O Clone de Deus escrita por jabour


Capítulo 1
Green World Energy. Parte 1.




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   Marco sempre para um pouco em frente às três grandes letras que decoram a calçada em frente à sede da empresa.

   GWE -- Green World Energy. Uma empresa de pesquisas de fontes limpas de energia. Nenhum produto construído. Nenhuma máquina. Nada nos mercados. Nada nas lojas virtuais da Internet. Vendia ideias, patentes. Seus cientistas inventavam coisas, a GWE patenteava e vendia a patente. Muito mais lucrativo manter fábricas de ideias do que fábricas de coisas.

   Seus empregados, como os de Thomas Alva Edison, tinham que inventar coisas todos os dias. A imaginação tinha que ser livre, a criatividade maiúscula.

   Os prospectores se infiltravam nas faculdades, se matriculavam nos cursos, participavam de congressos. Conviviam e observavam os estudantes e pesquisadores. Aqueles talentosos, inteligentes, mas, antes de tudo, criativos, inventivos, donos de mentes libertas e corações vibrantes, eram contratados.

   As crianças nascem assim. Escrevem no sentido que querem. As letras viradas para o lado que deu. De cabeça pra baixo. Desenham loucuras. Rabiscam. Pintam. Colorem fora dos contornos. Falam a verdade. Escutam uma história e imaginam livremente os cenários, personagens e sons. Tudo é possível. Vale tudo. Conversam com coisas, falam com o nada, escutam atentamente as respostas.

   Com tempo, vão sendo postas em filas, habitam salas de aula arrumadinhas e simétricas. Têm o dever de organizar seus quartos. Escrevem retinho, sobre a linha, no sentido certo. Aprendem que noventa por cento do que sabem não é real, enquanto a física quântica e as grandes acelerações de Einstein mostram que nada é como parece ser. Logo aprendem a mentir para "não ofender os outros". A conta tem que ser feita assim, nesta ordem. A redação de hoje é para ser feita desta forma. Não pode vir sem uniforme. As viseiras vão se fechando. A imaginação se atrofiando. A criatividade definhando. Um "bom" cidadão nascendo.

   Anos depois, no trabalho, na arte, nos esportes e na vida, começam a exigir-lhes criatividade, inventividade, inovação. Começa então a busca louca pela criança. Muitas vezes, não a encontramos mais.

   Aqueles que burlam o sistema, que continuam insanos dentro os sãos, crianças dentre os maduros, aqueles que tomam banho de chapéu ouvindo Raul Seixas, bem, estes inventam, criam, inovam, ousam, sonham, erram, vivem.

   São estes que a GWE quer. São estes que os prospectores convidam para as entrevistas de contratação. Foi assim, no mestrado de Física, que Marco foi achado.

   No dia que a prospectora, matriculada no mesmo curso, marcou uma seção de estudos e ele sugeriu 16:34 na cantina, ela percebeu o potencial. Encontros são sempre marcados em horas exatas ou nos quartos exatos. Quatro e meia. Quinze para as cinco. Nunca 16:34. Este minuto não tem direito de ser um marco de encontro. Mas para Marco, se me permitem o trocadilho, podia.

   Depois de algumas horas de estudo, após a partida de todos os colegas, Lisa ficou na casa de Marco. Tomaram vinho e conversaram longamente.

   -- Por que 16:34, Marco?

   -- É um instante como outro qualquer. Todos os minutos devem ser alvo de compromissos. Em respeito a Pitágoras de Samos, homenageio os números, os regentes supremos das leis do Universo.

   -- É, não deixa de ser justo. Concordou Lisa, achando que seria melhor terem marcado quatro e meia, para ninguém errar.

   Na verdade, a maioria da turma chegou mesmo às quatro e meia. E Marco, irritando Pitágoras, desrespeitou o número 34 e chegou às quatro e quinze.

   O pessoal já sabia que ele sempre chegava adiantado aos compromissos. Tinha sido muito estigmatizado quando sempre se atrasava e não lembrava de nada. Era o ``cientista louco''. Conseguiu uma solução simples. Passou a anotar tudo na sua agenda na Internet e cuidava para semrpe chegar cedo. Chegar na hora ainda era difícil. Muitas vezes parava para observar cenas e objetos diversos. Sempre coisas banais e cotidianas para todos, mas com significados importantes ou divertidíssimas para ele. Deste modo, era melhor deixar uma margem de tempo para contemplações e não arriscar-se a voltar a ser o atrasado.

