Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 1
Sonhos Ameaçados




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-- Um, dois, três, quatro...

Um salão amplo, muito claro, com muitos espelhos. Todos eles refletiam a mesma imagem, de ângulos diferentes, irritantemente coreografado: várias garotas usando as mesmas roupas, das mesmas cores, executando os mesmos movimentos ao som da mesma voz metálica e estridente.

-- ... cinco, seis, sete, oito... um, dois...

Naquele momento não havia música. Tudo que precisavam ouvir era o ritmo daquela contagem incessante. Bastava ouvir aquilo para que começassem a coreografia.

--... três, quatro, cinco, seis...

Não precisavam pensar para fazer aquilo. Parecia ser apenas instintivo, como se já estivessem programadas para fazer.

-- ... sete, oito... um, dois, três...

Não havia nem mesmo o som da respiração. Apenas aquela voz, aquela contagem, aqueles movimentos. Nenhum espaço para individualidade, ou expressão própria. Talvez nem mesmo os rostos pudessem ser diferentes naquele momento.

--... quatro, cinco, seis, sete, oito... posição!

Posição final. Fim da coreografia.

-- Pronto, garotas... – a professora bateu palmas, indicando que tinham terminado. – Por hoje, chega.

Todas saíram de suas posições, em um momento onde cada uma pode demonstrar alguma individualidade, indo em direção ao canto do grande salão onde estavam suas bolsas, vestindo roupas mais adequadas para mudarem de ambiente.

-- Anne, precisa melhorar o seu eixo... Lynn, observe suas costas... Katherine, tem que melhorar a sua extensão. Nós já conversamos sobre isso.

Silenciosamente a jovem loira e de aparência cansada olhou para sua professora e concordou com a cabeça. Ao percebe-la afstando-se, revirou os olhos claros e deu um suspiro: odiava aquela voz cantada e estridente, aquele sotaque francês irritantemente forçado e toda a falta de autonomia que aquele lugar representava.

Antes de sair, fez um rápido alongamento nas barras. Queria sair dali, embora achasse de bom tom disfarçar seu desejo, embora soubesse que não era a única. Queria tomar um banho, descansar um pouco, mas sabia que não deveria. Não tinha tempo pra isso.

Colocou uma calça por cima daquela roupa de dança e saiu da sala. Ao sair, enfrentou o grande fluxo de pessoas no corredor. Não demorou a conseguir sair de lá, mas sabia que enfrentaria algo semelhante quando chegasse na área dos alojamentos. Respirou fundo antes de enfrentar o que mais parecia uma correnteza.

-- Kat! Kat! – uma voz feminina a chamou em voz alta.

-- Onde?! – gritou, tentando se localizar e encontrar quem a tinha chamado.

-- Aqui! – viu uma garota morena pulando e acenando exageradamente, bem ao estilo de Jenny Hunter.

Kat sorriu e enfrentou novamente as pessoas até encontra-la.

-- Onde você estava? Te procurei por toda a parte! Ele é gatinho?

-- Hã? Ele quem?

-- O cara com quem você estava se pegando em algum canto por aí...

-- Mas que bobagem, Jenny! De onde tirou uma idéia dessas?

-- Ah, você não saiu junto comigo ou com as outras meninas...

-- Desculpa, Jenny... eu estava na sala. Achei melhor fazer um alongamento nas barras antes de sair e...

-- A Dupré veio falar com você, não foi?

-- É... – o tom tornou-se desanimado.

-- O que ela disse?

-- Nada.

-- Nada? Como nada? – chegaram a um corredor mais calmo. – Se ela te chamou foi pra falar de alguma coisa.

-- Nada inédito.

-- Isso muda um pouco o panorama. – disse, abrindo a porta , entrando e fechando em seguida – Mas então fala.

-- Ah, você não desiste mesmo... – tentou se animar – Preciso melhorar minha extensão, minha técnica...

