Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 12
Não toque em mim, sua imbecil!


Notas iniciais do capítulo

Um momento de grosseria.



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Uma semana se passou, e depois de ensaios exaustivos veio o adorado e merecido descanso.

Para Kat, descanso era apenas uma palavra que, naquele lugar, não tinha significado algum. Era apenas mais um dia pela frente, onde devia se dedicar mais. Sabia que se parasse para descansar, outra estaria ensaiando e que esta estaria a sua frente. Além do mais, seus problemas estavam longe de serem resolvidos: Nash não falava nada, deixando isso a cargo de sua fisionomia fria. Sequer demonstrava qualquer coisa mesmo depois da notícia do desmaio. Ainda era parte das sobras: uma gorda de pés ruins. Apesar disso, por mais que a realidade se mostrasse mais explícita a cada dia, alguma coisa dentro de si lhe dizia para continuar tentando. Não que confiasse tanto assim na sua intuição, mas praticar faria com que a sensação de dias perdidos diminuísse.

Saía do quarto na ponta dos pés para não acordar Jenny. Com o aparelho de som na mão e com a bolsa no ombro, atravessou os longos corredores da academia.

Enquanto procurava um lugar pro seu ensaio ouviu um barulho alto. A medida que avançava começou a ouvir palavrões em voz masculina. Avançou rapidamente olhando cada um dos salões a procura do dono daquela voz, e não demorou muito para descobrir quem era.

-- Nash?

Ele estava sentado no chão, segurando o tornozelo, resmungando o que mais pareciam ser palavrões. Ele olhou para a porta ao ser chamado. Viu-a entrar rápido, deixando bolsa e som do outro lado e sentando bem a sua frente.

-- O que houve?

Não houve resposta audível. Apenas levantou um pouco a perna da calça, deixando que ela visse o tornozelo inchado.

-- Você caiu?

Apenas um meneio para indicar que sim.

-- Ele estalou?

A resposta foi a mesma.

-- Certo, espera um pouco... – ela levantou um pouco mais a perna da calça dele.

-- Ei?! O que vai fazer, sua louca?

Ignorou que aquelas eram as primeiras palavras que lhe foram dirigidas, e que estas eram malcriadas. Concentrada, começou a massagear o tornozelo de seu partner fingindo não ouvir seus protestos. Quando ergueu os olhos para vê-lo, percebeu-o sem feições retorcidas de dor, mas com uma expressão que não gostou de ver: cólera.

-- Meu pé... eu não... sua imbecil! Você acabou com o meu pé!

Assustada com aquela reação, soltou-o imediatamente. Sentiu os olhos se arregalarem: sabia porque era uma reação natural de sua parte. Não gostava porque era o tipo de coisa que a fazia parecer covarde... mas naquele momento foi o que menos importou. Estava assustada demais com aquele rosto vermelho de cólera, olhos arregalados e acesos para se importar com os próprios reflexos.

-- Não toque em mim, sua imbecil!

Irritada, assustada e com vontade de chorar, simplesmente levantou-se como num pulo, afastando-se de seu parceiro como quem procura fugir de um monstro: sem lhe dar as costas, olhando-o como se pudesse atacá-la quando menos esperasse.

-- Sai daqui! Sai!

Não foi preciso falar duas vezes: Kat saiu dali, deixando para trás sua bolsa e o som, atravessando o corredor a passos largos, quase correndo.

-- Ei, Kat?

Não ouviu quando fora chamada, então acabou dando um “encontrão” em alguém. Sabia que provavelmente tinha sido em um homem, mas não sabia quem era.

-- Kat, o que foi? -- era Gabriel, com bolsa no ombro e a mesma expressão serena de sempre, como se tivesse caído do céu em uma hora oportuna.

-- Nada. – fez menção de se afastar, não queria que ele a visse daquele jeito. Sua vontade era sumir.

Sumir era sua vontade. Sumir da frente dele, mas Gabriel não deixou. Ela já ia saindo mas ele a impediu, segurando-lhe os ombros, delicadamente.

-- Como “nada”? Dá pra ver que aconteceu alguma coisa, Kat. Por favor, diz o que foi. Talvez eu possa ajudar.

-- Se quer mesmo ajudar leva o Nash pra enfermaria. Ele está naquele salão ali.

-- Kat... – ainda tentou mais uma vez.

-- Por favor, Gabriel. Se quer me ajudar, não pergunta nada agora... só faz o que eu pedi, por favor.

Ela olhou-o bem nos olhos antes de se afastar. Olhos que pareceram lhe implorar que atendesse aquele pedido mas que não esperava nada. Restou a Gabriel deixá-la ir e atender ao pedido.

Kat não demorou a chegar aos alojamentos. Embalada pelos passos largos e furiosos logo chegou ao seu quarto.

-- Kat, é você? – perguntou Jenny, que estava distraída – Onde você...? — ao ver seu rosto, o tom logo mudou – O que houve?

-- Não houve nada.

