1001 cartas para chegar até você escrita por Liliquinha


Capítulo 9
Capítulo 9 – Convite repentino




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No intervalo entre as aulas, a turma estava sentada lanchando no pátio quando DC aproximou-se. Chegando por trás de Cascão e Magali, o rapaz de traços orientais deixou o peso do corpo cair em cima dos dois amigos, que se curvaram de leve. DC tinha colocado um braço por trás de cada pescoço e um joelho no meio do banco, enquanto sorria travesso.

— Saudações, velhos conhecidos. Espero que o dia de vocês esteja indo bem. – virava o rosto para dirigir-se a cada um dos quatro amigos.

— Você está bem contente hoje, hein? – disse Cebola com desdém.

— Nada. Só senti falta de calor humano. Enfim, depois que a Magá disse que sentia falta dos ensaios musicais localizados na garagem da casa onde moro, achei pertinente convidá-los para uma nova sessão. – empurrou delicadamente os dois para acomodar-se melhor e sentar-se no meio. Magali riu e Cascão só o encarou levemente incomodado – Admito que senti saudade de tocar com minha banda favorita e a trilha sonora do filme que assistimos inspirou-me a criar uma música infinitamente melhor...

— Como fã de Mutantes Espaciais, acho que você acabou de cometer uma blasfêmia, mas perdoarei, porque também senti falta da banda. E a temporada de jogos oficiais acabou, então estou com a agenda livre, até os treinos não voltarem.

— Que maravilha! Coincidiu que agora tenho uma música novinha para testar. – DC ora olhava diretamente para Cascão, ora para Magali, ora para Cebola ao lado de Mônica. Mas não para ela. Ele estava a ignorando de propósito? – Que tal hoje à tarde? – Perguntou antes de enfiar um pedaço de melão cortado, que ele furtou da marmita de Magali.

— Hoje não dá. – Cebola apressou-se para dizer. “Por que não?” Perguntaria uma pessoa normal.

— E amanhã? Dá para todo mundo? – virou-se de lado buscando confirmação de Magali e de Cascão. – Ou o aviso prévio é com três meses de antecedência? – Em seguida, encarou Mônica. Rapidamente seus olhares se cruzaram. Mas ele virou de novo o rosto. Nada de mais, Mônica repetia para si.

Magali respondeu:

— Amanhã depois da aula, vou para a padaria. As aulas de reforço com o Quim funcionam melhor assim, com a matéria ainda está fresquinha na cabeça. Mais à tarde, lá para às quatro, estou disponível. Seria bem legal ensaiar para relaxar.

— É isso aí! – DC abriu um sorriso.

— Amanhã à tarde, vou com a Maria no shopping, posso ir pro ensaio logo em seguida. Melhor ainda se ela puder ir comigo...

— Perfeito! É claro que ela pode ir, na garagem tem espaço. E você, Mônica?

Ele encarava, olhando bem no fundo dos seus olhos. Como é que os olhos dele ficaram mais bonitos de repente? Ela hesitou, sentindo-se gaguejar...

— É, pode ser.

— Maravilha, então. – DC sorriu satisfeito para ela e levantou-se – Lá em casa, às 16h? Dá para todo mundo? Cebola?

Por um instante, sentiu-se uma faísca entre o olhar dos dois rapazes e viu o sorriso descontraído de DC desaparecer sutilmente.

— Claro, se todo mundo vai... – a voz de Cebola trazia um quê de ameaça.

Alargou o sorriso em resposta. Logo virou-se e foi embora. Mônica ficou um tempo observando-o afastar-se, mas o toque da mão de Cebola a tirou dos pensamentos. Diante deles, uma briguinha boba distraiu-os:

— Por que você implica comigo quando como suas frutas, mas com o DC não?

— Porque ele não pega minhas frutas ou biscoitos todo dia... Só você, Cascão. – sorriu para ele – Eu até trago mais por causa disso, mas você come além do excedente... – Ele se levantou

— Tudo bem, Magá, perdoada se amanhã o excedente for o dobro do de hoje. – pegou um pedaço de melão e enfiou na boca – Desculpa abandonar vocês, galerinha, mas vou falar com a Cascudinha sobre os planos de amanhã. Se tem uma coisa que ela odeia é imprevisto.

— Vai lá. – disse Cebola – A gente podia aproveitar e ir para sala também. O intervalo já vai acabar mesmo.

