Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 12
Desejo, Dia 10: Investida




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Desejo, Dia 10: Investida

         A avenida perdia aos poucos seu movimento com o início da madrugada – apesar do mesmo ainda se encontrar intenso. Jovens lotavam as lanchonetes, sorveterias e bares ao longo da Alonso y Alonso, sem contar o tráfego de veículos e a música alta vinda de quase todas as direções – abafando o som das conversas. Era de se notar que nenhum dos alto-falantes reproduzia melodias que agradassem os ouvidos de Jorge. Isso confirmava sua antiga teoria de que músicas boas nunca eram tocadas alto...

         - Parece incomodado... – Hipólita observou em certo momento.

         - Não é nada – o mestre justificou-se um pouco sem jeito, enquanto atravessavam uma das pistas da via. – Vamos.

         Berserker, em sua forma espiritual, acompanhava o rapaz naquela incursão noturna. Era interessante o fato de o garoto parecer mais incomodado naquele ambiente repleto de jovens e barulho do que a amazona, pertencente a outra época. Em poucos minutos chegaram à Champagnat, subindo rumo ao centro. Jorge sempre sentia ligeiro frio na barriga ao passar por aquela colina, já que a mesma constituía domínio da família Percival – mas, se até então nada ocorrera nas vezes em que a subira, era pouco provável que agora encontrasse problemas, principalmente se fosse rápido em sua caminhada. Tinha de confessar, porém, que o clã inimigo não era sua única fonte de receio... O campus antigo da Unesp, após a péssima impressão inicial que dele tivera, fazia com que procurasse se manter afastado o máximo possível.

         Logo chegaram ao cemitério de muro branco, arredores dotados de incrível morbidez àquela hora. Apesar do ambiente aterrador e do silêncio que era quebrado apenas pelo leve soprar de uma brisa fria, Jorge não se sentia muito intimidado depois do que já havia visto, até então, naquela guerra. Seguiu andando com Hipólita, aproximando-se da torre iluminada da catedral. Logo atravessariam para a outra colina, onde julgavam se encontrar o mestre de Archer.

         Havia pouquíssimas pessoas pelas ruas e vielas do centro, mestre e serva praticamente sozinhos conforme avançavam; o que contribuía para um clima de maior tensão, já que as circunstâncias eram ideais para a aparição de um eventual inimigo. Não houve problema algum, no entanto, até atingirem as imediações do terminal de ônibus. Foi quando Berserker subitamente chamou-o, alguns passos atrás de si:

         - Jorge...

         O calouro voltou a cabeça de modo brusco, temendo que a serva houvesse detectado alguma ameaça:

         - O que houve? Sentiu alguma presença?

         - Na verdade não... – ela replicou cabisbaixa. – Eu apenas... gostaria de lhe contar algo.

         Ele coçou a cabeça raspada. Contar algo? O que seria? Intrigado, o rapaz deteve-se numa esquina, ainda inquieto em relação ao ambiente. Virou-se de frente para a guerreira. E, tentando deixá-la tranqüila, mesmo com o clima adverso, falou:

         - Fique à vontade.

         Hipólita ergueu lentamente seus olhos e explicou, sua voz hesitando:

         - Na noite passada, enquanto dormia... eu tive um sonho. Mas não foi um sonho comum. Eu logo percebi que, nele... via o mundo pelos seus olhos, Jorge. Uma cena de sua vida que nunca esteve em minhas memórias.

         O garoto então novamente se lembrou do que Petruglia avisara... mestre e servo, após certo tempo de pacto, passariam a visualizar um os sonhos do outro. Apesar de se reprovar por isso, o jovem foi acometido de um calafrio. Não podia deixar de se sentir invadido por Berserker, esta tendo acesso livre a recordações que ele jamais desejara que outra pessoa conhecesse. Era algo inevitável, todavia, e precisaria aprender a lidar com aquilo. Só queria saber, ao menos, o que ela vira:

         - E como foi esse sonho?

         - Novamente pude me enxergar na pele de uma criança... sentada diante de um bonito jardim, ao lado de um homem que julguei ser meu pai. No céu, em meio às estrelas, uma bonita lua podia ser admirada... E eu, sendo o pequeno menino, questionei ao indivíduo mais velho sobre o astro, mais precisamente a respeito do que estava desenhado nele...

         A lembrança de quando, ainda na infância, indagara ao pai Adalberto sobre a suposta figura de São Jorge no disco lunar. Uma cena marcante, mesmo não conseguindo nela ver grande importância. Agora Hipólita também possuía dela ciência, um fragmento daquilo que compunha o que seu mestre era hoje. Ao menos ela não vira nada vergonhoso ou constrangedor. Na verdade... o rapaz estava até satisfeito pela amazona ter tido contato com uma visão que muito correspondia ao que ele sentia naqueles dias: a ânsia em mostrar ao pai ser capaz de conseguir o Cálice Sagrado.

         - Vamos! – exclamou Jorge, dando as costas para a serva e já prosseguindo pela ladeira.

         Sem voltar a falar, Berserker acompanhou-o em direção à colina da família Petruglia.

         Subiram pela elevação, o trajeto não os cansando tanto quanto antes. Talvez, devido a já terem visitado Daniela várias vezes durante a semana que passara, estivessem ficando acostumados ao percurso. Como fora previamente definido, passariam em frente à residência da maga para averiguarem como se encontravam as coisas. Assim tomaram a rua repleta de árvores em que se situava a mansão, aos poucos o asfalto revelando as crateras e marcas decorrentes da batalha na noite anterior. A prefeitura ai colocara cavaletes e cones impedindo a passagem de carros – principalmente no trecho mais avariado da via, onde Rolando fora atingido pelas flechas de Robin Hood. Jorge também percebera um constante tráfego de viaturas da polícia pelas redondezas – o que o fez se perguntar acerca da história que teria sido contada para encobrir a luta entre os servos.

         Chegaram, finalmente, à casa de Petruglia, passando diante de seu muro pela calçada e esticando os pescoços para visualizarem a fachada e o jardim. Todas as luzes estavam apagadas, nenhum som sequer provindo das dependências da morada. Ou a professora já se recolhera, ou saíra... apesar de o jovem mestre não descartar completamente a terrível possibilidade de a idosa ter sido atacada, encontrando-se agora, talvez, morta.

         - Não estou gostando disto... – murmurou Jorge, detendo-se em frente ao portão recém-consertado.

         - Não se preocupe, creio que ela está bem – afirmou Hipólita, olhando para a residência ao lado do rapaz. – Sinto uma presença mágica... Acredito que só possa ser Daniela.

         Berserker parecia ter razão, e Petruglia por certo queria apenas ficar sozinha. O calouro não sabia se ela deixara intencionalmente de atender ao telefone mais cedo, porém começava a achar que aquilo não era muito de sua conta – embora a maga o houvesse ajudado tanto. Melhor seria permitir que ela mesma voltasse a contatá-lo quando achasse conveniente; e, durante aquela madrugada, Jorge tinha mais no que se focar. Não poderia deixar que uma preocupação excessiva em relação à idosa prejudicasse sua eventual luta contra Archer.

         - Você está certa.... – ele falou, botando-se novamente a andar. – Vamos!

         Avançaram então pelo caminho, dobrando uma esquina.

         Como os dois logo descobriram, a Avenida José da Silva era outro agitado ponto de encontro dos jovens francanos. Por sua extensão, desde a Estação até os arredores do Parque de Exposições, possuía vários bares, lanchonetes, restaurantes e outros estabelecimentos para aqueles que adoravam sair à noite. O som alto dos carros também era predominante, e por um momento Jorge perguntou-se se eles não teriam dado a volta na cidade e retornado à Alonso y Alonso. Ignorando seus desgostos, continuou com sua serva em direção à Cadeia Pública, o movimento aos poucos reduzindo, assim como o barulho e o trânsito de veículos. E, por volta de uma da manhã, eles atingiram seu objetivo, parando diante do quarteirão da prisão.

