Silêncio do Olhar escrita por Dumpling


Capítulo 17
Lembranças




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Não entendia bem o que se estava a passar, mas era certo que sentia frio e muita dor. Estava deitada no chão do quarto de hóspedes sem entender bem como terminara a discussão, embora estivesse a pensar que tinha terminado e que logo em seguida eu tinha-me deitado para dormir. Também me lembrava de ele dizer que tínhamos de sair do país, e, ao olhar para um dos cantos do quarto, tinha 5 malas colocadas no chão e a cama, até então devidamente feita, permanecia apenas o colchão. Escutava duas vozes masculinas vindas da sala, mas nenhuma de Seiya e, aos poucos, essas vozes aproximavam-se da porta.

- Já não vimos aqui há duas horas, se acontece alguma coisa já sabes que não duramos muito tempo neste negócio. – A porta abria-se rapidamente e logo dois sujeitos olhavam para mim – Já acordou. Liga-lhe.

Era como se não estivesse presente nem mesmo em aflição. Era parte de um monopólio guiado por ele, em que mais nada importava, nem mesmo as cartas e as regras, apenas dinheiro. Apercebi-me que um me olhava de forma diferente e, quando o outro saiu, este veio perto de mim. Pegou-me no queixo que tentei logo afastar, soltou-me o cabelo que tinha preso em coque pelo chão e olhou-me desde os pés à cabeça. Permaneci imóvel e, como sempre, com medo. Como sempre, tão fraca… depois de passar tanto na vida não era suposto já ter encontrado mecanismos de defesa? Mas não. Continuava sempre assim e apetecia-me esbofetear-me por isso. Quando olhava as minhas mãos, tentava ler as linhas e ria-me ao pensar que me diriam elas, do mal que eu tinha feito no passado para nesta vida sofrer tanto. Teria eu sido alguma terrorista? Raptora? Assassina? Não entendia… se a minha vida anterior não o explicava, então… teria eu perdido controlo tão cedo na minha vida? Será que isto tudo podia acontecer com qualquer outra mulher ou apenas comigo, por ser fraca demais e ceder, ceder, ceder?

Já aquele homem continuava-me a olhar e começava a sentir arrepios de pânico, lembrava-me um olhar de há anos atrás. E, num abrir e fechar de olhos, pegou-me, colocou-me no ombro e atirou-me para a cama.

Começou a beijar-me enquanto eu tentava gritar abafadamente com o lenço na boca. Mas porquê eu? Que lhe fiz eu de mal? Passava as mãos por várias partes do meu corpo e logo me veio à mente aquela noite terrível que eu não recordava há tanto tempo.Então princesa. Senti tanto medo onde tinha eu o meu medalhão naquele dia? Calma. É melhor estares quieta, senão é pior para ti. Lembrava o rosto, o medo e o nojo. E tentava-me debater agora como tinha feito naquela vez.

- Ei, que estás a fazer? – a voz do outro interrompia-o mas ele continuava a olhar-me como se fosse a única mulher à face da terra.

- Nada demais. Eu disse-te que nunca tinha visto uma beleza assim, é como um tesouro, nota bem a sensualidade no olhar dela. O gajo sabe escolhe-las!

Num lapso, fechei os olhos e, noutro, vi o Seiya pegá-lo e atirá-lo para o chão.

- Que raio estavas tu a tentar fazer com a minha mulher? – Estava claramente alterado e vermelho de raiva. – RESPONDE!

- Tens aí um diamante em bruto difícil de resistir meu amigo, lamento, mas homem que é homem...

- Pois bem, esse diamante em bruto é meu e tu vais já sair desta casa antes que eu te esfole vivo e deixes de ser homem. – Virou-se para o outro e gritou – e tu também!

Desamarrou-me, sentou-se ao meu lado e começou a discar um número no telemóvel.

- Eu disse que vos dava mais dinheiro, apesar de vos ter dado o acordado mas nunca vos admiti que chegassem a este ponto, é a minha mulher!... Eu sei que esse não conseguiu fugir da polícia mas que culpa tenho eu se todos os outros conseguiram… Certo, eu dou-vos mais, mas nenhum de vocês se volta a aproximar dela.

