Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 17
Desejo, Dia 14: Enlace




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Desejo, Dia 14: Enlace



* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *



    Parar? Não, ele não podia parar. Os pulmões já ardiam e os pés latejavam, mas parar era a última coisa em que poderia pensar. Constatara há alguns quarteirões que não era seguido, todavia não estava certo se deveria confiar plenamente em seus sentidos ou na misericórdia de seus inimigos. Só pararia para recuperar o fôlego e botar os pensamentos no lugar quando estivesse seguro. E, tendo sido eliminado seu servo, essa era uma condição que não mais alcançaria nas ruas da cidade.
    A subida tornava o caminho penoso, exigindo mais de seu corpo já exausto. A corrida se dera sem problemas pela Avenida Alonso y Alonso, terreno plano, com exceção de um carro que quase o atropelara quando atravessara a via – mas a elevação fustigava-o mais do que desejaria. As ruas daquele bairro, para piorar, encontravam-se mais quietas e vazias que o normal, mesmo já sendo tarde da noite. Se ao menos houvesse pessoas pelo trajeto, se sentiria mais seguro, pois isso significaria testemunhas. Entretanto, sozinho daquela maneira, era alvo fácil e oportuno para eventuais mestres que quisessem se aproveitar de sua humilhante situação...
    E só de lembrar, mais lágrimas lhe inundavam os olhos...

    Malditos, aqueles malditos!