         O prédio não era exatamente ao lado da avenida. Era dela separado por uma pequena quadra, remetendo a uma praça, que possuía um campo de futebol de terra, as duas traves brancas sem rede em suas extremidades se assemelhando a arcos ósseos inseridos solitários na soturna madrugada. Atrás dele, separado por uma estreita rua, já se impunha o muro do centro de detenção provisória, mais se assemelhando a um mini-presídio. A cor cinza predominava na construção, que possuía quatro torres de guarda, uma em cada canto da muralha.  Uma silhueta escura e amedrontadora em meio à noite – que aos recém-chegados mais parecia um monstro adormecido capaz de acordar com o menor ruído; principalmente considerando a ansiedade que sentiam em se aproximar. Qualquer movimento mal-pensado poderia levar a uma cruel derrota.

         - Você sente algo, Berserker? – indagou o garoto, ainda imóvel com a amazona numa esquina próxima ao lugar.

         - Sim, Jorge... – ela respondeu concentrada, olhos fixos no prédio da cadeia. – A mesma presença de ontem... Archer.

         Então Robin se encontrava mesmo ali, não os havendo ludibriado. Restava saber se aquilo era ou não uma armadilha. Seria uma vantagem se conseguissem atrair seu alvo para fora dos muros da prisão, porém as chances eram ínfimas... Um servo não abandonaria o terreno no qual possuía vantagem, ainda mais sendo o esconderijo de seu mestre. O rapaz pôs-se a refletir acerca de como chegariam mais perto...

         Foi quando, subitamente, o corpo de Jorge acabou impelido com força para trás, seu mundo girando em adrenalina enquanto ouvia Hipólita gritar:

         - Cuidado, recue!

         Depois de recobrar o equilíbrio em seus pés, por pouco não tropeçando num dos desníveis da calçada, o calouro da Unesp conseguiu novamente olhar para diante de si, seu coração acelerando com cada novo elemento da cena: Hipólita, pouco à frente, mantinha o corpo tenso numa posição defensiva, braços abertos como se servissem de escudo a seu mestre, espada de pedra firme em sua mão direita. Poucos metros adiante, junto ao meio-fio, havia algo cravado no asfalto, tornando-o estranhamente fumegante enquanto liberava, sob a luz alva de um poste, fino fio de fumaça. Um projétil poderoso e mágico, pelo visto – assim como os que Robin Hood demonstrara possuir anteriormente. Tanto Jorge quanto Berserker se aproximaram, cautelosos, para examinar o objeto. Tratava-se mesmo de uma seta, sua ponta enterrada alguns bons centímetros na superfície de piche. Em seu cabo existia algo como um pequeno pedaço de papel enrolado, constituindo provável mensagem entregue à moda antiga. Após se certificar de que não sofreria qualquer tipo de dano fazendo-o, o garoto abaixou-se e retirou da flecha o pequeno bilhete. Abriu-o em seguida em suas mãos, para que ele e também Hipólita conseguissem lê-lo:

         Avancem até a face da muralha de frente para a avenida. A entrada estará assim garantida.

         R.

         “R”? Jorge não sabia dizer bem, mas alguma memória remota em sua mente lhe dizia ser aquela uma letra bem intrigante...

         A letra da mensagem era bonita e detalhada, com curvas e leveza características de uma escrita a bico de pena. Por certo fora mesmo redigida pelo servo, e enviada aos forasteiros ou como mera provocação, ou como isca para uma cilada.

         Ficava mais e mais difícil decidir o que fazer...

         De qualquer modo, o mestre de Berserker não era um poço de paciência. Desejava decidir logo aquela disputa, e ficar se perdendo entre incontáveis receios e riscos não o levaria a lugar algum. Se alguém está na chuva é para se molhar, como já dizia o velho ditado. Escolhe, assim, seguir a instrução do inimigo. Talvez este quisesse mesmo uma luta dentro de seu domínio, o que lhe seria favorável, mas não se tratando de nenhuma armadilha ou emboscada. Jorge começava a se julgar paranóico demais, e isso acabaria por travá-lo naquela guerra. Se quisesse mesmo conquistar o Graal para Hipólita e mostrar seu valor ao pai, não poderia deixar que o temor o imobilizasse.

         - Vamos ver o que esse cara quer... – ele por fim disse à serva, pondo-se a atravessar a rua e o campo de futebol até a seção do muro indicada por Archer.

         A guerreira seguiu-o, no fundo também ansiando para que tudo aquilo terminasse logo. A brisa gelada daquela madrugada voltou a fustigá-los, como o prenúncio de uma situação que faria sentirem frio em seus próprios ossos. A passos lentos, venceram a distância até a muralha... e logo notaram algo inesperado: havia uma escada de cordas nela pendurada, jogada por cima do topo. Uma facilidade de Robin – ou seu mestre – para que ganhassem o interior da cadeia. No entanto... não haveria sentinelas nas torres?

         Ignorando tal questão, os dois colocaram-se a subir. Enquanto Hipólita demonstrava maior prática na escalada, agarrando rapidamente os improvisados degraus, Jorge temia cair a qualquer momento, nunca tendo feito coisa parecida. Só o mero pensamento de imaginar estarem invadindo uma prisão para lutar com um mago e o espírito heróico de um herói medieval, porém, fez com que se desse conta de que fizera coisas inimagináveis à maioria dos seres humanos ao longo daquela semana. Poderia sentir-se, de certa forma, privilegiado...

         - Ou não... – murmurou consigo mesmo, terminando de se esforçar acima.

         Eles chegaram ao topo, Berserker olhando atenta para dentro da construção. Esta possuía dois pátios internos separados entre si, e os recém-chegados estavam à beira de um deles. O mestre olhou rapidamente para as guaritas mais próximas, imersas em escuridão... e não viu guarda algum. Havia algo de muito errado ali, aparentemente.

         Ambos os espaços, aparentemente, também se encontravam vazios, nenhum som vindo da prisão inteira. Jorge, nesse momento, ponderou de forma séria se aquilo não seria mesmo uma armadilha. Sem aguardar seu comando, Hipólita saltou para o pátio do qual estavam mais próximos, atingindo de pé, com perfeição, o solo de concreto. Aterrissou numa pose abaixada, em seguida se levantando e olhando ao redor em busca de alguma ameaça. Agitou de forma nervosa a espada por alguns instantes, até olhar para o muro e falar a seu mestre, num tom inexpressivo:

         - Salte.

         Jorge se curvou um pouco para frente, certo de que não ouvira bem, e indagou:

         - O que disse?

         - Salte. Não se ferirá.

         Ela falava mesmo sério? Para um humano normal, pular daquela altura resultaria em graves fraturas ou, no pior dos casos, morte. Ele não possuía a resistência de um servo, mas... talvez também não pudesse ser chamado de “humano normal”. Era um mestre na Guerra do Cálice Sagrado, afinal de contas – ainda que não fosse um mago. Convinha confiar em Hipólita.

         Fechando os olhos e sentindo seu sangue ferver, Jorge saltou...

         Somente para ser agarrado pelos fortes braços da amazona, que permaneceu segurando-o deitado. Uma cena inversa à maioria das histórias de “herói e mocinha” existentes... e um pouco embaraçosa para o garoto, não podia negar.

         - H-Hipólita... – gaguejou o jovem, desconcertado. – Será que você poderia... me colocar no chão?

         - Oh sim, perdoe-me!

         Manifestando mais uma vez um vigor sobre-humano, Berserker moveu seus membros para colocar Jorge de pé sobre o pátio. Bem, ao menos a gentil guerreira aparara sua queda...

         Tranqüilizando-se, o rapaz também pôde, então, examinar o ambiente.

         O cenário correspondia ao típico de uma cadeia – ainda que o jovem jamais houvesse estado em uma. O pátio era cercado por diversas entradas vedadas com barras de ferro, atrás das quais se visualizava corredores e celas. Junto a algumas, os presos haviam improvisado varais onde penduravam suas peças de roupa, inclusive íntimas. O panorama geral era de certa desorganização e sujeira, o chão implorando para ser varrido enquanto as celas exibiam uma profusão de vestes, objetos diversos e até... pés humanos, pertencendo aos detentos que acabavam pendendo para fora dos cubículos, ao deitarem.

         - A presença está crescendo... – alertou a amazona, sempre atenta aos arredores.