-- Ah ,não... pára, Kat. Se fosse desse jeito nem estaria aqui. Nada que um descanso não resolva.

-- Meu problema só dá pra resolver com ensaio e trabalho duro... além de uma dieta.

-- Ensaio ajuda. Mas dieta? Se não se cuidar direito vai acabar desmaiando no meio de um exercício de barras!

Kat riu em resposta a aquela provocação, sentando-se na parte de baixo da beliche e tirando as sapatilhas, deixando a mostra seus pés feridos. Tão feridos que Kat gemeu pelo simples contato com o ar.

-- Puxa... isso tá ficando a cada dia pior .

-- Precisa colocar os pés pro alto... descansar... sabe que isso pode ficar pior mesmo.

-- Acho que vou seguir seu conselho. – respondeu, tirando os grampos que prendiam seus cabelos num rígido coque sentindo a cabeça mais leve..

-- Sei... você precisa mesmo é pegar mais leve... exigir menos de si mesma...

-- Nem pensar! Eu preciso ensaiar... corrigir esses erros... não estou dançando bem...

-- Não pode ficar levando tudo o que te dizem a ferro e fogo.

-- Pra você é fácil, Jenny... você tem extensão... corpo certo... pés decentes...

-- Nãããããoooo... não entra nessa paranóia. Pára com isso. Por que não toma um banho? Isso vai melhorar suas idéias.

-- Ótima idéia... – levantou-se, gemendo pelos pés machucados.

-- Vê se não demora. Eu também pretendo tomar banho antes de almoçar.

-- Almoçar? Eu nem estou com fome.

-- Corta essa, Kat. Nós comemos exatamente no mesmo horário, fizemos os mesmos exercícios e estou morrendo de fome! Não é possível!

-- Preciso emagrecer.

-- Não deixa eles te encucarem. Precisa de energia pra dançar, e isso só com alimentação e descanso.

-- Veremos.

Quando desceram para o almoço, o lugar estava lotado, como sempre. Chegar mais tarde poderia significar sobras, mas Kat não estava se importando com isso: sua mente estava ocupada em cálculos sobre as prováveis calorias que iria ingerir.

Sentaram-se juntas e começaram a comer. Kat dava garfadas lentas e sem vontade.

-- Ih... sua cabeça tá longe...

-- Deu pra perceber?

-- Não é por causa do que te disseram, é?

-- Não, nada a ver. Assuntos antigos e que deveriam estar bem longe daqui.

-- Ah, homem é uma tristeza... tira a fome e a concentração de qualquer um...

-- Mas eu nem deveria mais estar pensando nisso. Já passou muito tempo...

-- Desse jeito é difícil. Ainda mais no seu caso.

Kat suspirou. Não dava pra ignorar: Tommy continuava sendo um assunto mal resolvido.

-- Preciso dar um fim nesse assunto.

-- Desse jeito vai ser meio difícil.

-- Como assim “desse jeito”? Estou a quilômetros de distância, ensaiando tanto que mal tenho tempo pra pensar.

-- O que adianta se ainda pensa? – fez uma pausa – Esse negócio de ficar longe e se dedicar a qualquer outra coisa é o método universal, mas que não vai funcionar se ainda ficar pensando nele.

-- Então o que me sugere, sabichona? – assumiu um tom irônico.

-- Bem, tem que conhecer pessoas novas...

-- Já fiz isso.

-- As pessoas daqui de dentro não contam, espertinha. Estou falando em ir para algum lugar... dar uma arejada na cabeça... conhecer uns carinhas...

-- Você só pensa nisso...

-- Não mesmo. É que já conhecemos os daqui, passamos o maior tempão com eles... precisamos de novos ares! Pelo amor de Deus!

-- Aff... bem que eu gostaria, mas preciso ensaiar mais. Minha extensão é péssima, preciso treinar isso.

