Assim que saí da mansão, vitoriosa, com o gosto de vingança na boca, humana novamente, tendo ajudado meus falecidos amigos e a certeza de que eu sairia da Califórnia em breve, eu estava muito feliz. Sentia-me realizada por poucas vezes na vida, e posso jurar que dessa vez, me senti completa. Eu girava o cartão de crédito na mão durante muitos minutos seguidos, pois estava muito ansiosa, creio eu, para sair daquele lugar que me trazia tantas lembranças ruins sobre meu passado.

Mudar para Ottawa seria uma ótima ideia. Eu conheceria os sobrinhos de Celéstica, os filhos de Ricard, a futura nova rainha dos anjos malignos. Eu poderia finalmente começar a trabalhar, ter amigos, formar uma família com alguém. Seria um novo capítulo em minha vida e, sinceramente, eu estava adorando.

Com essas ideias em mente, fui andando vagarosamente até o shopping, que não ficava nem cinco minutos de distância da mansão obscura em que eu estive alguns minutos atrás. O shopping era muito grande e parecia intimidar muita gente só de se olhar pela porta – as pessoas que frequentavam aquele shopping eram completamente da alta sociedade. Ricos. Confesso que entrando naquele lugar e ver todos me observando foi realmente uma experiência estranha, e apesar de passar todos os meus 18 anos de vida sendo uma estranha, aquilo me causou arrepios. Os olhares que fitavam minhas roupas e meu pequeno cartão de crédito que ainda não havia parado de girar entre meus dedos me causaram medo – depois de tanto tempo sendo um anjo, fiquei com medo que reparassem em meus poderes, que, aliás, eu nem tinha mais.

De todos os estranhos que me cercavam apenas um me chamou atenção. Era uma mulher muito branca, com os cabelos extremamente coloridos, que usava uns óculos de sol e uma bolsa vermelha. E quando eu digo que a mulher possuía os cabelos muito coloridos eu não mentia – o cabelo da mulher de início era de um loiro quase branco e o resto era pintado de azul, lilás, vermelho, amarelo, verde e rosa. Parecia um verdadeiro arco-íris. Mas não reparei nela por causa dos cabelos, e sim porque ela me olhava a cada passo que eu desse e a cada passo que ela dava. Ela não parecia vir da alta sociedade, mas pouco me importava. Ela estava me encarando descaradamente.

Em todas as lojas que entrei, a mulher do cabelo de arco-íris entrou também. Escolheu as mesmas roupas que eu, e por mais que o dia estivesse um pouco nublado, ou por mais que dentro do shopping não faça sol, ela nunca tirava aqueles óculos que usava. Parecia estar me vigiando. Outro problema era que ela tinha uma marca nos pulsos e outra atrás da orelha, exatamente como Estellanice e Alley, porém, ao invés do mero rabisco que era escondido pela orelha das duas irmãs, a mulher possuía uma coroa desenhada.

Assim que saí do shopping a mulher saiu junto comigo. O estranho foi que num piscar de olhos meus, a mulher desaparecera completamente. Eu estava com diversas sacolas nas mãos, então, seria ainda mais cansativo procurá-la, por que eu não tinha mais minhas asas.

Fui andando pelas ruas até encontrar o casebre amarelo. Quando bati na porta, reparei que as malas de Lexi e Stormie já estavam prontas e foram postas do lado de fora da casa. Ricard estava sentado do lado das malas, batia o pé freneticamente no chão e estava fumando. Exatamente como Dark fazia quando estava tentando se acalmar.

_ O que ocorreu? - sentei do seu lado e comecei a chutar algumas britas que estavam espalhadas pelo chão.

_ Alexandra está chorando lá dentro. Ela não quer ir para Ottawa, pois não quer conhecer minha esposa - ele jogou o cigarro fora e pisou em cima do objeto -, aliás, ela não quer ir por que terá de ver eu e minha esposa aos beijos quando chegarmos. Ela não quer conhecer meus filhos - Ricard afundou a cabeça nas mãos e apoiou os braços em cima dos joelhos.

_ Ricard... sabe que Lexi sempre foi apaixonada por você desde que chegou não sabe? Sabe que você demonstrava sentir o mesmo por ela. Por que a enganou então? - olhei para o resto dele.

_ Eu precisava me aproximar da Celéstica. Fazer ela se apaixonar por mim não era parte dos meus planos.

_ E porque demonstrou que estava apaixonado por ela?

_ Naquela época, eu estava. Eu era casado, mas comecei a me sentir atraído por Alexandra, mas eu nunca poderia deixar minha esposa, traí-la, só para ficar com a Lexi. Tive que tomar medidas mais drásticas. Mas eu não consegui. Eu não resisti.