         Foi nesse momento que Jorge percebeu... Todos, dentro das celas, aparentemente viam-se deitados... Aproximou-se com Hipólita para examinar melhor. De fato, os criminosos ali encarcerados estavam imersos em sono profundo – felizmente sem indícios de houverem sido mortos ou coisa parecida, pois ainda respiravam. O problema era que, pelas posições desconfortáveis e bruscas em que muitos se achavam, era de se crer que aquele sono não era natural, mas induzido. Provavelmente por magia.

         Nisso, Berserker cutucou seu mestre, apontando para o sombrio canto de um corredor. Nele jazia sentado, com as costas apoiadas nas grades, um homem usando uniforme da polícia – certamente carcereiro – também dormindo quase em hibernação. Pelo visto, a área inteira da cadeia fora afetada pelo suposto encantamento. Archer queria mesmo que o combate se mantivesse longe de olhos indesejados...

         - Então vocês vieram mesmo, seus matreiros! – exclamou uma voz masculina, com sotaque inglês, vinda do meio do pátio.

         Jorge e Hipólita se viraram. Dois vultos haviam surgido no centro do local, não tendo havido indício algum deles antes. O primeiro era bem familiar: manto e capuz verdes enegrecidos pela penumbra, porte altivo, cavanhaque e fios de cabelo dourado em seu rosto... Robin Hood que, sorrindo, apontava seu majestoso arco, munido de três flechas, para os invasores. Ao seu lado, viram figura que apenas o estudante identificou: cabelo loiro comprido e fino, camisa cinza, calça desfiada, tênis... trazia o rosto branco sujo desta vez, e um toco de cigarro à boca, além de estar sem sua jaqueta... porém era mesmo ele. O suposto assassino da irmã de Ravena Piemonte, o bandido que Jorge vira ser preso logo que chegou a Franca... o mestre de Archer, como agora confirmava.

         Sentiu medo. Sim, medo. Achou-se incrivelmente surpreso por sua hipótese ter se mostrado verdadeira, já que até então subestimara sua própria capacidade dedutiva, crendo que tomara meras coincidências como ligações. Mas, ao final, mostrava-se mesmo certo. E não podia demonstrar insegurança diante dos inimigos. Enquanto Berserker preparou-se numa postura defensiva, pronta para lançar-se contra os oponentes, o garoto provocou-os:

         - Então, o ladrão é servo de um ladrão!

         Em resposta, Robin Hood deu uma risada debochada. Abaixou o arco ligeiramente – disposto a dialogar antes de partir para o ataque – e replicou:

         - Sinto-me contente por terem aceitado meu convite. Considerem-se em casa, apesar do ambiente um tanto hostil. Espero que tenham achado no mínimo interessante a escada de cordas. Eu e meu mestre a encontramos dentro de uma das celas, provavelmente tendo tomado parte no plano de fuga de algum dos detentos. Acabou sendo usada para recepcioná-los.

         - O que vocês fizeram com os prisioneiros? – inquiriu Hipólita.

         - Um feitiço de sono bastante eficiente. Eles acordarão pela manhã. Até lá teremos tempo mais que suficiente para resolvermos esta disputa.

         O mestre de Archer ainda não havia se manifestado, permanecendo a fitar calado, com um meio sorriso nos lábios, os intrusos. Em sua tensão, Jorge passou a observar mais atentamente o suposto mago. Apesar da raiva em relação à figura nublar um pouco seus sentidos, notou sobre ela algumas coisas estranhas... A camisa cobrindo-lhe o tronco, por algum motivo, parecia mais apertada que o normal, como se comprimisse algum tipo de volume embaixo de si... e os traços do rosto e dos membros – principalmente das mãos – apesar de se encontrarem sujos e embrutecidos, não combinavam tanto com os de um homem.

         Será que...

         - Esta será uma luta admirável – falou finalmente o mestre, demonstrando possuir uma voz que intensificava as suspeitas do estudante, seu tom não correspondendo plenamente nem a um homem e nem a uma mulher. – Uma das maiores guerreiras da Antigüidade contra o mais conhecido arqueiro da Idade Média. Quem se mostrará melhor?

         Aquilo era bastante esquisito, o caráter andrógeno daquele inimigo não sendo algo esperado por Jorge. Era sabido que, numa cadeia pública como aquela, não era exigido dos presos que se despissem ou qualquer coisa parecida. Desse modo, uma mulher, disfarçando-se bem como naquele caso, poderia sim se passar por homem – como de fato fizera, enganando o jovem e sua serva até o momento. Mas, mais importante que determinar o sexo ou o nome daquele indivíduo, era atentar para Robin, que tornou a erguer seu arco... A batalha estava por começar.

         Archer riu. Não agora de deboche, e sim um riso remetendo a superioridade, talvez até presunção. Num piscar de olhos, fazendo uso da velocidade superior característica dos servos daquela guerra, lançou as três setas que mantinha na arma... na direção de Jorge.

         Aturdido, o rapaz conseguiu ver com clareza apenas três pontos luminosos, no formato de pontas, rumando para si, e fechou os olhos... acreditando que sua morte seria inevitável. Porém, para sua surpresa e alívio, ouviu o som de um choque no ar, tornando a enxergar. Visualizou um breve brilho diante de si, os projéteis mágicos consumidos em pequenas explosões... ao serem bloqueados pela espada de Berserker, que foi rápida em saltar para diante do mestre e protegê-lo. Mantinha-se agora em defesa logo à frente do garoto, ao mesmo tempo em que a confusa visão deste percebia o mestre inimigo recuar alguns passos pelo pátio, assim como uma veloz aproximação de Robin...

         - Cuidado! – o estudante procurou alertar sua serva.

         Era certo que Archer atacara primeiro Jorge para justamente fazer com que a amazona o protegesse, distraindo-a e assim criando tempo para sua verdadeira ofensiva. Um movimento inteligente, agora consolidado em seu avanço com uma pequena espada numa das mãos. Do mesmo modo como a lenda dizia e o calouro previra, o arqueiro inglês era sim também muito habilidoso com um sabre.

         As duas armas, de pedra e metal, colidiram-se, propagando faíscas ao redor. Logo em seguida Hipólita repeliu o ataque com um pesado golpe de sua espada, o qual, apesar de não atingir o corpo do adversário, serviu para afastá-lo ao menos um pouco. Seguiu investindo, movendo a lâmina rochosa pelo ar com maestria; e Robin, sabendo que não poderia conter tamanha força diretamente, saltava para trás ou de lado a cada tentativa da inimiga, recuando em círculos pelo pátio e empreendendo uma ou outra vã ofensiva com sua espada quando a guerreira abria guarda.

         Por durante quase um minuto, um servo não atingiu o outro, envolvidos numa dança belicosa que, apesar de não resultar em ferimentos para nenhum dos lados, aparentava ser conduzida habilmente por Archer. O sorriso em seu semblante demonstrava que, até o momento, ele não perdera o controle da situação em momento algum.

         Agitado, Jorge, acompanhando para lá e para cá os movimentos de Berserker a poucos metros de distância, tentava imaginar o que o oponente estaria tramando...

         - Hércules usava um arco também, não é? – exclamou o arqueiro em dado momento. – Foi usando-o que ele a matou?

         Não! Que diabos você está fazendo, seu idiota?

         Nervoso, o mestre de Berserker constatou que o adversário visava justamente enfurecer Hipólita, vendo nisso uma vantagem para si. E, visando esse objetivo, provocava-a lembrando-a de seu fatídico passado. Pelo visto, Jorge não fora o único a pesquisar mais a respeito dos espíritos heróicos...

         - Berserker, não o escute! – o rapaz procurava reparar o que Robin fizera.

         Mas o esforço se mostrava inútil. Com o brilho vermelho de antes voltando a dominar seus olhos, a amazona intensificou seus golpes contra Archer, urrando em fúria. O inimigo, todavia, continuava se desviando dos ataques graças à sua superior agilidade. E o maldito sorriso não abandonava sua face!

         Fragmentos de concreto voavam a cada golpe de Hipólita que atingia o chão, gerando pequenas crateras em estrondos. O mestre de Robin se afastara ainda mais, quase sendo engolido pelas sombras da área coberta perto das celas. Pelo jeito, tinha pleno conhecimento da estratégia de seu servo e queria se proteger. Tentando delinear o que o arqueiro preparara, Jorge se deu conta: a verdadeira armadilha viria agora.

