Donna Koe De, Donna Kotoba De? escrita por Anna H


Capítulo 13
French-fries-and-resolutions




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Parecia que Miwazaki passara a viver em meu apartamento. Lembro ouvi-lo relatar algo sobre embriaguez e ter confundido minha casa com os dos pais, o que torna possível imaginar o que se sucedera então. Mas a verdade é que apenas tenho a impressão de que sua presença tornara-se longa e contínua e, por outras vezes, desaparecia por o que poderiam ter sido horas ou meses, embora primeira opção fosse mais provável. Outra verdade é que qualquer noção de tempo que ainda me restava fora estraçalhada com a visita de Matsueda. O gosto ruim em minha boca permanecera mesmo depois sua retirada, e nosso encontro me parecia, ao mesmo tempo, tão recente e tão distante que eu não saberia dizer se acontecera há dias ou há poucos minutos.


Miwazaki sempre se fizera em casa. Lembro vê-lo adentrar a porta com sacolas do mercado e vir da cozinha com um pedaço de pizza em cada mão. Quando o torpor maior deixado pela voz de Matsueda me abandonou, fodi-o com toda a força que tinha e usei os piores nomes que conhecia enquanto lhe puxava pelo cabelo escuro e liso. Ele gemeu e pediu por mais. Eu queria que chorasse e pedisse que parasse, resistisse. Queria machucá-lo e queria fazê-lo ir embora. Como se isso pudesse sepultar a visão de Shinya outra vez.


Lembro-me também de estar no sofá, e Miwazaki estar no chão, com o laptop sobre a mesinha de centro, exatamente onde Shinya jogara Mahjong. Oferecera-se para escrever minha coluna e eu apenas sacolejara os ombros. Devia haver algo interessante na televisão, ou pornografia, pois ele repetidamente levantava a cabeça e parecia divertir-se com o que via. Mas em seu lugar, estava Shinya. O cabelo cor de palha, o corpo magro, os dedos compridos e elegantes sobre o teclado. A alucinação se desmanchou quando Miwazaki perguntou se eu o queria sodomizar outra vez, com o sorriso de quem acabara de descobrir a palavra.


Miwazaki falava muito e raramente se importava com minha constante falta de atenção. As esporádicas conversas que se davam entre nós usualmente abordavam videogames, comida ou sexo ou acabavam por se tornar monólogos acerca de histórias absurdas, pessoais ou não. Miwazaki nunca se refreou quanto ao que compartilhava. Contava-me as coisas mais íntimas como se relatasse a pontuação do jogo e nunca parecia se abalar. Ria, levava a lata de cerveja aos lábios e continuava a sorrir. Às vezes oferecia um boquete. Tendo ouvido talvez um centésimo de tudo o que ele disse, talvez eu o conhecesse melhor do que jamais conhecera Shinya, mesmo em posse de seus diários. Ou talvez não. Eu não saberia dizer.


“Cê acha que ele ainda tá vivo?”


Ele ainda estava na cama, nu, com parte do cabelo grudado ao rosto e às costas pelo suor. Perguntei do que estava falando.


“Tegachi Alguma-Coisa. O do ano novo, que tava pra morrer.”


Meus dedos se detiveram da digitação e afastaram-se do teclado. O amargor em minha língua se intensificou. “Eu não sei. Não importa. Você devia tomar um banho.”


“Já fazem umas cinco semanas. Cê não vai lá ver ele?”


Voltei a escrever, fingindo não o ter ouvido. Minha mão tremia ligeiramente, e o sabor em minha boca beirava o insuportável.


“Tinha uns envelopes no chão, um deles tinha um pouco de grana, e o outro tinha umas passagens e um endereço. Cê viu isso? Cê devia ir. Digo, o cara tá morrendo. Cê tá morrendo. Sei lá, cê devia ir.”


“Ele não queria que eu o visse morrer, e é exatamente o que ele terá.”


Conquanto fosse a verdade, não sei por que disse o que disse. Nem mesmo quando me encontrava longinquamente bêbado, a parte íntima de minha vida pessoal não atravessava meus lábios, e tudo o que Miwazaki poderia saber sobre ela, vira com os próprios olhos. Ou ouvira de uma conversa entre um homem atrás da porta e mim; e jamais desenvolvera qualquer interesse especial por ela, até tal momento. “Você realmente devia tomar um banho”, eu disse.


“Vai ver ele mudou de idéia. Ou tava com medo de alguma coisa. Cê deve ser a única pessoa que tá morrendo e não tem medo de nada, Nishimura.”


Miwazaki nunca usava meu primeiro nome. Eu provavelmente o proibiria caso tentasse.


“Você tem medo de morrer, então?”


Ele riu.


“Não. Tenho de tá sozinho quando acontecer. Da minha mãe cuspir no meu caixão. De ninguém ligar. Essas coisas. Mas de morrer, morrer, não. Quer um?”


Virei para trás e o encarei. Levantara-se e acabava de acender um cigarro; ainda segurava o maço – meu – e o isqueiro, um em cada mão. Soergui as sobrancelhas, trejeito que ele compreendeu como uma afirmativa e o levou a ceder-me o que tinha nos lábios para acender-se um novo. Miwazaki encontrou um copo que deixara no banheiro e ofereceu-me como cinzeiro.


Não voltei a escrever. Sentado naquela cadeira, batalhei contra as palavras de Miwazaki, de Matsueda, e as minhas próprias, entrave que adiara por cinco semanas, período em que estivera, ao mesmo tempo, fugindo do fantasma de Shinya e atirando-me a ele. Não imagino que tenha tecido um único e mísero argumento lógico contra ou a favor da questão no tempo em que fiquei ali. Queria reencontrá-lo e queria esquecê-lo, tinha o ímpeto de o perdoar e desejava que sofresse, agarrava-me à memória de seu sorriso tanto quanto à de suas mentiras. De certo modo, compreendia o que ele fizera. E isso apenas provava o quão errado eu estava sobre tantas e várias coisas.


Eu expelia a fumaça do quarto cigarro quando Miwazaki saiu do banheiro, nu e molhado, à procura de uma toalha. O pandemônio que meu apartamento se tornara sob nossos cuidados – ou, melhor, nossa negligência – daria a Shinya um infarto. No caminho de volta do armário, com a toalha jogada sobre o ombro, Miwazaki tomou meu cigarro entre os dedos e o levou aos lábios antes de sentar-se na cama e começar a enxugar o cabelo. Deve ter-se posto a falar de algo, mas eu não ouvia.

Não sei aonde minha cabeça foi parar. Absorto em meio às evocações de velhas memórias e conjurações de possibilidades, não percebi quando concordei em sair de casa ou como chegamos à espelunca onde estávamos. Havia um cigarro entre meus dedos, então o traguei e bebi do copo de cerveja que vi à minha frente. Miwazaki estava sentado na cadeira oposta, parando de falar somente para levar ou o cigarro ou o copo aos lábios. Entre nós, havia uma porção de batatas-fritas murchas e oleosas. Tentei prestar atenção no que dizia, devo ter conseguido por alguns instantes, mas logo o perdia. Um cenário se formara diante e meus olhos e me tragava como eu fazia ao cigarro. Shinya. Shinya numa cama, num leito hospitalar, Matsueda ao pé de sua cama. Eu à porta.


Eu à porta.


Eu à porta.


Eu não sabia como completar o cenário. Não podia adivinhar sua condição física, nem esboçar sua reação. Não podia esboçar nem mesmo a minha. Cinco semanas, Miwazaki dissera, desde a aparição de Matsueda.


Eu à porta.


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