_ Você traiu a...

_ Sim, eu trai minha esposa com Alexandra. E eu falei com Alexandra que eu era casado, mas ela pareceu entender que era uma piada. Não importava o quão sério eu dissesse. Ela começou a pensar que realmente fomos "feitos um pro outro". Mas quando a chamei para ir pra Ottawa para conhecer minha esposa e meus filhos, ela desabou. A ficha dela caiu que era uma brincadeira.

_ Você é um desgraçado mesmo... - me levantei depressa - Como teve coragem de trair sua esposa, seu imbecil? Ficou louco?

_ Emil... a Wender me trai sempre que pode com o Dark. Ela foi a primeira vítima dele. Eu sei que você já foi abusada. Pois bem... Wender foi a primeira vítima, porém, ao contrário de você, ela se apaixonou por ele. Não me pergunte como, de acordo com as teorias psicanalísticas isso não é possível, porém... ela se apegou a ele.

_ Mas Dark não ficou com ninguém esses dias... Não que eu me lembre.

_ Ela virou uma maníaca por aquele rapaz e com toda certeza, e ela já sabe de sua existência. Não me surpreenderia se ela tivesse te perseguido no shopping hoje. Como eu disse, ela tem ligação comigo, pois sou o guardião dela. Ou seja, consigo saber tudo que ela pensa.

_ Ela é uma mulher branca dos cabelos coloridos?

_ Eu sabia... - ele gargalhou. Ricard gargalhava demais... - Sabe, Emil, é proibido que um chefe de província se case com outro. Por isso que Dark e Wender sempre se encontram às pressas.

_ Como você explica o caso de Pedro e Clea? - isso havia me deixado na dúvida.

_ Por que você acha que foi mais fácil para o Pedro trair Clea? Os dois são chefes de províncias diferentes. Também é proibido um guardião ter um caso com uma chefe. Emil, os chefes sempre tem mais tendência a trair. Só que como Dark é o chefe maior, então... ele fica com outras garotas além de Wender. E sim, aquele é o jeito dele ficar com elas.

Ouvi a porta abrindo e vi que eram as irmãs. Entramos no carro de Ricard e partimos para o aeroporto.

Assim que entramos no avião, vi que Alexandra e Ricard se sentaram juntos. Pelo o que eu percebi, eles ficaram se encarando por um bom tempo, e depois, Ricard colocou a mão sobre a dela. Ela abaixou a cabeça e desviou o olhar. Enquanto isso, eu e Stormie sentamos juntas. Eu realmente fiquei feliz por ter virado humana e agora, não sentir medo de mais nada. Eu ainda estava receosa pela esposa do Ray, mas isso não era problema. Com toda certeza Ray me protegeria, agora que virou meu amigo. Eu só não sei se ela pode querer machucar a Lexi, porque obviamente, ela é amante do marido dela... pra falar sério, só quero que tudo acabe bem o mais rápido possível.

A viagem não demorava muito, mas eu estava me sentindo desconfortável ao extremo assim que notei que um homem dos cabelos negros e desgrenhados olhava para mim. Percebi um brilho nos olhos dele e me encantei. Quis saber quem ele era, já que estava sorrindo e olhando para mim. Eu de vez em quando dava um sorrisinho de lado, e ele respondia sorrindo também. O que será que ele queria?

Assim que a viagem acabou, o homem no qual eu tinha trocado olhares veio falar comigo. Ele pediu o meu telefone e eu acabei por dar o número da casa do Ray. Ele sorriu pra mim novamente e apanhou a mala, e foi andando pelo aeroporto. Stormie havia dormido a viagem inteira e ficou tonta assim que acordou, e por incrível que pareça, Ray e Lexi estavam se beijando devia ter uns 10 minutos - eles só paravam para respirar, eu imagino. Fiquei imaginando como o Ray pôde ter tido coragem para fazer uma asneira dessas enquanto está viajando para reencontrar a esposa.

Assim que descemos do avião, o táxi já estava a nossa espera na frente do aeroporto. Chegamos em Ottawa muito cansados, e a Lexi ainda estava cambaleando de sono. Eu pude ver dentro do carro a esposa dos cabelos coloridos de Ray segurando a mão de uma menina com os cabelos cor-de-rosa.

_ Está vendo, Emil? Aquela de cabelos coloridos é minha esposa, a de cabelos cor-de-rosa é minha filha. Os meus dois outros filhos estão em casa, eu acho - Ray falou e esboçou um sorriso orgulhoso.