         - Você se apegou mesmo a esse menino? – Archer tornou a provocá-la. – É apenas uma questão de tempo até ele traí-la, como todos os outros homens de sua vida fizeram!

         - Não dê ouvidos a ele, Berserker! – quase desesperado, o mestre da amazona procurava evitar que ela se tornasse incontrolável... apesar da promessa que fizera de frear seus impulsos.

         Mas era em vão. Com seus olhos cada vez mais dominados pelo tom rubro e movimentos tornando-se incrivelmente violentos, Hipólita entrava novamente numa fúria destruidora. Varria o ar com sua espada em busca do corpo do arqueiro, visando dilacerá-lo, parti-lo em pedaços... No entanto, o astuto Robin Hood continuava se esquivando sem muita dificuldade, tudo aparentando correr como pensara. E isso apenas aumentava o temor de Jorge, que seguia gritando:

         - Recue! Ele está tramando algo! Volte, Berserker!

         O rapaz sentiu-se desnorteado ao perceber que nada do que fizesse teria efeito: sua serva tornara-se surda a seus apelos. Constatou então que teria de utilizar um feitiço de comando... mas para isso aguardaria mais alguns instantes. Era um recurso muito valioso a ser desperdiçado; e perder mais um, havendo ainda tantos mestres e servos a serem enfrentados, assinalava o caminho até a derrota. Hipólita continuou investindo contra o adversário, este ainda desviando dos poderosos golpes, até que o sorriso finalmente sumiu de seu rosto. Ao que parecia, cansara-se de brincar de cão e gato com aquela guerreira. Num ágil impulso, saltou de costas e, vencendo vários metros de altura girando no ar, foi parar em cima do muro que cercava o pátio, de frente para a enfurecida Berserker e seu mestre. Demonstrou, com aquilo, que poderia ter deixado a batalha no momento que bem entendesse.

         - Esta luta preliminar se mostrou um bom aquecimento – falou Archer, altivo como sempre. – E através dela pude comprovar minhas suspeitas: você não é um servo a ser subestimado, Rainha das Amazonas. No entanto, eu possuo minhas cartas na manga...

         Dizendo isso, deu uma breve risada enquanto retirava a capa verde que cobria boa parte de seu corpo... atirando-a para fora da prisão. Revelou, dessa maneira, sua verdadeira vestimenta: o tronco era coberto por uma espécie de camisão também esverdeado, mangas largas e um tanto estufadas, lembrando a Jorge um tipo de traje que muito já vira em filmes medievais. A região do tórax era semi-visível através de uma fenda emendada com pequenas tranças, o definido peitoral do herói perceptível atrás destas. Compridas manoplas de couro cobriam-lhe as mãos, a cintura estando cingida por um discreto cinto onde se enxergava a bainha de uma adaga. As calças também verdes portavam joelheiras na mesma cor das surradas botas marrons. A cabeça, agora descoberta, revelava em sua totalidade o curto cabelo loiro do arqueiro, assim como seu discreto cavanhaque e um par de brilhantes olhos cor de esmeralda. Sem que os invasores houvessem no mínimo conseguido perceber a ação, Robin guardara sua espada para apanhar novamente o arco, retraindo a corda para nela inserir cinco flechas. Apontou-as aos inimigos enquanto exclamava, zombeteiro:

         - Até o Xerife de Nottingham era menos tolo!

         E, no último instante, ao invés de disparar as setas rumo aos oponentes... lançou-as para cima, na direção do céu estrelado.

         Jorge viu petrificado os projéteis luminosos subirem zunindo, como fogos de artifício... mas, a julgar melhor por sua trajetória, mais se assemelhavam a morteiros. Após ascenderem consideravelmente sobre o pátio da cadeia, passaram a cair de início de forma lenta, sua velocidade então se intensificando conforme se aproximavam assoviando do solo... e, com seu corpo tremendo, o mestre de Berserker constatou que cada flecha começou a se dividir em duas, três, quatro, cinco... até comporem uma chuva de pontas luminosas prestes a se chocar contra o chão, ou o que quer que nele estivesse.

         - Hipólita! – o estudante berrou, não se importando em usar o verdadeiro nome da serva, pois o adversário demonstrava já conhecê-lo. – Busque abrigo, rápido!

         O agitado rapaz olhou uma última vez para a amazona, que urrava imóvel no centro do pátio com a cabeça voltada para cima e sua espada erguida numa posição de defesa sobre si, antes de seguir correndo até uma das áreas cobertas em torno do espaço. O silvo das flechas mágicas em queda só aumentou, Jorge sentindo que seu coração explodiria de tanto bater... e por fim se jogou em direção às grades das celas, caindo de barriga para o solo...

         KABOOOOOOM!

         O estrondo foi medonho, avassalador. O calouro percebeu que seus ouvidos haviam ficado surdos, tomados por longo zunido que parecia interminável. Suas narinas notaram forte cheiro de queimado. Ralara a barriga com o pouso imperfeito no solo de concreto, mas isso era o de menos. Tentou se levantar, porém uma crescente ardência em suas costas impediu-o – a mesma logo se convertendo em dor. Uma pontada profunda, revelando a existência de um objeto estranho fincado consideráveis centímetros em sua carne.

         Jorge gemeu... e, procurando vencer suas fraquezas, estendeu um dos braços até as costas... conseguindo tatear uma seta nelas enterrada. Seu cabo fervia como fogo, a pele da palma de sua mão sendo ligeiramente queimada ao tocá-la. Porém, mordendo os lábios e fechando os olhos... puxou-a de uma só vez.

         - Ahhhhhh!

         A dor se tornou mais intensa por alguns segundos, para então diminuir consideravelmente. Sentiu sangue a lhe verter através da ferida aberta, mas agora conseguia colocar-se de pé. Assim o fez, apoiando um dos braços no chão para se levantar. Uma fisgada no ferimento abalou-o, mas pôde manter o equilíbrio sobre as pernas... voltando-se a seguir para o local mais afetado dos arredores...

         O pátio da cadeia era agora um inferno fumegante. Fumaça subia das incontáveis pequenas crateras abertas pelo impacto das flechas; o calor que delas emanava aos poucos se dissipando. Alguns pilares e paredes apresentavam rachaduras decorrentes das explosões, até mesmo pedaços inteiros faltando. No alto do muro, Archer mantinha-se em pose imponente, apontando o arco para baixo; e seu mestre andrógeno, ainda semi-oculto nas sombras, observava tudo em seu abrigo do lado oposto ao que Jorge se encontrava.

         Aos poucos a poeira baixou, os ansiosos olhos do aluno da Unesp buscando entre a destruição uma silhueta conhecida... e foi tomado por imenso alívio ao identificá-la.

         No meio do pátio, Hipólita mantinha-se em pé, seu corpo sem qualquer arranhão protegido por sua grande espada... uma pequena área circular ao redor de si estando igualmente intacta e apresentando esqueletos quebrados de flechas.

         O cinturão de Ares mais uma vez a resguardara.

         - Como eu previ... – murmurou Robin Hood, coçando o queixo. – Mas isso não será problema!

         Cerrando os dentes, o arqueiro retirou de sua aljava uma seta diferente das anteriores: ao contrário destas, que em sua base eram feitas de madeira, a nova flecha possuía brilho cinzento, e ao menos sua ponta parecia realmente ter sido esculpida em prata. Enquanto o servo fazia mira, fechando um dos olhos, Jorge tratou de gritar, notando mais uma vez o perigo:

         - Berserker, saia daí!

         Esforço inútil, novamente: numa explosão de prana, Hipólita, no auge da fúria, tomou impulso em direção ao muro em cujo topo se encontrava Archer, espada brandida de forma a fazer crer que ela derrubaria a estrutura toda para trazer ao pátio o inacessível inimigo. Possuía força suficiente para isso. Todavia, Robin foi mais ágil e, quando a adversária se encontrava a poucos metros da base da muralha, disparou o projétil.