As duas concordaram O grupo levantou-se e dirigiram-se para o interior do colégio. No meio do caminho, Magali puxou Mônica para o banheiro, já que deviam escovar os dentes e retocar a maquiagem... Coisas de higiene. Cebola estranhou maquiagem de manhã e para escola; apenas aceitou e continuou indo para sala de aula. As duas encaravam o espelho.

— Então, o que será que deu no DC? – Magali foi a primeira a perguntar.

— Vai saber? Ele é imprevisível, né? – Mônica respondeu

— É. – riram – Ele faz questão de ser assim. Porém, isso foi repentino até para ele...

— Pode até ser, mas ontem ele trouxe o violão e estava ensaiando uma melodia por conta própria. E você mesma disse que sentia saudades, não? Com o fim do campeonato, a agenda do Cascão liberou. Deve ser por isso...

— Como se DC precisasse de um motivo lógico...

— O resto da banda precisa. – Mônica sentenciou e Magali assentiu com a cabeça.

— E que música nova é essa que ele quer testar? – Mônica deu de ombros ante a pergunta, depois respondeu com um risinho:

— Provavelmente uma música sobre uma capivara comendo paçoca... Não, muito óbvio. – a outra riu – Só pode ser um manifesto sobre a inflação no preço da areia do deserto quando a lua em Júpiter faz a exportação de alcachofras cair... – riram mais alto.

— Falando assim, parece que você já pensa como ele. Cuidado, não estamos preparados para dois contrariados no Limoeiro.

— Realmente, não há espaço para nós dois na cidade... – usou um tom sombrio, tipo faroeste. – Por isso eu abdico. Ele faz o papel muito melhor que eu. – Magali riu para ela.

— Concordo. Mas só porque ele tem anos de experiência...

Saíram do banheiro e foram direto para sala de aula. Era engraçado com a fez bem falar sobre ele com a amiga. Era bem mais fácil do que guardar o segredo das cartas. Por que ainda não contou para Magali? Um pensamento a tomou de assalto: porque não queria dividir com mais ninguém. Se só ela recebia as cartas, se somente ela podia lê-las, então tinha um tesouro secreto. Se mais alguém soubesse, talvez elas não fossem tão especiais. Talvez compartilhar seu segredo fosse uma forma de diminuir seu valor. Era bobo pensar assim? Talvez. Olhou de relance para o fundo da sala, onde DC estava sentado, olhando para o quadro, anotando a matéria que ela também deveria estar anotando... Virou-se rapidamente.

Quando voltava para casa e encontrava uma carta, era como se novamente abrisse o baú do tesouro. Quando a lia, parecia compartilhar com quem as datilografou os segredos do que estava escrito. Só os dois podiam saber. Só os dois conheciam aquelas palavras. De repente eram cúmplices, parceiros de um crime. Por que isso importava? Porque querendo ou não ela se sentia importante o suficiente para alguém querer compartilhar com ela um segredo. Porque ela era a única... Ou pelo menos tudo indicava que sim. As folhas datilografadas não eram cópias, e então quem as escreveu fez isso e deu a ela os originais, com as marcas da máquina, os erros de datilografia... Se mandasse para duas pessoas, seriam duas cartas diferentes, ainda que contivessem a mesma história. Teriam outras marcas, outros erros. Portanto, as cartas que recebia eram únicas... Se uma pessoa se deu ao trabalho de datilografar uma carta e enviar todo dia, o que ela queria dizer? E se Mônica mandasse uma carta-resposta? Para quem? Para o DC? O mesmo rapaz que não admitia que era ele quem escrevera... Por que ela faria isso? Além do mais, o que escreveria?

Eu sei que é você. Pare.” Por que pediria para parar antes do fim da história? “O que você quer que eu leia disso tudo? O que essas cartas querem dizer?” Não receberia a resposta. Ou simplesmente teria um bilhete dizendo: “cartas não querem dizer nada, elas não têm consciência nem boca para falar.” Continuava a copiar a matéria, às vezes se furtando um olhar ou outro para o colega. E se não fosse ele? Quem seria? Mais ninguém. Era ele, só podia ser ele. Por quê? Porque são cartas de amor estranhas... Seriam? Perguntaria então: “isso são cartas de amor?” Ele responderia: não, são visivelmente pedaços de uma história.

