(un)vollstndige escrita por Annie k3


Capítulo 1
Gefroren


Notas iniciais do capítulo

Todos os fatos históricos aqui citados foram devidamente consultados (professor de história, inclusive) porém, não use essa fanfic como guia para seus trabalhos escolares x3'



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GEFROREN

Rússia ocidental, 1942 – cidade de Stalingrado.

            – Este frio ainda vai matar a todos nós! – Exclamou Kohwalter, ao mesmo tempo em que esfregava as mãos enluvadas, e o ar saindo-lhe condensado dos finos lábios secos.

            – Isso se os malditos russos não o fizerem primeiro. – Completou Linsenbröder, soturno. Suas palavras soaram abafadas devido ao pano que mantinha cobrindo-lhe toda a cabeça, com exceção dos olhos e parte do nariz, a fim de conservar calor.

            Ambos se encolhiam tremendo, um de costas para o outro, dentro de um abrigo que um dia fora uma casa; estava sem iluminação e semi-destruída, cheia de escombros, mas, felizmente, ainda com cobertura. No entanto, flocos de neve dançavam pelas aberturas nas paredes feitas por cartuchos de ambos os lados beligerantes e pela patente onde antes era uma janela com vidro.
Ventava cruelmente lá fora naquele começo de tarde, de modo que assobios finos eram facilmente audíveis.

            Eles eram soldados do Führer, membros do 6° Exército alemão, baseados em Stalingrado, uma cidade no sudeste da URSS às margens do rio Volga e alvos da 13ª Divisão de Rifle de Guarda do 62º Exército soviético, cabendo aos alemães a defesa desesperada das ruínas onde até mesmo os cães evitavam.

            Kohwalter ajeitou o gorro sobre a cabeça, equilibrou como pode o rifle com luneta em cima dos joelhos e enfiou as mãos nos bolsos do capote enquanto Linsenbröder apoiava-se em sua submetralhadora e com o capacete descansando ao seu lado - ele realmente odiava utilizá-lo por muito tempo, sempre reclamando que sua cabeça ia explodir de dentro pra fora, muito embora aquele pedaço de aço já o tivesse salvado algumas vezes.

            Franz Kohwalter era o mais novo, tinha completado 27 anos a poucas semanas e de presente ganhou um tiro em sua mão esquerda e uma bela inflamação, foi-lhe recomendado trocar a gaze a cada dois dias, mas, obviamente, aquilo era impossível e o tecido poroso que antes era branco tinha agora uma cor amarelada e de aspecto gosmento; e esse era, de longe, o menor dos problemas, afinal estavam em guerra.

            Estavam em um inferno congelado.

            – Camaradas!

            Como que despertados pela voz grave e pesada, instintivamente os dois apontaram suas armas na direção da entrada. Tiros e explosões eram ouvidos ao longe, num concerto de morte comum na cidade. O som da guerra não cessava nunca.

            – Pelo amor de Deus! Camaradas! – E a figura desesperada surgiu na porta, tropeçando em um dos pedaços de concreto. Ele caiu desgraçadamente, sua arma escapando-lhe da mão. Estava todo coberto de neve e sujo de sangue, fedendo como um mendigo. Todos eles fediam.

            – Céus! Lipphaus! Scheisse!¹ – Espantou-se Linsenbröder, levantando-se com certa dificuldade para ajudá-lo.

            O soldado juntou forças para falar, entre pesadas respirações, enquanto Kohwalter olhava-o apreensivo, sabendo que aqueles eram os momentos finais dele. Correu em direção à parede da entrada, deitando-se a fim de observar o exterior por um buraco.

            – Os russos estão retomando este setor, casa por casa! – Informou o recém chegado.

            – Mas nós temos mais de uma companhia inteira espalhada por esta região! – Surpreendeu-se Linsenbröder. – O que aconteceu com nossos homens? E aqueles malditos, não estão tão famintos quanto nós?

            – Eles são porcos! Comem qualquer coisa, Linsenbröder! Mas aqueles infelizes estão sem bombardeiros, a nossa Luftwaffe destruiu mais de 2000 aviões. E agora os malditos estão sedentos por vingança! Temos que fugir daqui! – Disse com dificuldade, pois o sangue subia por sua garganta, asfixiando-o aos poucos.