         O mestre da guerreira já aguardava, de certa forma, o que veio depois: ignorando a proteção divina de Berserker, a seta prateada atingiu em cheio seu busto, impelindo-a para trás em meio a um urro de dor. Sangue jorrou em finos jatos do peito da serva, manchando sua pele e suas vestes. Com um aperto no coração, seu mestre ignorou a ferida que sofrera há pouco e desatou a correr em direção à heroína, cruzando o pátio. Ela simplesmente não percebeu a aproximação de Jorge, continuando a quase rosnar enquanto mantinha seus olhos vermelhos voltados para o odioso oponente. Este fez questão de esclarecer:

         - Como pensei, uma flecha que pertenceu a algo inumano em vida é sim capaz de vencer esse escudo do qual sua serva tira vantagem!

         - O que quer dizer? – bradou o enraivecido estudante, alternando sua visão entre a amazona ferida e o arqueiro falastrão.

         - Esta seta pertenceu a Herne, o Caçador. Uma antiga divindade pagã dos celtas com chifres em sua cabeça, que vagava em seu cavalo pelas florestas de minha terra. Certa vez, o Xerife de Nottingham organizou um torneio de arco e flecha com a esperança de conseguir me prender. Eu, no entanto, descobri seu esquema de antemão e participei da competição disfarçado, vindo a vencer. O prêmio foi uma aljava cheia de flechas de pontas de ouro e prata, que antes haviam pertencido a Herne. Alguns dizem que o Caçador era apenas um fantasma, outros que era realmente o deus das lendas... De qualquer modo, as setas que usava parecem realmente eficazes contra os encantamentos dos deuses antigos.

         Nada bom. Nada bom mesmo. E a situação se complicou ainda mais quando Robin inseriu cinco flechas, de pontas douradas e prateadas, em seu arco, apontando-as para Hipólita... que permanecia estática no pátio!

         Não havia mais como evitar. Erguendo um dos braços, Jorge concentrou-se. Usaria mais um feitiço de comando.

         - Berserker, recue, agora!

         Sentiu a parte de trás de sua mão direita arder, um leve brilho a tomando momentaneamente... E, quando a olhou, a segunda marca representando os feitiços de comando havia desaparecido. Restava, agora, apenas um.

         Tornou a fitar a guerreira. Esta, relaxando os músculos de forma súbita e abaixando sua espada, deu ágil salto para trás...

         Escapando das flechas de Archer, que acabaram sendo enterradas no solo.

         Só então Jorge pôde fitar novamente o rosto de sua serva: a luz rubra em seus olhos desaparecera, assim como sua fúria. Mantinha-se de pé, ofegante, por certo tentando assimilar o que ocorrera até aquele momento.

         - Cuidado! – seu mestre bradou mais uma vez.

         Agora atenta e racional, Hipólita pulou para o lado, esquivando-se de mais uma saraivada de setas mágicas. No entanto, não poderia permanecer exposta naquele pátio. Seria assim, cedo ou tarde, novamente atingida – o ferimento no tórax prejudicando seus movimentos de forma nítida.

         - Por que não desce e luta como homem? – exclamou o garoto num dado momento, na esperança de apelar para a cordialidade de Robin com o intuito de fazê-lo descer do muro.

         - Isto não tem nada a ver com honra ou bravura, meu caro – sorriu o servo. – Minha especialidade em combate é esta, e é justo eu fazer uso dela. Nada mais.

         Mais flechas de ouro e prata foram disparadas, desta vez cravando-se no chão a poucos centímetros dos pés da amazona. Berserker continuava evitando os ataques como podia, mas seu cansaço e dor eram perceptíveis, além de o calor do momento parecer contribuir para que entrasse novamente em fúria. Não havia como vencer aquele confronto daquela maneira.

         Esticando a corda do arco, Robin preparava-se para nova investida, mirando o ventre da oponente... quando, de súbito, um som familiar ecoou pela noite:

FFFFFFUUUUUUÓÓÓÓÓÓÓNNNNN!

         Os olhos dos quatro até então presentes, com seus ouvidos latejando, se voltaram para outro segmento do muro em torno do pátio... avistando, acima da estrutura, a inconfundível figura de um cavaleiro trajando armadura prateada, empunhando numa mão bela espada enquanto na outra trazia uma corneta feita de chifre de unicórnio.

         - Rolando... – murmurou Jorge em voz baixa.

         O cavaleiro franco caminhou pelo topo da muralha durante alguns segundos, sua visão se alternando entre todos, inclusive o esquivo mestre de Archer. Sua face possuía expressão presunçosa, um meio sorriso fixo em seus lábios como se fosse se converter numa risada de deboche a qualquer instante. Deteve-se então, sua veste de combate emitindo um estalo metálico, e falou:

         - Bonsoir. Eis que me deparo novamente com suas figuras... mas agora sou eu aquele a intervir na luta.

         - O que o traz aqui, cão francês? – inquiriu Robin, voltando sua cabeça para o recém-chegado, mas mantendo o arco ainda apontado para Hipólita. – Também veio me prestar uma visita?

         - É dever de um cavaleiro livrar as florestas e bosques de vícios como você, ladino.

         - Ora, que fala hostil. Acredito que, em vida, poderíamos ter lutado do mesmo lado se houvéssemos convivido no mesmo lugar, numa mesma época. Agora, porém, a disputa pelo Cálice Sagrado nos coloca um contra o outro, sobrinho de Carlos Magno. Peço apenas que aguarde um pouco. Lutarei com você assim que terminar com esta amazona.

         - Aí que você se engana, meu caro.

         Dizendo isso, Saber passou a brandir a Durandal de maneira ameaçadora na direção do inimigo. Seu corpo estremeceu ligeiramente, por certo devido aos ferimentos que ainda não haviam se curado por completo. Isso, entretanto, parecia longe de impedi-lo. Afastou um dos pés, colocando-se em posição de luta. Robin, no entanto, continuou mirando para Berserker no pátio, enquanto perguntava sem perder a calma habitual:

         - Pode se explicar?

         - Já não se lembra, ó pérfido? Da última vez em que nos encontramos, me humilhaste no momento em que venceria a Rainha das Amazonas em combate. Um cavaleiro do grande imperador Carlos Magno não pode aceitar esse tipo de atentado contra sua honra, manifestado num sórdido ataque traiçoeiro. E, apesar de ela constituir uma adversária, tal afronta ocorreu na frente de uma dama. Devo, agora, limpar meu nome retribuindo essa injúria!

         - Cavaleiros, cavaleiros... – resmungou o arqueiro em tom de tédio. – A mim já bastava o rei Ricardo...

         - Constato, igualmente, que Berserker está ferida. Pois bem. Já lutou com ela o bastante. Agora chegou a vez de provares de minha lâmina!

         Rolando aparentava mesmo grande decisão. Ele não sairia dali antes de ter sua revanche para com Archer. Jorge, com pontadas em suas costas e a preocupação em relação à sua serva só aumentando, concluiu que aquela era a brecha perfeita para fugirem. Suspirou. Cometera, aquela noite, o erro de subestimar seu oponente. Naquele momento uma retirada estratégica mostrava-se necessária, ou acabariam morrendo ali, cedo ou tarde: fosse pelas impetuosas flechas de Robin Hood, ou pela espada sagrada do paladino francês.

         - Hipólita... – o estudante chamou-a, já se preparando para escapar dali.

         Foi quando, subitamente, Saber saltou de onde estava, transpondo uma parte do pátio em seu impulso e deixando atrás de si efêmero rastro de energia mágica. Aterrissou de pé, com perfeição, no mesmo segmento do muro em que se encontrava Archer. Este, veloz, guardou o arco e apanhou sua espada curta, preparando-se para o confronto direto com seu desafiante.

         - Berserker, vamos embora daqui! – Jorge gritou à serva.

         No mesmo instante em que a guerreira virou a cabeça para trás, fitando seu mestre com indecisão, Rolando e Robin começaram a se digladiar, o som de metal em choque tilintando em seus ouvidos e as faíscas iluminando os arredores. Era o início de uma batalha que, por certo, levaria algum tempo e terminaria com a eliminação de um deles. Uma batalha explosiva. E Hipólita estava hesitando em sair dali.

         - Vamos embora! – seu mestre insistiu.

         Ela continuou fitando-o com um olhar incerto... até que, franzindo as sobrancelhas, percebeu sua camiseta ensopada de sangue e rasgada às costas. Ignorando a dor da flecha ainda cravada em seus seios, apressou-se até o rapaz, amparando-o.

         - Jorge, você foi ferido!

         - Não se preocupe, estou bem...