As aulas foram se arrastando, mas logo o dia terminou. Cebola perguntou se ela queria voltar com ele. Ela concordou. Magali e Cascão iam se juntar à Maria Cascuda para revisar biologia, e por isso iam ficar na biblioteca aquela tarde. No caminho até a casa foi silencioso. Mônica quem perguntou primeiro o que ele ia fazer naquele dia.

— Nada. – respondeu alargando um sutil sorriso.

— Pensei que estivesse ocupado. Afinal, você não quis ensaiar com a banda...

O sorriso dele murchou levemente.

— Não queria ter que ensaiar hoje na garagem... – Ficaram em silêncio por um bom tempo. Mônica olhava para o chão ou para o caminho, sem saber como encarar o amigo. Cebola também hesitava, parecia atordoado com alguma coisa.

— Acho que vou ter que estudar um bocado a mais a partir de agora. Estava dando uma olhada sobre o MIT e a taxa de aceitação é bem pequena para estrangeiros. Parece que eu vou ter que me esforçar bem mais se eu quiser um A+, como o Licurgo falou... – os olhos dele baixaram, fazendo-a concluir que era isso que o preocupava.

— Tenho certeza que se só tivesse uma vaga, você é quem passaria. – ele a encarou com um sorriso – Você é inteligente e esforçado, Cê. Eu sei que vai conseguir. – os dois abriram um largo sorriso – Se precisar estudar mais, tudo bem. Você não está vendo a Magali e a Maria Cascuda? Elas estão estudando para caramba. – deu um soquinho no ombro dele – Você consegue, é só querer. – Os dois se encaravam, olhando-se nos olhos, sorrisos singelos e corações palpitantes – No entanto, precisa também relaxar, passar tempo com os amigos, e nada melhor que música para isso...

O sorriso dele murchou levemente e o semblante adquiriu uma rudeza. Concordou com a amiga, mas virou-se bruscamente em direção para casa. Mônica continuou acompanhando-o. Ela não entendeu a repentina distância que parecia separar os dois, apenas sentia. Na porta da casa dela, ele se despediu com abraço e logo afastou-se, andando de costas e acenando, até ela entrar pelo portão. Viu-o sumindo aos poucos. Olhou para a caixa de correio com o coração batendo forte. Correu até ela e suspirou aliviada quando encontrou o pacote. Não quis esperar e sentada ao lado da caixa de correio, começou a ler:

***

No dia seguinte, o mercador chegou ao horário certo, satisfeito com as palavras da Princesa. Bebeu apenas um gole e comeu apenas uma mordida para logo retomar sua narrativa:

A Fada Jandira Al-Nour sentia novamente aquela morte. Arrependia-se de ter ido com Muhtal Al-Jinni e sentiu-se mal por ter sido manipulada de tal forma. Apesar de culpar o gênio por sua maldade, também não eximia o pai do crime que cometera com as próprias mãos. Ainda que fosse o ser maligno responsável pela vil proposta, fora de livre-arbítrio que o pai com o próprio punhal acertou o filho. A Farhad Al-Naim aquela vida e morte pesavam sobre si. Parecia mais próxima de sua alma e por isso parecia lhe queimar com ardor. As lágrimas escorreram de seu rosto, mas manteve seu olhar atento à narradora.

A Fada prosseguiu: “Lamentei aquele crime e arrependia-me de fazer parte daquela cena deplorável. Quis de alguma maneira remediar a tragédia, mas compreendia que não havia muito o que fazer. Dirigi-me ao pai: ‘Bartolomeu, pai assassino, seu arrependimento me comove. Diga-me o que pede vosso coração.’ Curvado de tal maneira que não poderia ver seu rosto, nem entender o que se passava em seu interior, o homem murmurou: ‘Convidei a desgraça para dentro de minha casa quando os deixei entrar. No entanto, há muito vinha cultivando a tragédia ao matar diariamente filho que com minhas próprias mãos fiz perecer. O que pode me oferecer para me consolar do crime do qual sou culpado? O que pode um assassino coberto de remorso pedir além de perdão e de que possa desfazer o erro? No entanto, minha boca amarga se peço pela vida do filho que vinha matando antes mesmo de apunhalar. Não fui agraciado com um filho, porque nunca percebi a benção que recebera. De que adianta olhos para um homem que se recusa abri-los? Pois peço que a morte me castigue o tanto quanto amaldiçoei a criança que o Alto me confiara. E assim talvez eu mereça um pouco do perdão que almejo.’” A Fada contemplava o semblante de Farhad Al-Naim, que se cobria de silenciosas lágrimas.