E desligou. De seguida abraçou-me como se tivesse algum pingo de sensibilidade. Agora sabia que a noite passada eu tinha dormido e que, provavelmente quando ele saiu, armaram tudo isto para conseguirem mais dinheiro dele. Eu, era apenas uma peça vulgar da brincadeira. Afagava-me o cabelo e pedia-me desculpa. Mas não, não havia desculpa. Não das outras vezes. Muito menos desta ... Fez-me lembrar algo horrível que eu preferia ter mantido como parte da amnésia. Será que havia alguém no mundo com quem eu pudesse partilhar esta dor? Alguém igual? Tanta coisa ao mesmo tempo, tanto sofrimento antes da amnésia… e ainda depois? Não lembrava tudo, mas o que tinha acabado de lembrar fazia-me tremer e congelar todos os ossos do meu corpo.

.

Os dias seguintes passaram-se com silêncio e o olhar dele com um arrependimento notável. Sequer tinha havido alguma discussão sobre as malas e a cama desfeita como se fossemos em viagem, pelo contrário, como por magia, tudo voltou ao lugar. Agora, eu não dormia. Tinha pesadelos com um rosto, rosto que pertencia àquele que eu supostamente havia enviado a carta, que morreu no dia do acidente.

- Serena, fala comigo. Eu sei que fiz asneira mas, por favor diz alguma coisa.

- Não há nada a falar. – Respondi friamente e dessa vez, sem medo. Sim, por alguma razão, perdera o medo. Talvez por ter passado tanto já previa o que vinha a seguir e só ao prever já sentia a dor, o resto era apenas físico.

Mas nada aconteceu.

Acabei o pequeno-almoço e guiei para o trabalho. Terminei o dia normalmente, sem problemas, apesar de nas horas mortas me concentrar no que tinha acontecido. Na volta a casa, decidi parar por um supermercado perto do centro. Ao aproximar-me, olhei para um café que me trouxe algum tipo de curiosidade e, ao entrar, logo me lembrei de que antes era um lugar que outrora frequentava regularmente e imediatamente vi um sorriso: Andrew. Correu e abraçou-me, lembrei que ele era como o irmão mais velho que eu tinha e da pequena atracção que havia sentido por ele. Na mesma altura, pareceu-me ver alguém igual a mim, vestida de branco, num canto do café e que desapareceu imediatamente.

- Lembras-te de mim? – Sorriu novamente, abanei a cabeça como se tivesse acabado de alucinar, olhei-o, acenei que sim e largou-me – Estás igual… céus! Olha, importas-te que chame o Darien? Ele pediu, se eu te visse, para lhe dizer…

Sentia saudade dele, e também não havia de ser por um pouco que o Seiya iria desconfiar do que quer que fosse, então respondi que sim. Talvez com demasiado entusiasmo que não devia ter demonstrado. Mas, pelos vistos, ele queria falar comigo.

Pouco depois ele chegou ofegante ainda de fira. Ali mesmo, sem dizer nada, beijou-me. Quente e suave, com um sentimento que eu não sabia explicar, mas que me aquecia o coração… Era algo estranho e lindo, e todos olhavam, alguns murmuravam… até que o Andrew fingiu tossir.

- Eu tenho a sala de descanso, se quiserem, agora aqui… não estamos propriamente no Ocidente.

Não sabia bem explicar o que sentia, nem muito menos a loucura daquele momento de o seguir para um sítio mais privado. Lá, continuou a beijar-me e eu quase chorava por sentir tanto a falta dele. Era tão estúpido, não sentir que traía alguém mas sim sentir borboletas no estômago como uma adolescente por um amor platónico, mas sentia necessidade daquilo. Mesmo o vendo tão raramente, parecia coisa do destino ir ali, naquele dia, em que tanto precisava de um ombro… sentia os olhos tão cansados e tanto pesar, de noites sem dormir, de um sufoco interior de tanta fraqueza, que a qualquer momento se podia transformar num grito. De certeza que se ele me deitasse de encontro a si eu adormecia naquele instante.

- Desculpa – ria enquanto me tirava cabelo dos olhos – Mas sentia tanto a tua falta. E preciso mesmo tanto de falar contigo Serena.

Eu sentia-me ridícula mas o seu olhar só me deu para o continuar a beijar e o abraçar, sentia tanto falta de protecção e as insónias das últimas noites faziam-me sentir sem tecto, sem um ponto de abrigo que parecia encontrar nele. E ele parecia perceber o que se tinha passado. Abraçava-me e entre o meu cabelo sussurrava já passou.

E ali chorei, enquanto ele me sentava numa cadeira e se ajoelhava na minha frente. E decidi perguntar-lhe, do nada, já que me conhecia antes de tudo. Pois ele não questionava, deixava que eu o fizesse naturalmente.

- O que aconteceu para eu fugir para Cambridge?