         Foi então que, com a intensidade do momento passando, o corpo do jovem finalmente sucumbiu aos efeitos do sangramento e do cansaço: suas pernas bambearam, seu tronco desfaleceu... e, se não fosse segurado por Berserker, teria ido de encontro ao chão. A ponto de perder a consciência, sentiu-se apenas ser deitado e erguido nos braços da amazona, assim como quando ela aparara sua queda ao chegarem à cadeia. Ao perceber que a serva começava a correr levando-o dali, ouviu os sons da batalha entre os inimigos se distanciando... e seus sentidos finalmente foram perdidos...

* * * * *

         Ele podia perceber o vento batendo contra seu rosto, a madrugada tendo se tornado repentinamente fria. Ainda não conseguia pensar ou enxergar com clareza, seu cérebro assimilando apenas impressões difusas e borrões. Sentia, no entanto, o calor do corpo daquela que o carregava nos braços... Berserker. Aquela reconfortante sensação o aquecia e ao mesmo tempo o aliviava. Estava a salvo. Ou melhor, estavam a salvo.

         Viu, embaçada, uma flecha enterrada no peito de sua serva. Queria ajudá-la, livrá-la da dor, arrancar dela aquele artefato perfurante que tanto a devia estar fazendo sofrer... mas não tinha forças. Era, até que as recuperasse, dependente por completo do esforço da amazona. E, para garantir-lhe segurança, Hipólita parecia estar fazendo bem mais do que podia.

         Luzes de postes passavam velozes e inatingíveis como vagalumes. As estrelas no firmamento, pequeninos pontos brilhantes, ganhavam caudas de cometa devido a se deslocarem tão rápido pela visão opaca do garoto. O movimento forçado e sobre-humano empreendido pela serva poderia normalmente lhe causar enjôo ou algum tipo de desconforto, mas a paz em seu espírito era incomparável. Poucas vezes na vida se sentira como naquele momento...

         Agora, ela era a mestre e ele, o servo.

         - Jorge, como se sente? – Berserker perguntou em certo instante.

         - E-estou bem... – o calouro balbuciou, ainda semi-inconsciente. – O-obrigado...

         - Poupe suas energias. Eu também dependo delas. Já estamos descendo a colina.

         O jovem perguntou-se se tudo aquilo não passava de um sonho. Talvez estivesse dormindo em sua cama ainda, durante a noite do dia em que soubera ter passado no vestibular. A conversa na lanchonete a respeito do misticismo envolvendo Franca deveria tê-lo levado a sonhar com aquilo, uma visão longa e detalhada... Mas não. Era tudo realidade, ainda que aquela última semana de sua existência mais parecesse ter saído diretamente das páginas de um livro de fantasia. Ele vivenciava mesmo tudo aquilo. Melhor dizendo, aprendia com tudo aquilo...

         - Jorge... – Hipólita chamou-o novamente com uma voz um tanto sumida.

         - Diga...

         - Você não precisa me agradecer. Nunca.

         Apesar da visão distorcida, o estudante pôde enxergar no rosto da amazona... um sorriso.

         E, ao sabor do vento que atingia sua cabeça raspada de forma agradável, fechou os olhos...

* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

         Ele só via árvores.

         Para onde quer que olhasse, fitava apenas raízes, troncos e caules volumosos. Sequóias, carvalhos e macieiras se entrelaçavam. Faias e nogueiras pareciam montar espessas guardas em torno de não tão freqüentes pinheiros. Arbustos abundantes se estendiam aos pés das majestosas plantas e a folhagem destas era tão densa que mal permitiam a passagem dos raios de sol, inserindo a imensa floresta numa semi-penumbra. O chão coberto de folhas caídas gerava ruídos a quem quer que nele andasse, denunciando à vegetação haver ali alguém estranho. Pior ainda: fazendo o senhor daquele cenário ter conhecimento de que seu inimigo ali se encontrava.

         Por isso Rolando procurou permanecer imóvel. Sua armadura de batalha já era barulhenta o suficiente por si só, então não desejava causar mais sons. O problema principal consistia em sua suspeita: imaginava que, de uma maneira ou de outra, seu maldito oponente já soubesse de sua exata posição naquele labirinto de arvoredo – afinal, fora ele aparentemente o responsável por trazê-lo até ali, sem qualquer explicação possível. Até então lutavam no pátio da prisão, Saber levando certa vantagem... Quando, sem mais nem menos, fora parar ali. E o arqueiro desaparecera.

         - Tenho meu próprio código de honra, por isso acredito que jamais compreenderei as normas da cavalaria...

         O guerreiro franco assustou-se com a repentina fala de Robin Hood. Sim, a voz era inconfundível. Porém, não pôde terminar de onde vinha. Com a Durandal erguida, girou sobre os pés, vistoriando o alto das árvores, as sombras junto aos troncos, os arbustos... e nada viu. Absolutamente nada.

         - Essa sua querela para comigo trouxe-o aqui ainda sem ter se recuperado dos ferimentos que lhe causei em nosso encontro anterior. Sinto em seu corpo espiritual uma enorme energia mágica, o que dá a entender ser seu mestre um mago poderoso... porém esta sua investida mostra-se ato digno da mais lamentável burrice.

         Confuso e com seu coração acelerado, Rolando viu-se diante da terrível verdade: a voz de Archer vinha de todos os lados, simultaneamente.

         - Pergunto-me se houve ou não pressão de seu mestre para que me atacasse em tão pouco tempo. Saiba que procurar briga de modo desenfreado não é a melhor estratégia para se conseguir o tal Cálice Sagrado...

         - O que você pode saber sobre o Graal, seu bandido? – desesperado, o cavaleiro franco descontrolou-se.

         - Ah, é uma lenda antiga em minha terra. Canções e mais canções falam do heróico Arthur e seus cavaleiros procurando-o. Acredito que eles queriam encontrá-lo para a glória de Cristo e de Camelot, e blá blá blá. Eu já tenho outro objetivo, caso venha a obter tal peça.

         - E o que alguém indigno como você poderia desejar ao Cálice, gatuno?

         - Como você vai morrer mesmo, acho que não haverá problema se eu contar. Sendo invocado nesta época, percebi, para meu desgosto, que as coisas não mudaram muito desde o reinado de Ricardo Coração de Leão. Ou melhor, pioraram. Nunca houve tanta divisão entre ricos e pobres. Antes esta ocorria dentro de um mesmo reino, com os nobres explorando os camponeses. Hoje, nações inteiras, sendo mais abastadas, sugam as riquezas e o esforço de nações menos favorecidas. Tal exploração não ocorre nem mesmo dentro das antigas normas da guerra, em que existia honra, mas através das sombrias vias das transações com dinheiro. Nestes dias há cinco Joãos Sem Terra e dez Xerifes de Nottingham para cada um que existia em meu tempo. Governantes usam para seu bem próprio as reservas que deveriam garantir bem-estar ao povo. Grupos de poucas pessoas ajuntam para si tesouros que deveriam pertencer a milhões. Caso eu conquiste o Santo Graal, caro Rolando, pedirei a reordenação das coisas deste mundo. Os ricos terão de dividir seus bens com os pobres. Darei fim a essa abismal desigualdade.

         - Um louco devaneio de um ladrão que se acha benfeitor...

         - Que seja. Mas lutarei para alcançar minha meta.

         Saber, constatando que o adversário realmente não pretendia se revelar, tentou apelar para seu caráter:

         - Apareça, covarde! Pare de se ocultar nessas árvores e me enfrente num duelo justo!

         - Sinto muito, mas isso não irá acontecer. Quero terminar logo com isto. Aliás, agora me parece claro que você veio atrás de mim mais por desejo de um mestre imaturo e apressado, do que por sua própria honra. Lamentável.

         A voz de Robin se calou, transcorrendo então uma série de segundos de silêncio, os quais Rolando julgou os mais longos que já vivera... Até que veio o primeiro lance de dor.

         Uma flecha, disparada de uma direção incógnita, perfurou-lhe o braço direito, fazendo-o soltar a espada. Gemeu, sangue escorrendo por sua armadura enquanto estendia a mão esquerda até o projétil, visando arrancá-lo de si...

