acompanhava a falta de assunto. Para os dois, que não tinham a mínima intimidade aquilo poderia ser ainda mais constrangedor.

-- Então... você está sempre aqui? – ele perguntou, tentando sair da armadilha.

-- Todos os dias, tanto quanto você... temos aula praticamente todos os dias.

-- Bem, não foi exatamente isso que eu quis dizer, mas...

-- Eu sei o que quis dizer. Desculpa, eu não resisti.

Ele sorriu novamente, parecendo mais a vontade depois daquela brincadeira. Um terreno que conhecia melhor.

- Além das aulas, costumo vir sempre que posso... isso acontece com uma certa freqüência.

- Ensaiar sem ninguém por perto não é nada recomendável. Acidentes acontecem.

- É, eu sei disso. Todos sabe, mas quem se lembra? Você está aqui hoje mesmo depois de ter se machucado.

Ele levantou os ombros como quem não sabe o que dizer.

- Eu tive a sorte por alguém ter me ajudado da forma certa... ainda que eu não tenha agradecido do jeito que ela merecia.

Foi a vez de Kat parecer constrangida. A ocasião poderia até virar piada entre os dois... mas ainda não era a ocasião.

- Bem, eu costumo vir nos fins de semana, feriados... horas de folga... – disse respondendo a pergunta e mudando de assunto. – Sempre que dá tempo.

- Realmente, mas isso não chega a ser exagero? Desse jeito mal deve dormir... quanto tempo passa aqui?

- Fico o quanto agüentar... quase nunca menos que duas horas, talvez duas e meia, sem contar o alongamento. Se bem que ultimamente não estou conseguindo. Sempre aparece alguma coisa pra me interromper.

- Ah, é verdade. – riu, sabendo que era com ele – Acidentes acontecem... mas não acha que está exagerando? Nisso tudo, a que horas vem o descanso?

- Todos os dias na mesma hora... de noite porque costumo dormir, pelo menos quando a insônia não vem.

- Insônia ou dores no corpo?

- Se eu estiver com sono, não há dor que me impeça de desmaiar. Além disso dores são um bom sinal: o exercício foi bem feito. – repetiu uma das máximas de seus professores.

- Isso é demais, pode te fazer mal como aliás já fez. Todos nós precisamos de algumas horas de descanso, além das horas de sono. Tempo pra sair, ficar de pernas pro ar...

- Está me falando em ócio?

- Isso aí. Pra isso que temos horário de folga. Temos que manter a sanidade mental... estresse é o mal do século, sabia? O ócio pode ser um grande remédio pra esses males.

- Ócio é pra quem tem talento. Quem não tem, precisa fazer o dobro ou o triplo pra chegar mais ou menos no mesmo nível. – gesticulou, suavemente. – Não gosto da idéia de ser parte das sobras.

Seu tom não foi triste, magoado e nem raivoso. Apenas calmo e analítico como alguém que conta uma história como se não tivesse feito parte dela, mantendo a distância segura de simples narradora. Nash, em um momento soube o que ela quis dizer.

- Não era pra você ter ouvido aquilo... por isso que eu não gosto de falar, porque quando estou com raiva sempre digo as coisas erradas. Ninguém costuma me levar a sério quando estou assim. – fez uma pausa que pareceu sofrida. – E isso acontece com uma certa freqüência.

- Eu não te conheço o suficiente para saber disso. É a terceira vez que fala comigo... mas você é meu partner, estava falando sobre o meu desempenho... por que eu não deveria levar isso a sério?

Nash parecia constrangido. Ela estava certa.

- Foi por isso que você... – pareceu querer escolher bem as palavras – Foi por isso que você desmaiou?

- Não. – Kat sequer hesitou em responder – Desmaiei porque minha pressão estava muito baixa. O meu corpo não acompanhou o ritmo que eu me impus, eu simplesmente não estava acostumada. E agora isso não vai ser mais problema.

- Mas, você passou mal depois de ouvir isso.

- Olha... se a sua preocupação é essa, não tem motivos pra esquentar a cabeça. Não teve nada a ver com o seu comentário, por duas razões. Primeira: não foi a primeira vez que ouvi isso e nem será a última. E segundo: a verdade não ofende.

Kat parecia muito tranqüila, sem tons melodramáticos, ou camuflados. Isso deveria tornar a situação menos penosa mas ainda assim ele se viu na obrigação de lhe dizer qualquer coisa.

- Todos nós já ouvimos isso pelo menos uma vez. Todos mesmo, qualquer um que está aqui.