Voltou a falar: “Senti que passaria a eternidade castigando a ti e aos teus, por um crime que o ignorante Said Al-Faruk cometera uma única vez. Por causa de vingança, resolvi castigá-lo; buscando meu perdão, sofria amargamente duras penas. Diante daquele erro e sofrimento, o pai pedia para ser punido... Percebi que meu ódio de outrora já havia esfriado, que minha vingança agora seria mais um ato de crueldade do que de justiça. As lágrimas que chorei por meu algoz no ápice da montanha já tinham o abrandado minha ira; agora as lágrimas que derramei salgavam o penar e vi que punição nenhuma fizera-o melhor. Tive compaixão do homem que assassinara o filho na esperança de ter um filho a quem soubesse amar. Tive compaixão da mãe que já partia, apunhalada com os espinhos do corpo do filho a quem não pode abraçar durante uma longa vida. Apiedei-me da criança, que um dia fora uma reles formiga pedindo-me por uma oportunidade de vida... Em forma de pássaro e de peixe, viveu bem, apesar de muito penar. Lembrei-me da tigresa que pedia a morte, para que não mais sofresse. Pensei na borboleta, que havia cansado de tanto morrer em uma vida só, que pedia por uma chance de crescer. Pensei em Said Al-Faruk, que infelizmente deixou-se guiar por uma paixão maldita e que condenou ao sofrimento a si próprio e a inocentes... Pensando em todos, percebi que não era mais necessário punição alguma: a vida já fornecia tantos desafios aos mortais, que bastaria viver novamente, para aprender erros do passado e pagar dívidas, variando-se no papel de caça e de caçador.”

Tornou a narrar: “Voltei ao meu corpo de Fada, coberta pela luz branca, convidei os ventos do amanhã. Toquei primeiro nas costas do pai curvado e encolhido na culpa, para que as asas da morte o levassem. Depois aproximei-me da mãe, cujo o ar já fugia dos pulmões e cujo sangue escorria lentamente a empossar o chão. Suspirou uma última vez ao toque meu em seus cabelos. Por fim, peguei o corpo diminuto da criança, agora de olhos opacos, sangue escorrendo da boca, frágil e desprotegida. Fiz os espinhos sumirem e abracei-o. Queria que alguma vez seu corpo pudesse sentir o calor de um abraço. Senti as lágrimas escorrendo quentes pela minha face e senti uma dor imensa que jamais sentira. Beijei sua face gelada e morta antes que as asas da Morte o levassem em um sopro. Meu coração parecia ter sido apunhado. Lembrei-me do Livro Infinito das Vidas e compreendi: eu o amava. E novamente eu o via morrer. Com a nova vida, estaríamos fadados a novamente nos encontrarmos. Por ser um reles mortal, eu teria de vê-lo morrer. De novo e de novo... E quando isso novamente acontecesse, eu sentiria aquela mesma dor, de uma imensa perda. Era isso que Muhtal Al-Jinni queria com aquela visita: lembrar-me de que estou condenada a uma eternidade de perder pedaços do meu coração para a dor de um amor fracassado.” A Fada interrompeu sua fala, pesarosa com a confissão.

Farhad Al-Naim por fim compreendera o peso do crime que cometera o jovem inconsequente Said Al-Faruk. Pouco importariam as horas felizes que pudessem compartilhar os dois amantes ou o reencontro apaixonado de dois corações: apenas um dos dois seria feliz. Sendo imortal, a Fada Jandira Al-Nour estaria condenada a viver a perda inevitável de seu amante, de aguardar seu retorno, viver com ele um prazo limitado e vê-lo morrer novamente. E assim estaria condenada pelos séculos da eternidade que viria.