         E veio o segundo, atravessando justamente a palma da mesma, pouco abaixo dos dedos. Líquido vermelho voou agora sobre seu rosto pálido, o cavaleiro virando enfurecido para trás...

         Somente para ter mais um par de setas cravadas em seu abdômen, dilacerando-lhe o estômago. Sangue desta vez lhe saiu pela boca, numa cuspida.

         Fulminado, Saber caiu de joelhos... ao mesmo tempo em que uma verdadeira nuvem de flechas, provenientes de todas as direções, era disparada contra si.

         Perdendo as esperanças e apenas rogando a Deus para que aquilo acabasse de maneira rápida, Rolando foi cravejado pelas dezenas de setas, que romperam sua armadura como se fosse feita de papel. Seu corpo logo era uma massa disforme vermelha e cinza, os cabos dos projéteis pendendo para fora de si em tamanho número que sua carcaça mais se assemelhava a um porco-espinho. Após o insuperável ataque, a ausência de som voltou a predominar na estranha floresta... enquanto suas árvores, arbustos e o próprio chão de folhas começavam, repentinamente, a desvanecer...

         O corpo do paladino permaneceu alguns segundos estirado no meio do pátio antes de finalmente também se desmaterializar, convertendo-se em pequenos pontos brilhantes que logo igualmente sumiram. Archer encontrava-se de pé ao seu lado, arco ainda em mãos. Da penumbra que cercava o espaço, o estranho mestre de Robin Hood reapareceu, cigarro ainda na boca.

          - Admirável – o indivíduo andrógeno falou numa voz que impossibilitava determinar seu gênero. – Deve ter gastado uma incrível quantidade de prana com esse ataque.

         - Nada que não possa ser reposto... – murmurou o arqueiro, guardando seu armamento às costas. – Ao menos aniquilamos um dos servos. Pena Berserker e seu mestre terem fugido.

         - É uma questão de tempo até reaparecerem. Descobrimos algo que consegue violar a proteção daquela guerreira. Meio caminho andado até a vitória. Só há um contratempo: nosso esconderijo foi descoberto. Não podemos mais permanecer aqui.

         - Isso está longe de ser um problema – o servo sorriu astutamente. – Andei investigando a cidade... Sei de um lugar que nos servirá de forma perfeita!

         Confiando em Robin, seu mestre também abriu um sorriso.

* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

         Jorge via luzes, sentia o vento, ouvia zunidos... sua visão indo e voltando em flashes, seu corpo dormente ora respondendo e ora ignorando seus comandos...

         Quando deu por si, ainda era segurado pelos braços de Hipólita... ela tendo parado diante da fachada do prédio em que se situava a república. Haviam chegado. Berserker, em questão de pouquíssimos minutos, carregara-o da Cadeia Pública até ali.

         - Como se sente? – ela indagou ao rapaz.

         - Um pouco melhor, acredito... – respondeu ele, constatando que já podia se movimentar com mais precisão e o ferimento nas costas não doía tanto como antes.

         Conseguindo agora enxergar melhor, o garoto notou em sua serva expressão de profundo cansaço. Encontrava-se tão ou mais exausta que seu mestre, mesmo possuindo maior resistência em comparação a um humano normal. A amazona ofegava, seu rosto e membros cobertos de suor... e a flecha não mais estava fincada em seu busto. No local em que a ponta penetrara, havia agora apenas uma mancha de sangue que começava a coagular, Hipólita por certo tendo removido em algum ponto do trajeto a seta que atrapalhava sua corrida. A dor, no entanto, não aparentava tê-la abandonado completamente.

         - Nós vamos descansar, Berserker – Jorge disse com voz fraca. – Logo nós iremos descansar...

         Ele era agora acometido de algo mais: fome. Intensa, de fazer seu estômago se contrair. Sabia ser um sinal de que haviam utilizado prana demais na última batalha, precisando agora urgentemente de reposição. Mas, antes de tudo, mostrava-se necessário cair na cama e dormir. Dormir muito.

         - Preciso que você destranque a porta do prédio – pediu a guerreira, retomando seu tom distante de costume. – Não tenho a chave...

         - Oh sim...

         Levando uma das mãos até os bolsos, o estudante retirou de um deles o molho de chaves que lhe havia sido fornecido por Baloo, estendendo-o então à serva... mas, ao erguer o braço, o mesmo oscilou, perdendo força e despencando para baixo, as chaves acabando por cair sobre a calçada.

         O jovem não determinou bem o que ocorreu em seguida, porém sentiu-se amparado por uma parede – Hipólita provavelmente tendo-o sentado na escada em frente à entrada enquanto apanhava as chaves caídas e abria a porta. Em seguida tomou-o novamente nos braços, Jorge percebendo o sacolejar característico de alguém que subia pelos degraus rumo ao apartamento. Ouviu o abrir de uma porta, em seguida vendo-se imerso num ambiente escuro... Quando deu por si, suas trêmulas mãos apalpavam a textura familiar do colchão em seu quarto.

         Virou para um lado, respirando agora de forma bem mais calma... a ferida quase não mais doendo, salvo algumas pontadas... e caiu no sono rapidamente.

* * * * *

O cenário era um inconfundível campo de batalha.

         Aonde quer que se pisasse via-se sangue, um quase tapete líquido, de puro vermelho, cobrindo a outrora verde grama daquele campo. Nesse mar rubro inseriam-se várias ilhas, compostas pelos cadáveres dos inimigos tombados: helenos em seus trajes de combate, tendo perdido os elmos e escudos, que agora também jaziam pelo solo próximos de seus corpos mutilados. O céu, num alaranjado entardecer, revelava a ojeriza do próprio sol ao massacre, que se escondia no horizonte para não ter de contemplar seu violento resultado. A noite, assim, aos poucos despontava, permanecendo como fonte luminosa um templo que, ao longe, ardia em chamas.

         Através dessa paisagem desoladora, um grupo de pessoas caminhava. Seus pés calçando sandálias não viam distinção entre o chão e as carcaças dos mortos, pisando tudo com incrível naturalidade. Viviam, afinal, para a guerra. Não conheciam outra arte ou ofício.

         Hipólita liderava as amazonas naquela investida contra o reino da Lícia. Até o momento não haviam encontrado quase nenhuma resistência, dizimando o débil exército que protegia aquelas terras. Faziam uso de sua incrível habilidade como guerreiras, demonstrando em luta insuperável maestria. E sua rainha, dotada de coragem sobre-humana e agraciada por seu pai Ares com um cinturão que consolidava sua invencibilidade, conduzia seu amado povo sempre à vitória. Uma massa irrefreável de mulheres combatentes capaz de conquistar qualquer território daquele mundo em que os mortais, muitas vezes, constituíam mero joguete nas mãos dos deuses.

         Foi quando um novo adversário surgiu no horizonte de tom cada vez mais escuro. Ao contrário dos soldados já enfrentados, aparentava ser oponente mais desafiador. Jovem e forte, vinha montado num esplendoroso cavalo branco de asas, voando pelo céu de encontro às inimigas. Seria aquele o bravo Belerofonte, guiando o famoso Pégaso?

         Não importava. Hipólita e suas amazonas também lutariam contra ele. Guerrear era suas vidas. A rainha não se sentia nem um pouco intimidada. Se aquele garoto fora privilegiado pelo Olimpo, ele estava para descobrir que ela igualmente havia sido...

* * * * *

         A luz do sol, pela janela, fez Jorge despertar. E ele não fazia idéia de que horas eram.

Aos poucos abriu totalmente os olhos. Agora sua cabeça também doía, além das costas. Vestia ainda a mesma camiseta rasgada pela flecha e manchada de sangue – este tendo também deixado algumas marcas no colchão. Sonhara mais uma vez com um momento da vida de Hipólita – que permanecia sentada num canto do quarto, cabisbaixa – porém o rapaz nem se importou muito com aquilo. Sua maior preocupação era como explicaria aos veteranos o ferimento que sofrera e o fato de ter dormido tanto, sendo que para eles havia se deitado cedo na noite anterior.

O local permanecia fechado. Felizmente Berserker, ao que parecia, trancara a porta durante a madrugada, evitando assim que Baloo e Marcos adentrassem o cômodo para acordar o “bixo”. Dependendo da hora, era certo que já haviam batido e gritado por ele do outro lado, então teria de pensar numa ótima desculpa antes de ousar sair dali. Não via a tarefa como sendo muito fácil...