- Eu sei, mas não foram uma ou duas vezes. Foram várias, e desde o meu primeiro dia. A única coisa que você fez, querendo ou não, foi definir a minha situação de uma forma transparente.

- Coisas que são ditas muitas vezes acabam virando verdade... inclusive mentiras.

Foi a vez de Kat se ver em posição de constrangimento. Estavam em um terreno perigoso, mas do qual já parecia conhecer todos os percursos. Era o início de todas aquelas conversas de auto-ajuda... o tipo de coisa que mais odiava.

- Ei! Eu já disse que não estou chateada. Não precisa passar pro discurso de auto ajuda. Já conheço todos eles de cor.

- Não se preocupe, não é a minha intenção. Não sei se é o seu caso, mas eu odeio esse tipo de discurso. Eu só não quero que uma frase mal dita endosse algo que não é verdade.

Ele parecia realmente preocupado. Uma faceta que não imaginava para Oliver Nash. Sabia qual a razão daquilo: ele se sentia culpado e queria se corrigir. De qualquer modo deixou-o falar, mesmo que não acreditasse naquelas palavras. Além disso, ouvir sua voz era uma experiência rara, especialmente quando as palavras eram delicadas. Ouviu-o com atenção.

Quando Kat voltou para o alojamento, estava cansada. Ultrapassara o tempo normal de seus ensaios, nem estava preocupada em não fazer barulho, mas de uma forma ou outra ainda buscava a leveza e a suavidade dos gestos: uma das coisas que mais precisava.

- Demorou hoje, hein... – provocou Jenny, ao vê-la abrir a porta.

- Bom dia pra você também, Jen.

- Bom dia... dessa vez o ensaio durou... achei que não fosse voltar hoje.

- Exagerada...

Apenas uma reclamação burocrática. Jenny já estava acostumada e até desistido de reclamar sobre o tempo que demoravam aqueles ensaios. Limitava-se às alfinetadas típicas. Kat normalmente não dava ouvidos a suas reclamações, então provocá-la parecia ser o melhor caminho: sempre dava resultados, mesmo que fossem palavras malcriadas.

- Pelo jeito isso rendeu.

- Rendeu sim – entrou no pequeno banheiro, tirou as roupas rapidamente e entrou embaixo do chuveiro: o suor a incomodava. – Vou cair na cama depois disso.

E foi realmente assim. Uma ducha e um descanso ao qual já não estava mais acostumada e que, por incrível que parecesse não lhe trouxe culpa. Desde aquele desmaio, estava mais preocupada em saber quais eram os seus limites, e naquele dia soube que o ultrapassara. Por mais que ainda quisesse continuar, movida por algo que mais parecia consciência pesada., resolveu obedecer as ordens de seu corpo e aos conselhos de seu partner. Oliver Nash olhou para o relógio e foi implacável na hora de terminar. “Se não descansar, isso tudo não vai adiantar nada.”, disse taxativo. Assim, deitou-se com os pés para o alto, tratando de não pensar nas horas que iria desperdiçar naquilo que lhe parecia uma perda de tempo.

- Ué? Descansando? Que milagre é esse?

- Só to tentando pôr um conselho em prática.

- Conselho? Alguém te aconselhou a descansar e você ouviu? Quem foi o santo? Vou acender uma vela por essa pessoa!

Kat apenas riu, sem responder. Era uma piada da qual não cabia resposta. Foi bom não ter essa obrigação, pois não queria ter de dizer que foi Oliver Nash. Tinha medo de falar no seu nome e quebrar essa atmosfera nova que houve entre eles.

Sim, tinham ensaiado juntos. Ele a ajudara, ficou ali o tempo todo. Seu jeito não fora a conversa de auto ajuda. Partiram para a prática, tomando o papel de professor sem que ela pudesse se dar conta.

-“O que está ensaiando?”

-“O exercício de uma das aulas” – respondeu, meio que despistando.

-“Pelo jeito não está te deixando muito contente.”

-“Não é algo que me desperta boas lembranças.”

-“Lembranças? Esquece isso... tira isso da cabeça. Não vai fazer diferença”

-“Queria que fosse tão fácil”

- “Na realidade é, nós que fazemos a coisa parecer pior. Vem, vamos partir para a prática.”

Durante horas ele a ajudara. Descobriu-o como um professor exigente, mas sem a truculência como praticamente todos que conhecera. Uma boa surpresa encontrar algo além da mudez e grosseria em Nash. Novas facetas, porque afinal as pessoas não eram uma coisa só. Era bom saber disso: dava-lhe esperanças para o dia seguinte.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sem Ensaios para a Vida" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.