            – Não. – Informou friamente Kohwalter, enquanto preparava seu rifle. – A força não repousa na defesa, mas no ataque. – Repetiu a frase que seu líder havia proferido em um de seus discursos quase que silenciosamente para si.

            – Hitler não está aqui, camarada.  – Informou o soldado, olhando por cima do ombro, referindo-se à última frase do amigo. - Vamos pelo menos reagrupar com o resto da tropa para deliberarmos a próxima operação. – Respondeu Linsenbröder, largando cuidadosamente o corpo de Lipphaus, já morto.

            Kohwalter apenas lançou-lhe um olhar de soslaio. Se não bastasse o frio e a fome, estava com raiva pelo fato do companheiro falar em comida que não tinham, além de estranhar o fato de sua Divisão não ter se livrado dos russos.

            – Pegue-lhe as roupas – Apontou com o rifle para o cadáver e depois para o companheiro. – E vista-as, se estiver com muito frio. Não se esqueça da munição. Apanhe suas coisas e me siga. Não há tempo para encontramos o pessoal. De resto, também temos alguns franco-atiradores lá fora. Vamos!

            Linsenbröder balançou negativamente a cabeça, suspirando, e alcançou seu capacete, colocando-o com cuidado. Depois de pegar um cachecol extra e mais um colete, além de alguns carregadores para os bolsos vazios do cinto de couro gasto, tossiu e levantou-se para acompanhá-lo.

            Sentia uma canseira que insistentemente se recusava a abandoná-lo e quase não se importava mais com as eternas dores de cabeça, de barriga e das pernas.

            – Venha atrás de mim. – Ordenou Kohwalter, esgueirando-se na aresta da parede e perscrutando, com atenção, a rua.

            O tempo castigava-o brutalmente; seu nariz quase não funcionava mais e os ferimentos mal curados de estilhaços de granada por vezes incomodavam-no. Mais de uma vez infeccionara-se por causa deles, mas seu maior medo era ter que amputar qualquer um de seus membros por gangrenarem de frio. Preferia morrer congelado a isso. Por conta disso enraivecia-se por ter que deitar na neve.

            Kohwalter era o mais novo dos quatro filhos, e provavelmente o único vivo; a última notícia que teve foi que seu irmão, Hanz, havia sido morto em combate na cidade de Leningrado. Seu outro irmão havia sido dado por desaparecido assim como sua única irmã, Alesha, que servia como enfermeira.

            Uma lágrima furtiva escorreu-lhe pelo rosto jovem, porém sofrido. Uma mão pousou-lhe no ombro.

            – Estou com você. Deixe-me assumir a frente. – Sorriu o companheiro, um sorriso amarelo e torto incrustado num rosto envelhecido e escuro de suor e fuligem. – Não tenho os olhos tão treinados quanto você, mas posso dar conta do recado.

            De fato, os olhos de Linsenbröder estavam acostumados a lerem livros e não a avistarem inimigos. Ele era o orgulho da família, um desses raros seres que transcendiam o meio em que viviam. Nascido em Nettetal, filho de operários de tecelões, trabalhou muito e venceu preconceitos para entrar na Universidade de Berlim. Nutria a intenção de ser escritor.

            No entanto, quando houve o chamado à guerra, não pôde escapar à convocação. Como conscrito, participou da defesa da cidade, sendo posteriormente enviado à Stalingrado. Foi lá que conheceu o amigo, coisa rara em tais tempos difíceis, ainda mais quando se podia perdê-los num piscar de olhos ou num movimento de gatilho.

            Kohwalter gesticulou para que assim se fizesse.

            Ondas de fumaça subiam ao céu ameaçador, severo e cinzento cujas nuvens escondiam um Sol morto, quando Linsenbröder lançou-se, cauteloso, para fora e sua mente trabalhou rápido, de olhos entreabertos, para mapear um perímetro. Nem se dava conta de que fazia isso a todo o momento.

            – Algum russo? – Perguntou Kohwalter, desconfiado e apertando com certa ansiedade a coronha de sua arma.
           

            – Não. – Sussurrou o outro. – Vamos.

            – Espere. De onde Lipphaus veio? – Perguntou enquanto parava por um momento olhando furtivamente para os lados.