               A fala dela o tirou de seus pensamentos: “Depois desta vida amaldiçoado, Farhad Al-Naim, viveras mais duas antes de ser quem eres. Nasceras como Dária, no litoral. Pensei que seria melhor não te encontrar, tentei me afastar, mas nosso encontro era inevitável. Deparei-me com a belíssima jovem que se tornara. Como uma flechada certeira, cai de amores. Em sonho, ajoelhei-me, pedi-lhe com fervor que desfizesse o mal feito, mas ela se recusou. Não atentaria contra os desejos de seu coração, não se arriscaria em perigosa viagem para perder o que mais ansiava; amava-me, por isso não queria libertar-me. Tomando diversas formas tentei convencê-la a executar a tarefa. Inútil. Dária era inflexível. Amava-me demais; não importava a forma, reconhecia-me. Fugi dela, também inutilmente, sempre nos encontrávamos. Eu tentava convencê-la a desfazer o malfeito, ela me implorava que cedesse ao capricho dos nossos corações apaixonados. Acabou por convencer-me a amá-la. Deixei-me ceder pelos caprichos do desejo. E como se eu seguisse as palavras de uma maldição, deixei-me levar pelas promessas sedutoras e cedi aos apelos do amor, entregando-me a uma paixão avassaladora. Tornei-me o homem humano que a desposou em um verão tão longínquo que o tempo levou. Vivemos décadas felizes, morando em uma cabana perto do mar. Tivemos lindos filhos, envelhecemos juntos... Um amor louco...” Uma pausa sofrida. “Não poderia descrever-te a dor que senti com sua perda, como fora maior do que das outras vezes, como se tivessem arrancado meu coração por inteiro e prometi-me não ceder mais...”

Recomposta de sua fala, a Fada prosseguiu: “Na vida seguinte, mantive-me tão afastada quanto pude. Em sonho, incumbi o jovem guerreiro Hans a sair na jornada, e sem saber dos detalhes, aceitou a missão de bom grado. Infelizmente, quis o destino que ele padecesse no caminho e não realizasse a tarefa. Agora, Farhad Al-Naim, cabe a ti decidir sobre a missão que te peço. Nada te escondo, e compreendo que são circunstâncias infelizes que te conduziram até o Palácio de Cristal. Só a ti posso pedir a liberdade. Não posso eu ir até a deusa Um-CarimTamara Al-Miray consertar os teus erros do passado. Se eu pudesse, tão logo teria o feito, sem pedir-te imenso sacrifício. Sinto tanto por ter que cobrá-lo tamanho preço, mas não tenho a outrem quem pedir. Ainda que tenha sido em uma vida passada tua, foste tu quem o fizera e somente tu poderás desfazê-lo. Farhad Al-Naim, filho de Nerum, sapateiro de Girah, preciso de ti. Tudo farei para ajudar-te em tua empreitada. Bem saberei recompensar-te por teus esforços. Ajuda-me.” A Fada prostou-se diante do jovem, curvando-se submissa diante do único que poderia salvar-lhe do eterno sofrimento.

               Farhad bem refletiu sobre as palavras da Fada Jandira Al-Nour. Seu olhar de súplica continha desespero. Ele entedia o peso tanto do crime quanto da solução. Não seria uma missão fácil, mas ele era o único que poderia realizá-la. Tomou um gole para conseguir tirar o amargor que sentia na boca. Aproximou a mão para tocar o ombro da Fada e fazê-la levantar a cabeça para olhá-lo. Encarando os olhos azuis da Fada Jandira Al-Nour e sem titubear disse:

“Minha senhora, perdoe a sinceridade e a audácia, mas vendo-a novamente, não quero que nos separemos. Se, em eras passadas, errei em atá-la ao meu destino e cobrei de ti um amor que não me oferecias, peço perdão. Ei de corrigir o mal causado pelo inconsequente. Farei o que me pedir, irei ao Fim do Mundo ter com a Deusa Um-Carim Tamara Al-miray para que ela desfaça essa união penosa. As linhas do destino não devem forçar nossos caminhos, unindo-os a qualquer custo; devem ser livres rotas que havemos de trilhar e, se possível, que nos conduza um até o outro. Se realmente me perdoas, peço apenas uma prova: oferece-me a possibilidade de te conquistar o coração... Não posso confiar nas juras de amor que fizeres sob a magia de um feitiço, por isso tenho que desfazer o selo que nos une antes que decidas. Não quero pedir-lhe amor eterno, pois eu mesmo não viverei a eternidade. Nem é justo contigo, imortal, condená-la a esta prisão, seria cruel demais. Peço somente, Fada Querida, que me permita viver uma última vida contido, com o amor que puderes me dar.”