   Quando estava vivendo "crises de padrões", a sobra de tempo tinha que ser maior. Números, figuras geométricas, formas arquitetônicas, frases, etc, etc, podiam consumir-lhe muitos minutos de observação para identificar o padão ali existente.

   Tinha tido problemas sérios na faculdade, durante um período em que se envolveu com os números primos. Ficava tentando achar um padrão ou lei de formação. Pensava muito se os números primos eram uma casualidade presente no formalismo matemático inventando pelos homens ou se era algo absoluto, existente no Universo, mesmo se desinventássemos os números. Começou a estudar a hipótese de Riemann e chegou a ficar doente. Seus amigos tiveram que levá-lo para a casa dos pais, depois de alimentá-lo decentemente. A mãe de Marco sabia bem como trazê-lo de volta ao mundo real.

   -- Lisa, você espera um pouco? Perguntou Marco, depois de alguns segundos de pausa, durante os quais ambos ficaram pensando sobre que horas os encontros deveriam ser marcados.

   -- No problem. Sorriu Lisa.

   Marco saiu e voltou com seu smartphone. Olhou um pouco para o rótulo do vinho e anotou umas coisas no celular sabor maçã.

   -- O que foi Marco?

   -- Eu anoto coisas sobre os vinhos que bebo. Sabe? Tenho um problema com padrões. Tenho planilhas e estatísticas para quase tudo que faço. Minha mãe já disse que é perda de tempo e que na maioria das coisas que faço não existe padrão nenhum. É casual, aleatório.

   -- Que tal concordar com ela?

   -- Não deu. Comecei a anotar os dias que ela falava sobre minha mania de anotar coisas, para ver se havia um padrão nisso. Pouco antes de sair de casa para vir estudar aqui, estava quase provando que a frequência dos comentários aumentava rápido, diminuia o aumento e depois zerava. Ela ficava um tempo sem falar no assunto. Depois começava a falar, aumentava rápido, aumentava devagar, saturava e caia a zero de novo. Era uma mistura da curva de histerese magnética com a partida lenta do TCP da Internet.

   Lisa associou este estado mental raro que Marco apresentava à sua produção intelectual -- era um ótimo aluno -- e constatou que seria um bom inventor para a GWE.

   -- Bom, mas você sofre com isso? Perguntou com boca de vinho tinto.

   -- Não, eu adoro. Quando era adolescente, anotava cada disco de vinil que escutava. Nunca olhava a totalização. No fim do mês, fazia a apuração e me surpreendia vendo que não tinha consciência de quais escutava mais. Ficava vendo quais estavam perdendo minha preferência e quais andavam em alta.

   -- Eu só ouvia música. Disse Lisa rindo muito.

   Marco riu junto. Vinho torna as piadas muito melhores e os acidentes de carro muito piores.

   -- Na época eu não tinha computador. Anotava em uns formulários contínuos de impressoras matriciais de 132 colunas. Hoje em dia, tenho planilhas eletrônicas para tudo. Quer saber quantos passos em dou em média nas minhas corridas semi diárias?

   -- Não.

   Esta piada foi de matar. Eles começaram a rir e perderam o rumo do assunto.

    Lisa convidou Marco para dar um pulo na varanda tomar um ar. Eles foram. Chegando lá, Marco viu uma lâmpada queimada no poste de iluminação pública. Precisava anotar isso, mas ficou envergonhado. Continuaram conversando e Marco mantinha a frase "a lâmpada do poste da padaria queimou", "a lâmpada do poste da padaria queimou", "a lâmpada do poste da padaria queimou". Ele não podia esquecer. Mas a frase começou a se potencializar na sua mente e ele achou que ia pirar! Sem contar que começou a responder coisas absurdas às perguntas de Lisa.

    Ela notou que ele estava estranho, mas Marco ficava estranho com muita frequência. Quem convivia com ele já não se assustava.

   Diante da pane cerebral, Marco preferiu dizer que ia ao banheiro e lá anotou a queima da lâmpada e deu uma olhadinha nas últimas vezes que ela queimara, para ver se estava no padrão.

   Voltou com outra garrafa de vinho, cujo consumo havia anotado no smartphone, e tocaram a conversa até tarde.


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