-- Como “nada”?

-- Nada, simplesmente nada.

-- Não é o que parece.

-- Mas é o que é. Já disse que não aconteceu nada. Será que podemos encerrar o assunto? – perguntou, impaciente, como quem faz uma pergunta mas só aceita uma resposta.

Jenny queria dizer “não”, mas sabia que não era uma boa hora. Rosto vermelho, voz alterada e olhos acesos, completamente alertas. Sabia que provavelmente ela não tivera uma boa manhã e que a insistência não seria uma boa tática.

-- Tudo bem, como quiser.

-- Ótimo. – disse, fingindo não perceber o tom de mágoa proposital da voz de Jenny.

Passou a mão em seu discman e jogou-se na cama, colocando os fones no ouvido, mergulhando em suas mágoas e tentando engolir mais uma ao som de mais uma daquelas sinfonias tocadas por uma orquestra furiosa.

Foi assim por pouco mais que meia hora. O turbilhão durou até baterem à porta. Foi Jenny quem atendeu pois Kat não ouviu, só percebendo algo após ser cutucada pela amiga.

-- É pra você. – disse-lhe, apontando a porta sem dizer quem era.

Levantou-se de má vontade, indo até a porta e deparando-se com Gabriel.

-- Entrega a domicílio. – disse ele, antes que pudesse ser questionado, mostrando-lhe sua bolsa e o som. – Você esqueceu no salão.

-- Obrigada... – pegou as coisas de sua mão, colocando-as no chão em um canto qualquer. – Não precisava ter tido esse trabalho...

-- Não foi trabalho. Eu queria mesmo te ver. Quer dar uma volta?

-- Não estou nos meus melhores dias, Gabriel. Não serei uma boa companhia hoje.

-- Uma voltinha pode te animar. – disse, disposto a insistir mesmo sem saber por quanto tempo poderia conseguir ser firme. O silêncio dela não parecia ser animador – E então?

-- Espero que esteja certo disso. – respondeu após perceber uma piscadela da parte de Jenny, aparentemente já esquecida de fingir-se magoada.

-- Isso quer dizer “sim”?

-- É, antes que eu me arrependa.

Saíram. Atravessaram o corredor juntos e em silêncio. Aquele não parecia ser o jeito mais adequado de começar uma conversa.

-- Pra onde estamos indo? – ela perguntou.

-- Não sei, é você quem vai decidir. Estou te seguindo.

-- Então não estamos indo para lugar nenhum. Eu também estou te seguindo.

Riram. Já estavam fora do prédio, mas ainda dentro dos muros da academia.

-- E como vamos resolver esse impasse? – Kat insistiu.

-- Para onde quer ir?

-- Qualquer lugar... se for fora daqui, melhor.

-- Acho que já sei onde podemos ir.

Incontáveis passos dados em quinze minutos levaram- os até um parque. Um lugar pequeno, no meio do concreto, com árvores, grama, água e pessoas. Sem flores ou sol para aquecer um pouco, mas ainda assim capaz de fazer com que Kat se sentisse em Alameda dos Anjos. Uma pequena lembrança que fez brotar um pequeno sorriso.

-- Puxa... eu não sabia desse lugar...

-- Nunca veio aqui?

-- Não... na realidade eu não saio muito. Só pra aqueles lugares “ponto-chave”, perto da própria academia... pelo jeito não é o seu caso.

-- Eu costumo sair um pouco mais.

-- Pouco mais? – indicou um banco e ambos sentaram.

-- Ta bom... bem mais, se for me comparar a você. É que nos dias de folga eu costumo querer ficar longe de lá... mas qual o problema? Não gosta de sair?

-- Não é que eu não goste. Eu costumava sair mais... só que foi no início, logo que cheguei. Aí o tempo foi passando... vi que não podia mais perder tempo.

-- Sair não é perda de tempo.

-- Pra você, não. Pode se dar a esses luxos... eles gostam de você.

-- Eles quem?

-- Os professores.

-- Não estou entendendo.

-- Você tem talento. Pelo que sei é um dos melhores desse ano... nome garantido no workshop.

-- Há quem diga isso. – deu de ombros, como se não achasse que era verdade, como se rejeitasse um rótulo. – Mas por que diz isso? Não é um luxo, Kat... é uma válvula de escape... e que está ao alcance de todos.

Olhou para ele e sua expressão serena. Apesar de conhecê-lo pouco sentia que podia confiar, embora temesse a capacidade de julgamento dele, ou que não fosse capaz de entender seus problemas. Também não queria impor a ele uma obrigação de apoio, palavras de pena, conversas de auto ajuda... então era melhor não falar nada.

-- Talvez seja. – desconversou – E Nash?

-- Oliver Nash... – repetiu o nome com tom insatisfeito, mas não impaciente – Eu fiz o que pediu... levei pra enfermaria.

-- E o pé dele?

-- Nada grave. Só um mau-jeito... daqueles que incham e dói e todo mundo acha que é uma torção ou uma hiper fratura. Um dia com gelo e repouso e está novinho em folha... de praxe.

