Donna Koe De, Donna Kotoba De? escrita por Anna H


Capítulo 12
Through-the-door-ajar




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Acordei sob o soar da campainha. Xinguei e tentei ignorar. Quem quer que fosse, poderia voltar outra hora ou nunca mais, de preferência. Algo gemeu ao meu lado e lembrei que Miwazaki aparecera durante a madrugada, cheirando a vodka e pedindo que o chamasse de vagabunda. O maldito da campainha desistiu e pôs-se a bater insistentemente à porta. Miwazaki desvencilhou-se das cobertas, gritou que já o atenderia, tropeçou nas próprias pernas e rolou da cama para o chão, onde acomodou-se e voltou a dormir.


Minutos passaram e o humano no corredor se provou mais resistente que eu, ganhando com isso tanto meu respeito quanto meu mais profundo ódio, e eu sentia-me pronto para partir-lhe a cabeça ao meio se a razão de sua insistência não fosse um cartão com crédito infinito para cerveja e videogames.


No caminho até a porta, apanhei a calça de moletom que usava antes da chegada triunfal de Miwazaki e a vesti. Abri a porta somente até onde a corrente permitia e encontrei, do lado de fora, um homem que poderia ser o irmão mais velho de Miwazaki, pronto para partir a minha cabeça em duas. Ele olhou-me com um ar curioso e surpreso ao mesmo tempo, mas logo se recompôs e tomou um ar sério e preocupado, quase urgente, e perguntou-me quem eu era.


“Você me acorda numa tarde de ano novo como se minha avó estivesse matando seu cachorro a facadas para perguntar quem diabos eu sou?”


“Há quanto tempo mora nesse apartamento?”


Ia bater a porta, mas ele a segurou. Mandei-o à puta da mãe dele e dei as costas, a caminho do quarto, ciente de que ele não forçaria a entrada. “Tenho algo importante a conversar com o senhor”, ele disse, a cara apertada na fresta da porta. Desviei a rota e apanhei uma lata de cerveja na cozinha. “Sr. Nishimura, por favor.”


Claro que o bastardo sabia meu nome. “Mande-me uma carta, lê-la-ei assim que possível.”


“Há semanas que tento contatá-lo por telefone, mas não posso esperar mais. Precisa me ouvir e tem de fazê-lo agora.”


Liguei o televisor. Um homem rasgava uma lista telefônica ao meio.


“Por favor, deixe-me entrar.”


E partia para uma bíblia.


“Meu nome é Matsueda. Matsueda Takeshi” o deserdado disse, “Não sou mais um completo estranho, podemos conversar?”


Takeshi. Miwazaki Takeshi. Esse era o nome dele.


“É sobre Terachi Shinya. É importante.”


Outro homem anunciava que comeria um disco de DVD.


“Vá embora.”


“Sr. Nishimura..—“


“Vá embora” repeti. Havia um gosto amargo em minha boca, mas não era a cerveja. O homem não respondeu. Ficou onde estava, ficou em silêncio. Levantei-me e fui à cozinha. Encontrei um pedaço de pizza gelada no refrigerador e tentei comê-lo, mas apenas o cheiro foi o suficiente para nausear-me.


“Não acho que ele viverá muito mais” ouvi.


Havia anos que Shinya não cruzava minha mente. Depois de terminar de ler aqueles diários, enterrei-os com bagunça, cerveja, sexo e qualquer outra coisa. No começo era quase impossível. Inevitável. Mas com o tempo, tornou-se mais fácil. Debaixo de pilhas de jornais, revistas, livros e roupas sujas, a memória dele aos poucos parou de me assombrar. Por um tempo, chegou a me fazer rir, como uma piada de péssimo gosto. E em algum momento entre os risos de sarcasmo e hoje, esquecera-o. Como um sonho ou uma história antiga, que com o tempo você desaprendeu a contar. Uma velha e intricada história cujos detalhes eram a parte mais importante, cujos detalhes você já não distingue com clareza e se pergunta o que havia de tão especial. Até que você a ouça dos lábios de outra pessoa.


Terachi Shinya.


O homem que, por puro egoísmo, me fez acreditar estar errado sobre quase tudo e depois me devolveu ao que era antes, provando-me absolutamente correto.


“Ele sabe que você não está disposto a perdoá-lo ou vê-lo.”


“12 de Novembro


Não acho que posso ficar outro dia. Minha cabeça doi quase insupor tavelmen te. Minha visa~o vem e vai. Conver sei com Matsueda mais cedo, e ele suge riu que contasse a Tooru. N~ao tenho certeza se ele compreenderia. Dois anos e ‘ tempo demais. Na~o tenho ide’ia do que fazer. Mats ueda acha que ele n~ao ‘e como os outros, e eu quero acre ditar nele. Mas, mesmo que naõ seja, não acho que seria justo faze-lo passar por tudo isso. Na~o sei se aguentaria perde–lo aos poucos. Morrer nos braços do u‘nico homem que poderia ficar comigo no caso de sobre viver outra vez. Na~o sei, na~o sei e tenho medo de saber. Estou confuso, minha cabeça do’i, minha ma~o treme. Mats ueda prome teu estar pron to para me buscar ao meu cham ado. Acho que conta rei. Ainda hoje, se possi’vel. Nao co nsigo mais escrver. “


“Chegou a me proibir de procurá-lo. Ouça-me. Por favor. Eu não deveria estar aqui, mas Shinya precisa vê-lo.”


Miwazaki ainda estava no chão.


“Ele me disse que não chegou a contá-lo – Shinya possui uma doença crônica. Foi o que levou sua voz quando o conheceu. As quedas, os tremores, a vista embaçada, tudo era culpa dela. Há períodos agudos, em que há cistos demais no corpo dele e tudo começa a falhar e ele precisa voltar ao hospital. Cirurgias e mais cirurgias. Ele nunca aprendeu a montar numa bicicleta ou subir num par de patins. Ele nunca atravessou nenhuma janela. Qualquer que tenha sido a história que ele lhe contou sobre as cicatrizes.” As cicatrizes – agora me lembrava delas. Linhas curtas espalhadas por todo o seu corpo e tão claras que, colocadas sobre a pele absurdamente alva dele, pareciam sequer existir. Contara-me que caíra sobre uma mesa de vidro. “O que aconteceu quando estava com você não foi a primeira vez. As pessoas têm um histórico de abandoná-lo logo que os problemas começam ou logo depois deles terminarem.”


“Eu sei”, eu disse antes que ele retomasse. Um calafrio percorreu meu corpo.


“O quê?”

“Tudo. Desde 97 ao dia em que você prometeu levá-lo embora. Ele deixou tudo pra trás.”


Ele calou-se por um tempo e eu não encontrei outra coisa para dizer. Havia um nó em minha garganta e frio em minhas entranhas.


“Não sabemos quanto tempo ele ainda tem, Nishimura. Não há nada mais a ser feito.”


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