A Fada hesitou diante do pedido do jovem, que continuou a falar: “Escutei-te sobre como viemos a nos conhecer há várias eras... Das encarnações, não me lembro... Se antes nutria afeto e amizade por ti, deles não me recordo. Portanto, confia quando digo que meus sentimentos não são somente fantasmas do passado, sombras dos antigos. Talvez, no primeiro instante, apaixonei-me por ti como manda a nossa sina, sucumbindo à esta magia secular. A verdade é que o amor que sinto começou neste encontro, neste salão agora pouco quando ajudou a realizar os desejos do velho Mamede, de Soraya e do pequeno Mahir. Encantei-me por tuas sábias palavras e por tua generosidade. Meus olhos, subordinados à aparência, veem-te com uma bela mulher humana a quem meu corpo deseja... Creia quando te digo que te amo: por tua caridade, pela força passional de teu ódio, pela compaixão e senso de justiça... Partirei imediatamente em viagem, libertá-la-ei do erro cometido pelo imprudente Said Al-Faruk. Peço apenas que consideres meu pedido, Fada Generosa. Nada quero do teu tesouro dourado, a única coisa que meu coração quer é que me permitas amar-te nesta vida, antes de nos despedirmos.”

A Fada Jandira Al-Nour ficou emocionada por tais palavras, sentindo seu coração gélido se aquecer. Seu rosto corou timidamente e sua voz saiu constrangida ao responder: “Farhad Al-Naim, tua declaração me comove... Tua promessa me tranquiliza... Bem sabes que é teu meu amor por causa do feitiço. No entanto, creia-me que o afeto que agora nutro por ti se deu por tuas gentis palavras, por tua bravura e determinação de salvar-me desta maldição. Serei grata a ti eternamente e nenhum preço que me cobrares será grande demais. Se me pedes que eu aceite viver uma única vida contigo, digo-te que concordo, ainda que me assuste a dor de te perder. Nada me fará mais feliz...”

Farhad Al-Naim sorriu para a Fada, dizendo-lhe: “Venerada Fada Jandira Al-Nour, enquanto faço a viagem, reflete o quanto puder. Não posso acreditar nas promessas de amor que me fazes sob o efeito do feitiço, ou que resulta da mescla de um falso amor com gratidão. Aguardarei ansioso tua resposta quando enfim eu tiver sido bem sucedido em minha tarefa, quando estiver apta a escolher por si. Pela viagem, a esperança de teu amor verdadeiro me servirá de bálsamo e acalentará os momentos de sacrifício e dúvida; será também a força que me impulsionará a prosseguir pelo caminho, não importando o quão árduo seja. Portanto, diz-me o que tenho de fazer, que o farei!” Atordoada e contente, a Fada lhe explicou como proceder....

A areia da ampulheta obrigou-o a calar-se.

***

Farhad quer o coração da fada?! Mas só depois de conseguir separar o nome deles do Livro Infinito das Vidas. Contudo... Quando seus nomes não estiverem mais unidos, será mesmo que o destino deles é ficar juntos? É um desejo tolo de Farhad? A Fada pode não corresponder ao amor dele quando ele voltasse ao Palácio, por que se arriscar tanto? E se a fada concordasse, se os dois ficassem juntos, ela vai sofrer muito quando ele partir... Ele está decidido a consertar os erros do passado, porque ele a ama. Será que ele não se sente mal por ter que agir contra si próprio?

Dona Luísa encontrou a filha quando saiu na porta procurando por ela, supondo que ela não tinha chegado ainda da escola. Mônica estava ainda atordoada com a carta, com a reação de Cebola, com a proposta de DC... Eram tantas coisas acontecendo. Ela abraçou a mãe, que ficou sem reação, mas a abraçou de volta. O almoço estava pronto.

Antes de dormir, releu a carta, pensou no sacrifício de Farhad, no coração da fada, na impossibilidade do amor entre os dois... Ao fim da missão, será que ela vai admitir que o ama? E como poderia se contentar apenas com uma última vida? Não poderia ele se tornar imortal e assim os dois viverem felizes para sempre? Quem quer o amor, quer que ele seja verdadeiro, que seja real. Sem artifícios, sem artimanhas.... Poucos pensam no sacrífico do amor...

Se Cebola passar no MIT, ele vai se mudar para os USA, né? Levantou o corpo da cama de súbito. É claro que isso não significava que eles não se veriam mais, nunca mais, no entanto... Era por isso que ele parecia tão triste? E ela? Estaria pronta para se despedir?


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