            – Não sei. O vento fez com que a neve apagasse suas pegadas.

            – Mais cedo do que eu esperava... – Parou por um momento coçando o nariz aquilino, pensativo e continuou. – Alguma marca de sangue?

            – Só pode estar brincando! Há sangue por toda parte!

            Repentinamente, ouviu-se um assobio fino e agudo, seguido de uma forte explosão que pôs abaixo restos de construções a alguns metros deles, ao mesmo tempo em que gritos foram rapidamente silenciados.

            – Franz! Você está bem? – Desesperou-se Linsenbröder que, assim como o mais novo, estava deitado no chão devido à explosão. – Kohwalter?! – Apoiou os cotovelos no chão e se arrastou até o corpo do mais alto, sacudiu de leve o mais novo pelos ombros e deu um ou dois tapas na face do outro. – Responda, infeliz!

            Franz gemeu em resposta. Linsenbröder pousou os dedos nas pálpebras do mais novo, separando a superior da inferior o mais delicadamente que pode naquela situação, as íris azuis extremamente claras do companheiro giravam incansavelmente, como se estivessem em órbita. Praguejou enraivecido pela situação moribunda de Kohwalter, afinal seria mais prático se ele estivesse vivo ou morto, ficar entre esses dois estágios só complicava ainda mais as coisas.

            – Mate-me. – Ordenou Franz em um tom de urgência. – Já estou condenado, Gregor. Mate-me, homem!

            – Você vai pro inferno, mas não agora! – Ergueu o pescoço e cerrou os olhos procurando algum sinal de vida, independente se fosse russo ou alemão. – Vou te levar para a enfermaria.

            – E-eu... Eu não sinto minhas pernas. – Informou Kohwalter com a voz trêmula.

            – Bom para você. Eu já não sinto nada. – Deu um meio sorriso e despediu-se de sua sanidade.




            Abriu os olhos lentamente e ao sentir suas pupilas se contraírem com a luz fraca e branca fechou os olhos novamente, com força. Franz sentia sua cabeça, mas desejava fervorosamente não senti-la; era uma dor incessante que tomava conta de sua testa e têmporas dando a sensação de que seu crânio era pequeno demais para seu cérebro, pois a pressão aumentava ritmicamente.

            Umedeceu os lábios e engoliu em seco, um gosto diferente, não era só o sabor metálico, havia um vestígio de algo amargo talvez ácido em sua boca. Abriu novamente os olhos, a luz não o incomodava tanto já que agora ele olhava para os lados. Enfermaria. Havia outras dezenas de corpos ao seu redor, alguns provavelmente estavam ali há muito tempo, pois o cheiro podre inundava seu cérebro. Foi então que percebeu que conseguia respirar um pouco mais normalmente agora. Sorriu sarcasticamente para si mesmo, afinal, esperava tanto conseguir sentir o cheiro de stollen² que sua mãe preparava no Natal, e agora só conseguia sentir o cheiro de morte.

            Tentou olhar para seus pés, erguendo um pouco a cabeça, mas deixou-a cair no travesseiro indelicadamente; estava pesada e parecia girar mais rápido que o ponteiro do segundo de seu relógio. Bufou descontente e aproximou o queixo do próprio peito a fim de conferir seu estado atual, porém, um fino lençol – que um dia fora – branco cobria seu corpo a partir da cintura. Uma inoportuna coceira o chamou perto de seu joelho direito e ia aumentado à medida que os segundos se passavam, esticou o braço lentamente, sentindo os músculos tencionarem e depois relaxarem de novo, e tocou por cima do lençol o lugar incômodo. Com a ponta dos dedos fez uma pequena pressão e depois coçou delicadamente o lugar, sentiu os dedos ficarem úmidos aos poucos e uma pequena ardência tomou conta de sua coxa. Levou a mão até o próprio rosto e viu as pontas dos dedos pintadas de sangue.

            Murmurou algumas palavras chulas enquanto limpava a mão no lençol. Apoiou-se com os cotovelos e foi erguendo o tronco devagar na tentativa de não ficar atordoado novamente. Respirou fundo, sentindo o ar quente afagar sua face, o contraste de temperaturas o fez sentir um leve e rápido arrepio. Deu um leve tapa em sua própria face e a alisou em seguida. Com o dedo indicador e polegar contornou o buço e deslizou os dedos até o queixo lentamente. Ainda sentado na maca, esticou vagarosamente os braços, e depois as pernas, flexionando os pés para frente.