Ele parou um pouco, tirou a cabeça dentre os meus cabelos e olhou-me com expressão de dúvida.

- Sim, quero mesmo saber, se é isso que vais perguntar.

- Era. – Suspirou longamente. – Não sei bem como te falar nisso, se tu nem sequer me disseste nada. Foi a primeira vez que me ignoraste e senti medo de te perder, pois bem, acabei por perder de qualquer maneira.

- Diz-me por favor.

- Rena, também me custa falar nisso, - fechou os olhos como se para arranjar coragem sem me olhar - foste violada no mesmo dia que te pedi em casamento e refugiaste-te em cada canto que encontravas. De início não entendi bem, e até pensei que aquele homem fosse alguém com quem estivesses… envolvida… custa-me dizer porque nunca devia ter pensado isso de ti, - voltou a enfrentar-me como se eu falasse de uma memória que ele não queria evocar - mas foi aí que comecei a deixar de conseguir ler o teu olhar.

Fiquei com a minha cabeça às voltas e continuei.

- Então quer dizer que eu o quis matar porque me violou, não porque eu andava envolvida com ele? - Olhou para mim confuso e surpreendido.

- Tu nunca falaste em matá-lo. Ele seguiu-te até Cambridge, na altura do acidente eu estive contigo… mas não te lembravas de mim. Fugiste, ele seguiu-te, obrigou-te a meteres-te no carro. Foi isso que aconteceu, não o procuraste, pelo contrário. Se sentias medo, como podias querer matar alguém que receavas tanto?

- Mas, houve uma carta, que eu escrevi para ele a dizer que o queria matar e apareceu o irmão dele…

- Calma aí, - interrompeu-me brevemente. – ele não tinha familiares. Tanto que na altura do acidente me perguntaram se eu lhe era algo, amigo ou assim, porque ninguém constava nos registos. Era impossível aparecer algum irmão ou quem quer que fosse. Quem te disse isso? E de que carta estás a falar?

Seria tudo uma mentira, seria aquele homem um como estes que apareceram na minha casa, parte de estratagemas do Seiya? Parecia ainda mais perdida agora que começava a recordar.

- O Seiya. Em Cambridge, apareceu um homem a dizer que me ia pôr em tribunal porque eu tinha provocado o acidente do Diamante, tinha escrito uma ameaça e chamou o irmão a Cambridge. O Seiya deu-lhe dinheiro porque eu podia ser condenada…

- Rena, isso é mentira. – Parou-me quando eu mais começava a ficar perdida. - Não te confundas mais do que já estás, nunca farias algo assim e, mesmo que quisesses, tu estavas inconsciente no acidente. O médico disse que, pelos testes, já tinhas ficado inconsciente antes do carro cair, eles analisam tudo isso.

Comecei a chorar, e abracei-me a ele.

- Tem calma Rena, precisava tanto de falar contigo com urgência… - Também ele parecia preocupado. – Mas assim eu deixo para outra altura, mas temos de combinar, tem de ser, por nós, pelo futuro do Un… do que te pode acontecer, do que não deve acontecer! – Parecia-me tão confuso e trocava as palavras à medida que as trauteava. E no momento olhei o relógio.

- Já é tão tarde!

- Tu gostas de sofrer? A sério… eu não entendo, desculpa. Desculpa, mas não… porque continuas com ele?

Porque era idiota? Porque gostava das suas mentiras, das suas ameaças, do seu rancor? Por… no fundo… o amar? Já me sentia tão destruída que não entendia…

- Tenho de ir. Depois combinamos a conversa, se o destino o quiser…

Beijei-o, como se fosse a derradeira vez e olhei-o. Unicamente. Olhei-o.

Saí, e quando cheguei a casa, ele esperava conversar.

* Darien *

Bela e pura. Mas não era a mesma de há 4 anos atrás. Transparecia algum sentimento por mim, mas muito confuso, parecendo guardar o amor num cofre, libertando apenas outros sentimentos, ou pelo menos exteriorizando isso, guardando a chave num outro cofre.

Saí do Acrobe e vi um vulto na minha frente, mas continuei a andar. Até chegar a uma parte menos movimentada da rua.

- Princesa? – Era a Serena, em ponto mais adulto, vestida de branco. Não o vestido a preceito do que ela era, mas sim um simples vestido, confundindo-se facilmente com a Serena. Claro, eram a mesma pessoa… mas os traços faciais de Serenity eram notáveis, bens como os 'meus', ou melhor, de Endymion. – Que fazes aqui?