-- Nem pensar! Com os pés desse jeito mal vai conseguir fazer uma ponta. – pausa – Nós ainda vamos ter um dia cheio: cheio de ensaio, cheio de espelhos... cheios de contagem... acho que se continuar desse jeito não vou mais saber que número vem depois do oito.

Riram e reviraram os olhos.

-- Vivemos em um mundo a parte aqui dentro, Kat. Por isso falo em conhecer gente nova. Estamos a tanto tempo aqui que vamos acabar desaprendendo... precisamos ver outras pessoas, que tenham outros assuntos e outros problemas. – riu – Já ensaiamos demais com as aulas... quando estamos no alojamento, ou em qualquer outro lugar diferente temos de pensar em relaxar.

-- Mesmo que seja por pouquíssimo tempo, como esse intervalo?

-- Principalmente nele. Seus pés estão num estado lastimável. Nada de ensaios não programados. Eu não vou deixar.

-- Bem, eu nem sei se vão agüentar uma aula normal... e você sabe como a Dechamps é. Vai fazer uma cara terrível se eu parar.

-- Não sofre por antecipação. E agora come direito porque já está me deixando nervosa com essa lenga-lenga!

Noite. Alojamentos.

Jenny dormia. Enquanto isso Kat permanecia acordada, olhando para um canto qualquer na parede, pensando na vida... ou naquela sucessão de atos coreografados que aquilo tinha se tornado, transformando-a em alguém que não conhecia.

“—Precisa melhorar a sua extensão...”

“—Aproveite e passe na nutricionista nesse fim de semana. Ela pode te dar umas dicas...”

“—Você nunca vai dançar com leveza se tiver essa bola de boliche no estômago...”

“—Você não tem técnica...”

Ninguém tinha mentido quando disseram que seria difícil. Mas difícil era simplesmente passar pelos testes para poder estar ali. Manter-se lá era pior: sobreviver era quase impossível.

Nem dava pra acreditar: no início vira aquele testa como uma oportunidade de carreira... depois em uma forma de esquecer Tommy... mas agora tudo aquilo parecia distante demais. Não conseguira esquecer dele, e as chances de viver da dança eram praticamente nulas. Professores diziam, em tom de conselho, que sua formação era muito aquém do esperado. Outras alunas eram bem mais diretas, afirmando que jamais seria uma bailarina com seus “pés ruins”, e que seu par precisaria de um guindaste para carrega-la.

Será que estava perdendo tempo ali?

“Não.” Jenny insistia em dizer quando ouvia-a falar nisso. “Elas são invejosas, os professores são formais. Se não tivesse qualidades não estaria aqui.”

Aquela era uma excelente pergunta. Por que estava lá então?

Não conseguia concretizar nada. Nunca conseguiria construir ou ter algo só seu. Era trágico pensar que tudo, ou praticamente tudo em sua vida fora as memórias de infância eram de segunda mão, ou pertencera antes a outras pessoas. As coisas que tentava construir por si mesma não prometiam nada além de estresse ou tristeza.

Sentou-se, tomando cuidado para não bater a cabeça na parte de cima da beliche. Detestaria acordar a amiga para acabar ouvindo um famoso sermão sobre auto-estima. O lugar estava pouco iluminado, mas suficiente para conseguir situar-se. Tocou seus pés calejados e feridos: obra de muitas horas de ensaio, sem descanso. Suor e lágrimas... pena que o esforço não estava rendendo frutos.

“Preciso dormir”, pensou. Tinha um dia cheio a sua espera, com aulas, expectativas...não podia mais cometer erros. Erros eram para amadoras... e não era mais uma amadora. Precisava de concentração ainda mais por causa da professora das aulas seguintes: Dechamps era rigorosa, e a que mais lhe chamava a atenção.

“Não posso errar mais... preciso dormir... preciso dormir...”


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Notas finais do capítulo

Reviews (se quiserem). PLEASEEE!!!



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