-- Ótimo. – disse, parecendo aliviada.

Seguiram-se poucos segundos de silêncio. Ambos pareciam calcular as palavras.

-- Você estava com ele quando aconteceu?

-- Não... quando cheguei ele já estava no chão.

-- Foi você quem fez aquilo no pé dele?

-- Aquilo o quê?

-- Primeiros socorros. Foi você?

-- Foi – pareceu envergonhada ao admitir. – Foi uma idiotice.

-- Não foi o que o ortopedista disse. Ele falou que quem passou ali antes dele fez um bom trabalho. – olhou para ela – Poderia ter sido pior se não tivesse feito aquilo. Só espero que o próprio Nash entenda... tava de um jeito... – fez uma pausa, enfatizando bem o que disse e dando-lhe tempo para perceber sua pergunta. – Ele te disse alguma coisa?

-- É, disse... o que foi um milagre, porque nunca tinha falado comigo.

-- Kat, você entendeu...

-- Entendi sim – deu um sorrisinho sem graça – Ele não é a pessoa mais educada do mundo... mas ele tinha razão, foi uma idiotice.

-- Não, ele que é um idiota. Você o ajudou. Não havia razão pra te ofender. – estava irritado ao falar nisso.

-- Deixa isso pra lá. Algumas pessoas não querem ser ajudadas. Essas coisas existem, não importa. – balançou a cabeça e levantou as mãos como se não importasse e desse o episódio por encerrado. – Ele não foi o primeiro e nem será a última pessoa a fazer isso.

Gabriel concordou, fingindo acreditar embora soubesse ou imaginasse o tamanho das ofensas disparadas contra ela.

-- E como você fez aquilo? Quer dizer, o tornozelo dele melhorar... onde aprendeu?

-- Ah, sim... aquilo – o tom pareceu enfadonho, mas um sorrisinho sem graça dava a impressão contrária, fazendo com que Gabriel não soubesse o que pensar. – O meu ex namorado praticava artes marciais... ele e os meus amigos... esse tipo de acidente acontece muito. Um dia aconteceu comigo, e Tommy acabou me ensinando.

-- Tommy?

-- É. – resolveu continuar rápido para tentar evitar repetir o nome dele – Já que eu dançava ele achou que poderia ser útil... e foi.

-- Foi mesmo.

Kat poderia ter continuado, dizendo que seria útil se aprendesse antes já que como atleta também era bastante vulnerável a esse tipo de lesão, mas preferiu frear aquele impulso de “falar”. Não queria suscitar mais perguntas, pelo menos nesse dia. Isso fez com que o silêncio viesse, causando um momento que poderia ser constrangedor. Gabriel achou que talvez fosse o assunto... ex namorados costumavam ser problema... e queria dizer-lhe alguma coisa. Não queria o silêncio.

-- Quer dizer que eu atrapalhei o seu ensaio de novo, hein? – ela disse, de repente, na mesma tentativa de evitar o vazio.

-- Eu nem tinha começado... além do mais se eu quisesse arranjar um culpado seria o Nash.

-- Se eu tivesse levado ele pra enfermaria não teria te incomodado.

-- Com ele dando ataque e te ofendendo!? Deveria ter largado ele lá mesmo e deixado ele se virar sozinho... quem sabe assim ele aprenderia a ser gente? – gesticulou, indignado.

-- Não consigo ser tão má assim... por mais que ele mereça, está acima das minhas forças. Não sei se consigo ser de outro jeito... sei que preciso mudar isso mas... não dá.

-- Você não tem que ouvir ofensas de ninguém, nem dele, da rainha, do papa ou de qualquer outro.

-- E como tem tanta certeza de que Nash me ofendeu?

-- O jeito que estava quando nos esbarramos... você parecia estar se segurando para não explodir... e você mesma disse que ele não foi educado. – pausa – O que ele te falou?

-- Não convém ficar falando disso, Gabriel. É passado, e falar nisso não vai mudar nada. Entra por um ouvido, sai pelo outro. Aquilo foi apenas de momento.

-- Fácil assim? – perguntou, como se duvidasse.

-- Fácil assim.

Ale do mais, a verdade não é ofensa” pensou, resignada. Sabia que talvez não tivesse sido muito convincente ao dizer que era simples, que não tinha se importado. Gabriel tinha raciocínio bastante para saber que não era tão “cabeça fria” quanto queria parecer, mas fingia ter acreditado. E Kat era grata por isso. Sorriu para ele como se quisesse agradecer e ele retribuiu, também sorrindo e colocando sua mão sobre a dela no que mais pareceu ser um sinal de apoio ou uma demonstração de amizade. Ela também não disse nada, apenas olhou-o nos olhos antes de se virarem e olharem para a frente, distraindo-se com a visão de algumas crianças brincando de bola.


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Notas finais do capítulo

Não preciso nem pedir, né...?



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