_ Eu jurava que você só tinha dois filhos. Os gêmeos, de quem você me falou - eu olhei para ele com a cara confusa.

_ Ah... mas essa é filha de Dark com minha esposa. Ela só a adotou, porque Dark não aceitaria ficar com a menina.

A história dos anjos malignos era mais complexa do que se podia imaginar. Eram tantos filhos, tantos abandonos, tantas coisas estranhas e absurdas que você poderia até se perder. Miguel - a Cheffia da velha geração - era pai de Celéstica e de Ricard. Após alguns anos depois de ter se casado, ele se trancou no escritório e só possuía visitas da filha mais velha, Celéstica. Se tornou um anjo maligno, tornou a filha Celéstica um anjo maligno, transou com a própria prima - que engravidou logo depois. Mag não assumiu a filha, baniu a própria prima e foi morar em uma mansão onde pudesse fazer o que quisesse. Celéstica abandonou a mãe e o irmão por que se apaixonou pelo pai. A mãe abandonou o filho por ter perdido o marido. Mag transou com uma amiga e teve Dark, seu sucessor. Após Celéstica me transformar em anjo, me levou para morar na mansão junto com o Mag e o Dark até os 13 anos de idade. Depois, saímos de lá e fomos morar sozinhas. Por fim, Mag, por não poder ter um relacionamento amoroso com a própria filha - apesar de ter tido um relacionamento com a mesma -, mandou a filha se casar com o meio-irmão, Dark. Dark estuprava meninas por não poder fazer sexo com sua irmã, e algumas delas foram eu, Gitié, Susaj e inclusive a esposa de Ricard, irmão de Celéstica. Ray foi traído pela sua esposa, e traiu a sua esposa com uma anja maligna, que no caso é Lexi. Dark engravidou a esposa de Ray, e a mesma teve uma filha com os cabelos cor-de-rosa. Dark não assumiu a filha. Ray teve dois filhos gêmeos fraternos com sua esposa. E essa é a história por trás dos anjos malignos. É uma loucura. Ninguém nunca entendeu.

_ Ei... sou Amilia! - a menina de cabelos cor-de-rosa estendeu a mão.

Eu tinha pensado tanto tempo que nem percebi que tinha chegado até o táxi.

_ Hm, é... - tentei me concentrar - Oi, sou Emil - sorri.

_ Por favor, não repare muito na cara da minha mãe, é porque ela é obsessiva pelo Dark e... - Amilia se calou quando percebeu que o pai estava se aproximando - enfim, ela tem alguns ressentimentos com você.

Quando olhei para o lado, a moça que Ricard identificou como Wender, isto é, sua esposa, estava vindo em minha direção.

_ Não se preocupe, madame... Não tenho intenções de ter qualquer coisa com Dark.

_ Me chame de Dey. E não sou madame. Eu sou a futura esposa de Dark. Vou largar esse vagabundo desse Ricard, nunca prestou pra nada mesmo - e lançou um olhar fulminante pra mim. Ricard não ligou para o comentário, até porque, estava acostumado.

_ Sabe Dey - Stormie falou -, se eu fosse você eu não criaria esperanças em relação a Dark, até porque, ele é um anjo maligno e vai te trair até mesmo quando não quiser.

_ Vou amá-lo do mesmo jeito, sua yet* – esse último xingamento dela me deixou perplexa. Não é normal um anjo maligno usar o xingamento yet, até porque, nenhum anjo maligno usa o real vocabulário de um anjo maligno. Yet significa desgraçada.

Apenas entrei no carro. O clima era mais desconfortável do que nunca. Dey me odiava, e pelo visto, odiava minhas amigas também.

O caminho até a casa de Ray não demorou muito. Chegamos em poucos minutos. Ao chegarmos, vimos os filhos pequeninos dele se batendo.

_ Quem são esses? - Lexi se apressou em perguntar.

_ Joen e Jo. Meus filhos - ele sorriu.

_ A Joen é linda... - Amilia falou animadamente.

Passados alguns minutos, entramos na casa, comemos bolachas e almoçamos lasanha. Eu descobri que naquela casa ainda moravam os dois primos órfãos de Ray - Emanoel e Lucas. Eles eram legais e pareceram se encantar com Stormie.

Eu pedi para Ray para que eu fosse lavar as louças, até porque, eu tinha que ajudar. Eu só sei que me lembro de Dey ter sussurrado algo no meu ouvido.

"A vingança está mais próxima a cada dia, Emil. Começou hoje. E você se arrependerá pelo resto da sua vida."