    A perspectiva de segurança acentuou-se em sua mente quando avistou a torre da Igreja Santa Rita no topo da colina, iluminada e proeminente sobre os telhados das construções vizinhas. Sempre aberta para os mestres derrotados, zelando por suas vidas. Assim que atravessasse suas portas e se apresentasse a Ravena Piemonte, ninguém mais poderia tocá-lo. Permaneceria nela abrigado até o término da guerra, quando poderia retornar à Europa e prosseguir com seus estudos para, quem sabe futuramente, participar de novo de um dos rituais de invocação do Graal ao redor do mundo, mais experiente e com um servo mais capaz que o covarde Odin... Talvez até tentasse a sorte em Fuyuki. Afinal, o grande Lorde El-Melloi II, quando ainda era simplesmente Waver Velvet, também passara por situações constrangedoras antes de se tornar um mago reconhecido, não?
    Logo restava apenas um quarteirão para que chegasse ao santuário. A rua estava até bem-iluminada, os fachos brancos dos postes indicando o término do caminho até a salvação. Andando o mais rápido que suas pernas doloridas e sapatos apertados permitiam, Régis passou por um bar fechado, uma ou duas casas, uma loja com a vitrine acesa...
    Até que, subitamente, a lâmpada de um dos postes à sua frente oscilou, chamando sua atenção.
    O rapaz se deteve, gélido. Quis correr, sumir dali, mas suas articulações haviam se enrijecido como pedra. Quando a lâmpada voltou a funcionar, segundos mais tarde, o fugitivo viu aos pés do poste duas silhuetas que não se encontravam mesmo ali antes, imaginando se não teriam viajado até ali na própria escuridão. Para seu infortúnio, logo reconheceu os dois indivíduos: uma garota loira de hábito preto e branco, fitando-o com aterradoras pupilas roxas, e um cavaleiro medieval barbado de armadura dourada e espada brilhante.
    Isabel Percival e seu servo Saber, Carlos Magno. De todos os inimigos que poderiam surgir ali, para impedi-lo de chegar à igreja, o destino selecionara justo os dois piores.
    - Aonde pensa que vai, senhor representante? – a jovem sibilou com uma voz de criança possuída por demônios.
    Régis tentou se mostrar forte, porém não conseguiu deixar de gaguejar:
    - S-saiam do meu caminho! Entrarei naquela igreja de qualquer maneira! Se tentarem me impedir, sentirão minha reação!
    - Oh, eu e Charlemagne gostaríamos muito de conferir suas habilidades mágicas, representante. Afinal, um enviado da Associação para me deter deve ser muito bom no que faz, não é mesmo?
    O rapaz engoliu em seco. A ironia no tom de Isabel era mordaz.
    Bem, que assim fosse. Se eles se recusavam a cooperar, então prosseguiria à força.
    Abrindo uma mão e concentrando-se por um momento, Régis murmurou baixinho as palavras necessárias e conjurou uma esfera de energia. Para seu receio, os oponentes sequer reagiram. Apenas fitavam-no calados com um incômodo ar de supremacia.
    Ele hesitou por um ou dois segundos, mas acabou lançando o orbe mágico na direção de Isabel...
    Que o parou a poucos centímetros de si, usando apenas o dedo indicador da mão direita. Mantendo-o esticado, conseguiu com ele manipular a esfera como quis, inclusive fazendo-a flutuar ao redor e por fim deixando-a a pairar girando pouco acima de sua unha, como uma bola de basquete.
    - Se é isso que consegue fazer, eu acharia melhor criar alguns fogos de artifício – sorriu a freira. – Seria mais proveitoso.
    Régis cerrou os punhos e exclamou, suando:
    - Saia do meu caminho, verme!
    A maga franziu as sobrancelhas ameaçadoramente diante do insulto, seus sinistros olhos brilhando de ódio. Saber levou a mão ao cabo da espada, mas a mestre o conteve com um leve gesto. Caminhando alguns passos até o oponente, sem que este conseguisse recuar, ela indagou, fria:
    - Você me chamou de verme?
    - E-eu...
    Usando a mesma mão, Isabel ainda controlava o orbe que lhe fora lançado pelo rapaz. Balançando o dedo indicador, fez com que mudasse gradualmente de cor, do azul ao vermelho, enquanto sussurrava em latim palavras que arrepiaram todo o corpo de Régis:
    - Sed minor fit vermis, vermis facta minores fiant!
    E, completando a última, impeliu a esfera em sua direção.
    Quando o projétil mágico estava prestes a atingi-lo, expandiu-se como uma nuvem, moldando-se em seguida numa forma que lembrava uma rede ou um casulo, envolvendo-o e fazendo-o preso. Os músculos continuavam sem responder, e começou a sentir todo o corpo formigar. A seguir, uma repentina tontura, como se o mundo se movimentasse ao seu redor. Dominado por completo estranhamento, Régis, com a cabeça voltada para o céu, viu o firmamento aparentar ficar mais distante... enquanto uma imensa sombra, sob a claridade do poste, avançava sobre si. Caiu sentado ao término do misterioso evento, tornando a olhar para o alto... e seu coração por pouco não parando de bater.
    Tampando a lua e as estrelas, o mago viu o rosto loiro sardento de Isabel Percival, fixo num meio-sorriso diabólico... com a diferença de estar enorme. A freira, tão alta quanto um prédio, encontrava-se curvada sobre o oponente, examinando-o de perto como uma criança travessa a observar insetos. Arfando, o mestre de Rider teve de tocar uma pedrinha no asfalto – agora tão grande quanto sua cabeça – para ter certeza que Isabel o encolhera por magia. E certamente não terminara o que pretendia.
    - Por favor! – ele bradou deitado no chão, sentindo-se ainda mais humilhado ao perceber que sua voz se tornara incrivelmente fina, devido às reduzidas cordas vocais. – Você não precisa me matar! Meu servo já foi derrotado! Sou inútil na guerra, não represento ameaça!
    - Terá de me perdoar, vermezinho, mas o Graal exige o máximo de sangue possível! – a jovem riu sádica. – Também tomará parte no sacrifício oferecido. Ainda que agora forneça bem menos sangue do que forneceria antes...
    E, sem que Régis pudesse voltar a suplicar, a sola de um dos sapatos da freira desceu sobre si.


* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *


    Hipólita foi deitada com o máximo cuidado sobre as tábuas do sótão depois de ser retirada do colo de Petruglia. O mestre de Archer providenciou um travesseiro para a cabeça, enquanto a maga há pouco terminara o improvisado curativo envolvendo o ferimento causado por Gungnir, as ataduras brancas já quase todas manchadas de sangue. Jorge mantinha-se no chão sentado ao lado da serva, segurando uma de suas mãos. Não a abandonaria por motivo algum, e aparentava realmente estar disposto a tudo para salvá-la.
    - OK, isto deve conter um pouco o sangramento, mas está bem longe de curá-la... – murmurou Daniela, mãos e boa parte da roupa sujas de vermelho.
    - O que temos de fazer para curá-la? – insistiu nervoso o estudante, já que os demais vinham por algum motivo relutando em lhe responder.
    Petruglia trocou um olhar sério com o mestre de Robin, só deixando Jorge mais confuso. Suspirou. Em seguida, aparentou tomar coragem para explicar:
    - Como sabe, você não é um mago. Está lutando nesta guerra praticamente como uma pessoa comum dotada de um servo. Aquela demonstração de fúria na batalha contra Caster pode ter indicado possuir em seu íntimo algo mais; e o fato de possuir um catalisador que permitiu a invocação de Hipólita revela ter sido preparado previamente para isto, talvez com a consciência de ser capaz de triunfar. Mas a verdade é que, por não dominar as artes arcanas, seu desempenho como mestre sai prejudicado.
    - Aonde quer chegar? – o garoto via-se impaciente.
    - Nós magos fazemos fluir prana naturalmente para nossos servos, graças à ligação mágica que os dois lados mantêm ativa. Você, no entanto, não possui um elo tão firme com Berserker, por jamais ter praticado magia, embora seja provavelmente filho de um mago e tenha recebido sua herança em circuitos mágicos, embutidos em algum lugar dentro de você. Ainda assim, não é suficiente. Imagine a conexão mágica entre você e Hipólita como um rio que corre para os dois lados. Sua serva está sempre aberta à correnteza, mas do seu lado existe uma barragem através da qual passam alguns poucos fios de água.
    - Por isso ela está tendo dificuldades em se recuperar – deduziu o rapaz. – Não estou transferindo prana suficiente.
    - Exato.
    - E como poderia fazer isso?
    Petruglia tornou a suspirar, porém acabou respondendo:
    - O ferimento de Berserker é grave, por isso talvez ainda assim não funcione, mas... Existe uma maneira simples, arcaica, de transferir prana em grande quantidade para invocações como os servos.
    - De que modo? Me explique!
    - Bem... Você aprendeu que o prana é a energia vital que corre em todos nós e permeia o mundo. É o que compõe o universo, a matéria-prima da própria vida; que, manipulada, possibilita a prática de magia. A transferência pode ocorrer da mesma maneira como uma nova vida é gerada, já que esse milagre na verdade também é fruto do prana...
    Jorge estremeceu.
    - Quer me dizer que...
    - Prana pode ser transferido através de relações sexuais. Não contei isso antes porque não queria assustá-lo. Acredite... ainda é, de certa maneira, um tabu entre os próprios magos.
    O estudante não percebeu, mas ficou pálido. Olhou instintivamente para Hipólita no chão, rígida e silenciosa... sua visão detendo-se em seus cabelos negros, em suas atraentes curvas, naquele porte de guerreira ainda assim tão feminino que tantas vezes já lhe encantara os pensamentos... Não imaginara até então, entretanto, a serva como parceira sexual. Principalmente pelo fato de Jorge ainda ser virgem. Antes de passar na Unesp, tinha a certeza de que acabaria passando sua primeira noite com Cíntia, na cidade natal, mas as coisas há algum tempo haviam se tornado incertas... principalmente após ter ingressado naquela guerra.
    - Mas e-eu n-nunca fiz... – balbuciou, ainda fitando a amazona e sentindo sua mão a segurá-la bastante suada.
    - Não há segredo. Basta deitar-se com ela, e as coisas fluirão. Nós os deixaremos a sós pelo tempo necessário. E sua geração cresceu assistindo a vídeos pornográficos na Internet... No fundo você sabe o que fazer.
    Jorge julgou o último comentário completamente desnecessário, porém não exprimiu sua opinião. Um arrepio lhe passou pelo corpo enquanto continuava a observar a serva inconsciente.
    - Não farei isso com ela desacordada... – murmurou. – Tenho de receber consentimento!
    - Claro. Deve acordá-la. Sinto ainda prana suficiente dentro dela para isso. Basta chamá-la.
    O calouro esforçava-se para se habituar à idéia. Perderia a virgindade com Hipólita, Rainha das Amazonas, uma guerreira mitológica que já fora desposada pelo lendário Teseu e beijada por Hércules. Nem brincar com a situação fazia com que parecesse mais natural...
    Daniela moveu sua cadeira em direção à escada, seguida pelo mestre de Archer e o próprio. Este, antes de desaparecer na penumbra, lançou um olhar de confiança para o garoto. E pela primeira vez Jorge conseguiu vê-lo com um pouco mais de simpatia.
    Estavam agora a sós, ele e a serva.
    Ainda segurando-lhe uma das mãos, o rapaz massageou-a com ternura, enquanto a chamava, sussurrando:
    - Hipólita...
    Não teve de tentar duas vezes. Num demorado e doloroso suspiro, a amazona abriu os olhos lentamente, encarando-o num sorriso dado com dificuldade. Ele desejava que ela não se desgastasse ainda mais com aquele tipo de esforço, mas não conseguiu repreendê-la diante daquele semblante angelical. As pupilas de Berserker brilharam. E Jorge, apesar da imensa insegurança, acabou também sorrindo.
    - Você sabe o que teremos de fazer, para que viva? – ele inquiriu, tímido.
    A serva apenas assentiu de leve com a cabeça. O estudante prosseguiu:
    - Pode não dar certo... Quer mesmo tentar? Eu não sei como você se sentiria quanto a isso... Quero dizer, tantos homens já a enganaram, magoaram! E agora se entregar a mim desse jeito, nessas circunstâncias...
    Hipólita respirou fundo e, numa sinceridade repleta de empatia, replicou tranqüila:
    - Nesses poucos dias que estive com você... Compreendi que nem todos os homens são da mesma maneira. Você é bom, Jorge. Justo, valente e misericordioso. Quem dera houvesse encontrado príncipes ou reis como você em minha vida original... Teria com certeza sido muito mais feliz.
    Piscou, uma lágrima lhe escorrendo pela face enquanto completava:
    - És meu salvador. E a ti me entrego. De todo coração.
    Jorge sentiu-se lívido. Realizado. Com todo cuidado, devido ao ferimento da guerreira onde antes existira um de seus seios, o rapaz curvou-se e se deitou sobre o corpo de Berserker, mãos apoiadas no chão, seus rostos se aproximando com os olhos fixos... até que os lábios se uniram num beijo que, bem lá no fundo, era há muito aguardado.


* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *


    O andar inferior da fábrica abandonada era mais sombrio que o sótão, o maquinário há muito desativado compondo bizarras silhuetas sobre as paredes, como monstros metálicos aguardando o momento certo para moverem suas articulações enferrujadas. Teias de aranha cobriam quase tudo, enquanto água vertia e pingava através de tubulações danificadas. Um local bastante lúgubre, sem dúvida, mas ideal para um esconderijo. Principalmente tratando-se de uma dupla de ladrões...
    Petruglia os seguira até ali para deixar Jorge e Hipólita sozinhos. Até então evitara ao máximo a constrangedora companhia de Archer; mas naquele caso não tivera opção. Não seria por isso que desejaria conversar com o servo, no entanto. Sem nada falar, recolheu-se a um canto do recinto, permanecendo nele enquanto os aliados sentavam-se junto a uma parede, o mestre de Robin desembrulhando um sanduíche que consistia seu lanche noturno. A maga, porém, não conseguiu a tranqüilidade que queria. Imersa na escuridão, não demorou a ouvir passos atrás de si... e quando se virou, deparou-se com a pessoa que menos desejava ver.
    - Com licença... – pigarreou Archer, apenas o brilho de seus olhos visível sob o capuz. – Se incomodaria se trocássemos algumas palavras?
    Daniela não costumava se atrapalhar, mas a presença daquele espírito heróico conseguia fazer isso muito bem:
    - N-não há p-problema... – mentiu, gaguejando e se odiando por isso. – Sobre o que quer falar?
    Robin suspirou, deixando claro que o assunto lhe causava incômodo, antes de adentrá-lo:
    - Bem... a senhorita parece não gostar de mim. Sempre me evita e age como se eu não estivesse aqui. Se vamos prosseguir com nossa aliança, o que me parece certo dado o fato de seu protegido estar com a serva dele lá em cima, então é bom botarmos tudo em pratos limpos. O que a incomoda sobre mim? Lutando no mesmo time, temos de superar essas diferenças!
    Petruglia ficou vermelha. Por que não conseguia ainda conter suas emoções, agindo como uma adolescente mesmo com tanta experiência? Pensando melhor... ela possuía experiência nas artes arcanas e na vida acadêmica, mas no amor... permanecera estagnada. Afinal, o único homem que amara fora aquele arqueiro de séculos atrás, invocado por si cinqüenta anos antes para lutar na guerra pelo Graal.
    - O problema não é você... – ela replicou, cabisbaixa. – São as circunstâncias...
    - Como assim?
    O tom sério de Robin exigia esclarecimentos; todavia, como a idosa revelaria ter sido sua mestre na guerra anterior, quando se tornaram amantes? Mostrava-se terrível fardo o fato de os servos, quando invocados, não se lembrarem de nada de suas invocações anteriores. Por mais que Daniela guardasse vivos em sua memória os momentos passados com Archer, ele jamais se recordaria. Por isso era sempre dito que mestres e servos, sob hipótese alguma, deveriam se apaixonar. Isso apenas causava dor, e só um dos lados a conservaria. Enquanto Robin se esquecera de Petruglia no momento em que retornara ao chamado “Trono dos Heróis”, a maga passara cinqüenta anos sem conseguir tirar a figura dele de sua mente...
    E, enquanto ele permanecia jovem e admirável, ela já havia sido vencida pela idade e o pesar...
    - É apenas... que você me lembra alguém que um dia amei. Amei muito. E não há como olhar para você por míseros instantes sem que eu me recorde dessa pessoa. Me desculpe.
    A professora, que levantara o olhar para responder ao arqueiro, em seguida tornou a focá-lo no chão, esforçando-se para não voltar a corar...
    Além de conter as lágrimas que por pouco não lhe rolaram pelo rosto.
    Robin, por sua vez, deu de ombros, mais confuso do que antes... E se afastou.


* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *


    Jorge despertou com uma terrível dor nas costas, que logo concluiu ter sido causada pelo duro assoalho do sótão. Já raiara o dia, como denunciava a claridade entrando através das janelas e aberturas no teto. Por um momento sentiu-se atordoado, sem se lembrar de onde estava ou o que acontecera... Um estranho frio dominando-lhe o corpo.
    Acabou se virando. E viu Hipólita.
    Nua.
    E se lembrou.
    Levantou-se de sobressalto, fazendo o piso ranger e por pouco não tropeçando. Constatou estar também sem roupa, as peças amontoadas junto a uma viga que sustentava o telhado. Dando graças a Deus por não haver mais ninguém no lugar e Hipólita estar ainda adormecida, o garoto vestiu-se sem demora. Enquanto realizava a tarefa, não conseguiu deixar de contemplar a guerreira em seu sono. O belo corpo, à luz do sol, era ainda mais nítido e atraente do que sob o brilho da lua. O ferimento coberto pelas ataduras ainda existia, as faixas totalmente vermelhas – mas a amazona já ganhara cor e seu repouso era bem mais tranqüilo.
    Abrindo um sorriso, o mestre constatou que Berserker sobreviveria.
    E acabou corando, envergonhado, ao recordar o que se passara na madrugada...
    Esperava que a serva não retomasse o assunto. Assim como os demais.
    Mas que fora inesquecível... isso tinha de admitir.
    - Jorge?
    O estudante se assustou com o chamado, ainda que reconhecesse de imediato a voz de Hipólita. Virou-se. Sentada no assoalho, e demonstrando incômodo bem menor com sua ferida, a guerreira encarava-o com um olhar terno, o que o fez imaginar se a Rainha das Amazonas poderia ser sempre daquela maneira caso agraciada com um pouco mais de carinho...
    - Sente-se melhor? – ele não conseguiu pensar em nada melhor para indagar.
    Ela assentiu de leve com a cabeça:
    - Sim. Graças a você.
    Jorge riu sem perceber. Teve vontade de abraçá-la, acariciá-la, cobri-la de beijos... Hipólita merecia todo o afeto do mundo. E ainda que não pudesse dá-lo, a presentearia com o máximo existente em si. Seria justamente esse sentimento que continuaria a motivá-lo na batalha pelo Cálice Sagrado. Aquele incontrolável desejo de estar com ela o tempo todo, de protegê-la de tudo que a ameaçasse...
    Foi detido em seu impulso, no entanto, por passos na escada. O calouro ordenou rapidamente à serva, temendo constrangimentos:
    - Se vista.
    Ela obedeceu, caminhando ainda com certa dificuldade para trás de uma viga e colocando as poucas peças de roupa que costumava usar. Quando voltou, Petruglia, Archer e seu mestre já estavam no sótão. Para alívio do rapaz, não mencionaram qualquer palavra sobre a restauração de prana. O anfitrião sem gênero, ao invés disso, optou diretamente pelos assuntos táticos:
    - Rider foi derrotado. E nós conseguimos sobreviver à luta. Ainda que com alguns arranhões...
    - Régis fugiu... – comentou Jorge, só então se lembrando do fato. – Acha que ele pode ainda nos ameaçar?
    - O almofadinha está morto. Sair pelas ruas daquele jeito foi um ato suicida. Há caçadores toda noite nas sombras, espreitando os mestres e servos para atacá-los num momento oportuno.
    - “Caçadores”? – o garoto franziu o cenho. – O que quer dizer?
    Depois de trocar um rápido olhar com Daniela, que aparentava compartilhar da informação a ser revelada, o mestre de Robin Hood explicou:
    - Na noite em que Caster foi derrotada, eu e Archer saímos para patrulhar, quando vocês já dormiam. Lancer está morto. Encontramos os restos do mestre dele perto do Pedrocão. Como Assassin está desaparecido, assim como a mestre dele, que julguei ter eliminado... O número de servos na guerra já se mostra bem reduzido.
    - Quer dizer que...
    - Sim. Restam apenas Archer, Berserker e Saber. Chegou o momento de enfrentarmos Isabel Percival. E se não formos atrás dela... esteja certo de que ela virá atrás de nós!


* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *


    O corpo veio ao chão num baque duro. A mão desfalecida soltou o receptor do telefone, acabando por deixá-lo pendendo para lá e para cá, a poucos centímetros do chão, preso ao aparelho. De uma mesa despencou uma pilha de papéis, não mais equilibrados pelos dedos da secretária que os manuseava. Por todo o recinto, pessoas desmaiavam gradativamente, respirando com cada vez maior dificuldade até expirarem... imersas num terrível estado de semi-morte semelhante ao coma. E ela, com seu servo oculto na forma espiritual, assistia a tudo satisfeita.
    Mesmo com a Unesp tendo deixado o velho prédio há um ano, o local, possuindo inúmeros pontos de risco e estrutura maltratada, ainda abrigava algumas instituições públicas e por isso passava o dia repleto de funcionários. Mas Isabel não poderia aguardar a noite para botar seu plano em prática. O local tinha de ser liberado durante o dia, não importando os humanos que nele trabalhavam, para que fossem realizados os preparativos para o ritual a ter palco ali durante a noite.
    Eles viriam atrás dela, tinha certeza. Os servos remanescentes. Havia ainda três no total, porém se mostrava número mais que suficiente para dar início ao processo de invocação do Cálice Sagrado. Em última instância não bastaria, mas como seus inimigos pereceriam durante a batalha, ceifados por Saber, ao término da mesma já haveria a quantidade ideal de prana visando à materialização do artefato. Para triunfar, Isabel teria de transformar aquela construção em sua fortaleza, assim como cinqüenta anos antes. E para criar tal armadilha aos oponentes, livrar-se dos parasitas que ali permaneciam à luz do sol mostrava-se fundamental.
    Não os matava, entretanto. Poderiam ser bem úteis mais tarde naquele estado, além de sua força vital constituir importante alimento para Saber. Após varrer sala por sala e se certificar não haver ser pensante consciente naquele prédio além de si própria e o servo, a freira encaminhou-se ao pátio, sentindo a energia mágica que fluía intensa naquele local conforme andava.
    Não tinha tempo a perder. Uma teia precisava ser tecida.


* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *


    A noite chegou rápida, aliviando um pouco a ansiedade que permeara aquele dia.
    No sótão da fábrica, os participantes da guerra, bem-alimentados e descansados, conviviam com a expectativa. Teriam de enfrentar a mestre mais perigosa, dotada do mais poderoso servo. Não tinham sequer certeza se venceriam, ainda mais com Hipólita ferida e sem lutar no máximo de sua capacidade, porém tinham de tentar. Jorge achava-se disposto a conquistar o Cálice para ela. A qualquer custo.
    Apesar de ainda não terem um plano definido, uma coisa era certa: seria melhor encontrarem a inimiga antes que ela viesse até eles. Mesmo aparentemente tendo vantagem em sua base, Isabel Percival era uma adversária a ser eliminada em seu próprio ninho. Dar a ela oportunidade de invadir aquele refúgio, e perdê-lo, era um risco que não podiam correr.
    - Então, onde vamos procurá-la? – inquiriu Jorge. – Ela pode se encontrar em qualquer lugar da colina central da cidade, seu domínio... Ou até fora dela, fugindo do óbvio!
    - Isabel já tentará dar início ao processo de invocação do Santo Graal – afirmou o mestre de Archer, resoluto. – Há poucos servos e ela não perderia tempo.
    - O Cálice não pode ser materializado somente quando restar um servo? – o mestre de Berserker perguntou confuso.
    - A regra não é assim tão rígida. Talvez com três servos já haja prana suficiente para a invocação. Isso já aconteceu em guerras passadas, aqui e em outras partes do mundo.
    - Confere – anuiu Petruglia, pensativa.
    - De qualquer modo, atacar Percival em sua mansão seria arriscado demais – complementou Robin Hood. – Também apostaria num possível local de invocação.
    - Certo – assentiu Jorge. – Mas onde?
    Instantes de silêncio se seguiram, com cada um deles analisando as possibilidades. O mago andrógeno tornou a tomar a palavra:
    - O artefato teria de ser materializado num ponto mais suscetível a magia, com maior concentração de prana e uma linha mais fina entre o nosso mundo e o espiritual.
    Daniela respirou fundo, demonstrando ter posse de uma informação que a incomodava. Mas mesmo assim a explicitou:
    - O campus antigo da Unesp, antes Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Há cinqüenta anos, minha batalha final com Isabel Percival se deu nesse lugar. O Cálice então me pareceu ser materializado com extrema facilidade. Talvez ainda seja o local de escolha para o ritual.
    - Uma pista quente – sorriu Archer.
    - Bem quente – concordou o calouro. – Passei pelo prédio dias atrás, e senti algo estranho... Uma péssima sensação, para falar a verdade. Como se houvesse algo de muito vil e cruel entre suas paredes.
    - Isabel já pode estar preparando a construção há anos para isto – cogitou Daniela. – Está localizada na área de influência de sua família, portanto não seria nada difícil. Ano passado, a mudança da Unesp para o campus novo se deu de forma rápida e brusca, inclusive com vários órgãos administrativos ficando no prédio antigo enquanto as novas instalações não eram concluídas. Essa mudança súbita... Os Percival querem desocupar o prédio há décadas, para que sirva somente aos seus propósitos de obtenção do Cálice Sagrado. Não consigo pensar em outra hipótese. Por isso o interesse em deixá-lo vazio.
    - Ou não... – murmurou o mestre de Archer. – Ainda há pessoas trabalhando lá... Deus sabe o que Isabel pretenderia dominando o prédio com eles lá dentro. Lembram-se dos desmaios e comas em massa pela cidade?
    Todos estremeceram. A idéia era realmente perturbadora. E a vida de inocentes poderia estar em risco por terem demorado a pensar em tal esquema.
    - Então atacaremos esse local! – a resolução partiu da própria Hipólita, calada até o momento. – Não podemos perder mais tempo!
    - Partiremos dentro de mais algumas horas – recomendou Petruglia. – À meia-noite. Ruas vazias e menor risco de envolver mais pessoas nisto.
    - E teremos mais tempo para esboçar um plano... – completou Jorge. – Não podemos investir contra Percival e seu servo de mãos vazias.
    Assentiram. Precisariam elaborar uma estratégia para derrotar os perigosos inimigos...
    A conquista do Cálice Sagrado se tornava próxima. A questão era qual lado a empreenderia.


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