Puxou-me para um canto escuro e acendeu uma lanterna perto de nós. Deu-me 'pancadinhas' na cara, como a Serena antes fazia na brincadeira, quando se chateava com alguma coisa.

- Idiota! Era a tua oportunidade de lhe contares tudo, só estamos a perder tempo End… Darien! – Claramente estava zangada, e não a brincar. Mas no momento em que estive com a Serena, esquecera todos os problemas. Ela já tinha que chegasse, para quê mais? – E agora? Sabes quando a voltas a ver? Claro que não! Tu não sabes o que aquela besta lhe pode fazer de um dia para o outro. À noite pode estar tudo bem e depois dá-lhe na caixa córnea e bate-lhe como se ela fosse um saco de frustrações!

- Eu sei! Eu tive lá a Luna a tentar fazer alguma ligação à mente da Serena, mas…

- Mas nada! – Interrompeu-me sem mais. Ah, sim, aquela era uma Serena de pulso ainda mais firme. – Vou ter de mudar um pouco o rumo das coisas.

Olhei-a com ar estranho… estaria ela a falar de modificar o passado?

- Sim! – pareceu ler-me os pensamentos – Vou fazer com que a Mina resolva o seu 'problema' não com a Rey mas sim comigo, ou melhor, com a Serena.

- Como assim?

- Espera para ver. Vocês homens são todos inúteis e tu ainda pareces mais parvinho que eu… não, ela! Tenho de fazer tudo sozinha!

E, do nada, desapareceu.

* Serena *

Então ele queria falar… e eu não podia anular mais uma conversa. Estava nervoso e parecia não saber como começar a conversa, após dizer-me 'Senta-te'. Começou por balbuciar baixinho, como se resmungasse com ele mesmo até finalmente ter coragem de começar.

- Eu sei a asneira que fiz, não te queria de maneira alguma colocar numa situação destas.

- Mas colocaste. – Interrompi, e pareceu surpreendido com o meu corte de palavra. – Eu já passo o que Deus sabe contigo, e ainda vem gente de fora… fazer-me o que fez, recordar o que não queria…

- Desculpa. Eu sei que não tenho sido o melhor marido do mundo, pelo contrário, e meti-me numa alhada da qual tem sido complicado sair mas nunca pensei que te usassem para conseguir mais dinheiro.

- Era a única forma que eles tinham como certo! – Levantei-me e fiquei quase ao nível dele. – Sou a única pessoa que tens aqui, tens ideia de com quem te metes? Gente perigosa, aqui no Japão, não tens noção do que é, mas eles estão a dar-te uma ideia. – Do nada, pareceu-me ver lutar com algum monstro, mas logo julguei ser uma maneira de eu arranjar coragem: numa imaginação de mim, forte, perante algo gigante e quase imbatível.

Olhou-me nos olhos e acariciou-me a nuca. Não sentia arrepios pela espinha como sentira horas atrás, parecia já não sentir nada por ele senão raiva e uma vontade enorme de que ele desaparecesse da minha frente de uma vez e me deixasse seguir a vida como antigamente. Mas o que era o meu antigamente? No caminho para casa parecia ter pequenas visões, estranhas e desfocadas, de mim há anos atrás… do passado…

- Sere, eu sei. Mas podemos mudar isto tudo, e eu prometo-te que vou mudar. – Começou a beijar-me suavemente, como há muito não fazia e chegava-me perto dele. E eu só sentia o sabor a gelo. Não que o gelo tivesse sabor, mas quem estivesse de fora a ver aquele beijo saberia ver que era desprovido de sentimentos, não era de um filme romântico lindo, era daqueles que se estava na expectativa de haver um beijo romântico, com outra personagem desse filme, aquele que fizesse entender o que era o amor em estado puro. E afastei-me.

- Desculpa. Vou-me deitar.

Ele não. Quando saía, aparecia sempre fosse a que hora fosse. Mas não naquela noite…

Acordei com a 'aflição' da campainha. Não parava, e era impossível tentar adormecer. Levantei-me, rabugenta. Sim. Se calhar por ele não estar ali ao lado, eu tinha dormido lindamente. Como há dias não dormia depois daquele dia… Não sentia medo, nem tinha o 'calor' no outro lado da cama que tanto arrepio me provocava. Dirigi-me à porta e apareceu uma Mina com os olhos em água, face vermelha e tremia por todo o lado. Senti medo ao vê-la, será que o Seiya lhe tinha feito mal? Abraçou-me e fechei a porta. Sentou-se e tentei acalmá-la.

- Serena… ajuda-me, por favor!

Continua.


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