Apanhou o celular para verificar que horas eram, mas a bateria havia acabado. Levantando-se num resmungo, uma fisgada nas costas fazendo-o curvar-se de leve, Jorge apanhou seu carregador dentre suas coisas e ligou o aparelho a uma tomada. Foi quando ouviu sua serva murmurar, fitando o vazio:

- Nós perdemos para Archer... e a culpa foi minha.

- Não fale isso – discordou o garoto, aproximando-se da guerreira. – Você sabe que não é verdade.

- Não minta para me consolar. Se eu não houvesse me descontrolado, como prometera, poderíamos ter lutado com mais calma e buscado um ponto fraco do inimigo. Porém, novamente, a fúria me dominou, cegando-me... E tivemos de nos retirar. Um recuo humilhante, por minha culpa.

- Hipólita... – Jorge abaixou-se de frente para a amazona, contemplando-a nos olhos. – Se alguém teve culpa nisso tudo, ela é mais minha do que sua. Subestimei nosso inimigo. Deveríamos ter planejado melhor, nos preparado mais. Eu poderia ter previsto que ele encontraria uma maneira de superar a proteção do seu cinturão, mas a autoconfiança me impediu de pensar... Se sua fúria a prejudica, meu orgulho, então, torna-me cego ainda mais!

- Mas, eu...

Nisso, duas fortes batidas seguidas foram ouvidas sobre a porta do quarto, dadas no corredor. A fala de Baloo acompanhou-as:

- Estou ouvindo sua voz aí dentro, bixão. Você não nos engana mais. Não sei se trouxe alguém aqui para o apartamento ou se está só falando no celular, mas saia logo daí. Venha comer a marmita que nós te trouxemos.

É, o calouro teria mesmo de encarar o urso e seu companheiro calado. Levantando-se, caminhou novamente até seus pertences, trocando de camisa. A ferida ao menos parara de sangrar, então poderia disfarçá-la na frente dos veteranos. Rumou em seguida até a porta e, já com a mão na maçaneta, virou-se para Berserker e lhe disse antes de sair:

- Fique aí. Eu não demoro.

Preparou-se então para ouvir as perguntas e gracinhas de seus colegas de república... imaginando se não seria mais árduo do que batalhar contra os outros servos...

Passando pela sala, Jorge viu a figura do Faustão na TV ligada. Devia ser mais de três da tarde. Baloo e Marcos estavam conversando na cozinha. Procurando manter a calma e agir naturalmente, ele também a adentrou.

Viu-os sentados em volta da mesa redonda. Enquanto o aluno de História passava margarina em algumas fatias de pão – seu provável café vespertino – o de Direito tinha diante de si um caderno aberto, estudando enquanto tomava um copo de leite. Um pouco desnorteado, o recém-chegado lançou os olhos pelo ambiente em busca da marmita há pouco referida. Logo encontrou um saco plástico contendo um recipiente de isopor sobre a bancada da sala. Caminhou até a mesma, ignorando os veteranos até ouvir Baloo inquirir:

- Por onde esteve, bixão?

Não havia como escapar àquela pergunta. Para piorar, Marcos jogou mais lenha na fogueira:

- Saiu com a garota lá, né? E nem pra nos falar nada!

Jorge sabia! Sabia que eles iam interpretar sua ausência noturna e o fato de ter dormido tanto como uma madrugada passada com a ficante que não existia! Não seria tão difícil encenar, então. Resolveu entrar no jogo:

- Desculpem-me por não ter falado nada. É que vocês têm sido meio indiscretos com isso, desde ontem... Não curto muito ficar conversando sobre esses assuntos. Mas sim, eu fui até a república dela.

- Eu falei, eu falei! – riu Marcos. – Come quieto do caramba!

- E você comeu, bixão? – Baloo arregalou os olhos.

Ironicamente, o garoto só conseguia pensar na figura de Robin Hood, que lhe era nada excitante, ao mentir:

- Bem... comi!

A dupla de veteranos explodiu em euforia, ambos levantando-se da mesa. Parecia que o Brasil ganhara a Copa do Mundo. Jorge sorriu sem graça, ao mesmo tempo em que o rei da república se aproximava de si e exclamava:

- Sir George, Cavaleiro de Kamelot e encanto das donzelas!

Complementou a saudação com um forte tapa nas costas do calouro...

E este por pouco não caiu, tentando disfarçar a dor que se propagou por seu corpo, chegando até a lhe gerar lágrimas nos olhos.

- Não chora de felicidade não, bixo! – riu Marcos.

O mestre de Berserker, conseguindo ocultar sua ligeira tremedeira, encostou-se à bancada... e, minutos depois, na primeira oportunidade que encontrou, saiu correndo até o banheiro, alegando estar com dor de barriga.

Ao virar-se de costas para o espelho, constatou que o ferimento voltara a sangrar, criando uma enorme mancha na parte de trás de sua camisa!

Até que aquilo se fechasse completamente, teria trabalho em escondê-lo dos animados veteranos...

* * * * *

         O restante do domingo transcorreu de maneira até tranqüila. Jorge passou mais algum tempo conversando com Baloo e Marcos, porém se esquivando de qualquer tentativa de se abordar a suposta garota. À noite, após um jantar improvisado com coisas compradas na padaria próxima ao prédio, o jovem se recolheu no quarto – alegando ter de estudar – junto com sua serva, levando para ela alguns pães e leite. Ao ser questionado pelos veteranos a respeito, o garoto explicou que comeria aquilo enquanto lia seus textos, já fazendo assim um lanche noturno.

         - Cuidado, hem! – brincou o aluno de Direito. – Desse jeito logo vai estar do mesmo tamanho que o Baloo!

         Este retribuiu com um tapa na nuca do colega, tão forte quanto o que desferira contra as costas de Jorge horas antes.

         Fechado em seu cômodo, o calouro sentou-se no colchão e observou Hipólita se alimentar sem pronunciar qualquer palavra. Pelo visto, ela ainda se sentia culpada pelo que acontecera durante o ataque contra Archer. Assumia, mais uma vez, a postura cabisbaixa e resignada que tanto incomodava seu mestre, o qual preferia vê-la em seu modo ativo e participativo, como no dia anterior, o máximo de tempo possível.

         - Berserker, já lhe disse para não se marginalizar assim. Ninguém tem culpa do que houve. Numa guerra há vitórias e derrotas.

         A amazona, no entanto, nada respondeu. Aparentemente não se pronunciaria acerca daquilo e não concordava com as palavras de Jorge, que tinha certeza do que falava. Era fato que a guerreira ter se descontrolado em combate os prejudicara, porém o estudante também errara ao não planejar melhor, e não fora pouco. Tinham na verdade de evitar os erros já ocorridos nos próximos confrontos com servos, mas não ficarem se remoendo por tê-los cometido. Aquela situação já começava a irritar o rapaz. E foi um tanto sem pensar que ele disse:

         - Está bem. Você pode ficar chorando pelos cantos se quiser. Exige confiança de mim, porém não consegue acreditar em minhas palavras. Ótimo. Se não pode ter um pouco mais de amor próprio, nem comigo deixando claro que não há nada errado, então não posso ajudar. Apenas siga lutando até o final desta guerra, é o que lhe peço. Eu havia ganhado um novo ânimo em combater por achar que você merecia o Cálice Sagrado, Hipólita. Mas, torturando-se dia e noite dessa maneira, não ousando persistir em nosso objetivo... eu já começo a me questionar a respeito disso.

         Berserker nada replicou, como já era esperado. Continuou estática, calada, distante. Bufando, Jorge apagou a luz e deitou-se para dormir. Tinha coisas importantes a tratar no dia seguinte: além de ir ao hospital tratar de sua ferida, a qual poderia acabar piorando se nada fizesse, tinha de verificar se tudo estava mesmo bem com Petruglia e preparar uma boa estratégia para lidar com os próximos servos. Contava com Hipólita ainda batalhando ao seu lado, porém julgava-se não mais capaz de suportar tantas crises de descrença e tristeza...

         Ansiando por melhores ares, o garoto logo adormeceu, sofrendo ainda os efeitos do cansaço da última luta travada.


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