            Foi só então que percebeu.

            Franz olhava fixamente para o volume – ou falta de – de sua cintura para baixo. Estava mais assustado agora, do que em qualquer outro momento da guerra. Os lábios finos, porém luxuriosamente desenhados, estavam secos e cadavéricos, sua pulsação deveria estar mais alta dos que as granadas que explodiam a cada minuto, mais forte do que qualquer canhão. Mordeu o próprio lábio inferior e num único gesto puxou o lençol de seu corpo deixando-o cair no chão preguiçosamente.

            Sua perna esquerda estava ali, o mais intacta possível depois de quase um ano na guerra, mas sua perna direita simplesmente não existia; ele só via uma parte grotesca e inchada de seu corpo. Sua perna agora terminava na coxa ou algo parecido com isso, pois a extremidade tinha uma forma arredondada vulgar, os pontos ainda recentes e a pele antes branca tinha um tom roxo e monstruoso. Soltou a respiração que nem sequer havia percebido que estava prendendo e guiou sua mão trêmula até aquela coisa. Nada. Não sentia nada tocando aquele pedaço de pele remendado, seguiu a linha torta dos pontos com certo receio e nojo e ainda não sentia nada, apenas um forte incômodo dentro de seu estômago.

            – Sgt. Kohwalter terei que providenciar um colar elizabetano para o senhor? – Um enfermeiro com cabelo loiro estranhamente acobreado perguntou enquanto empurrava o mais alto em direção à maca.

            – Ca-cadê a porcaria da minha perna?! – Relutou enraivecido. – E o que é aquilo?!

            – Você teve muita sorte de ter perdido só uma perna, Sgt. Kohwalter. – Informou o mesmo enfermeiro, enquanto puxava o lençol até a cabeça do corpo ao lado de Franz. – Muita sorte.

            Verpiss dich!³ Não seja ridículo! Onde está Linsenbröder? Onde está aquele infeliz? Por que ele não me matou naquela hora?! Aquele desgraçado! – Berrava em plenos pulmões e irritava-se ainda mais pelo fato do enfermeiro parecer não se incomodar com ele, parecia sentir pena.

            O homem vestido de branco olhou para os próprios pés por alguns instantes e então fitou os olhos azuis gélidos de Franz. Ele estava sentando toscamente na maca novamente. O peito se mexia violentamente sobre o uniforme cinza e surrado, as sobrancelhas grossas e douradas estavam tão próximas umas das outras que poderia dizer que era uma só. Permaneceu com o maxilar trincado e as mãos em punho sobre o colo encarando a mais baixa.

            – Você teve muita sorte, Franz. – Repetiu, com a voz rouca, enquanto afastava delicadamente o lençol do mesmo corpo que há pouco havia coberto, deixando à mostra o corpo robusto e pálido de Gregor Linsenbröder.

¹ Merda!

² É um doce muito, mas muito bom! É parecido com panetone, mas tem uma cobertura que lembra glacê.

³ Foda-se!


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Notas finais do capítulo

Antes de tudo, desculpem pelos palavrões T_T Eu não me sinto bem escrevendo-os quem dirá falando. Mas visto a situação que eles estavam foi necessário, né?

Essa fic nem era para estar aqui x3 Eu estou com outra fic em andamento e mal dou conta, então (Un)Vollständige vai demorar um pouco para ser atualizada, mas não desistirei dela.

Tive a ideia dessa fic assistindo um filme da Barbie x3 O do Quebra Nozes, ou seja, a fic não terá mais pessoinhas perdendo a perna, agora é tudo amor... Ou não. Vollständige significa completo, logo "Un" é o sentido de negação. No final da fic cada um poderá julgar se os personas são completos ou não.

Se alguém tiver dúvida em como se pronuncia isso, eu ajudo õ Adoro falar em alemão, é só cuspir e enrolar a língua -mentira.

Ah sim, Gefroren significa congelado. Brrrr ~

Ficaria feliz se alguém deixasse um review :3 Nem que seja pra me xingar de palerma x3'